Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
segunda-feira, 20 de novembro de 2006
Guiné 63/74 - P1298: Blogoterapia: Pensei que era fácil esquecer, mas não foi... (Zé Teixeira, CCAÇ 2381)
Guiné > Buba e Empada (Região de Quínara) > CCAÇ 2381 - Os Maiorais, 1968/70 > Três fotografias (artísticas...), daquelas que nós mandávamos para os nossos parentes, amigos e namoradas, mostrando o exotismo da Guiné e deixando antever os perigos que nos espreitavam nas matas, nas picadas ou nos aquartelamentos...
Na primeira foto, de cima, o Zé simula o disparo de um lança-roquetes, de 37 mm, usado tanto pelas tropas especiais (fuzileiros, paraquedistas e comandos) como pelas companhias africanas de intervenção (como era o caso da minha CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)... Esta foto julgo ter sido tirada em Buba, onde estava estaccionada uma força de fuzileiros, de acordo com o relato que o Zé faz no seu diário (1).
Nas restantes fotos - possivelmente tiradas em Empada -, vemos o Zé, sem o seu mochila de cabo enfermeiro, progressindo de G-3 em punho, no capinzal, alto, mais alto do que os nossos campos de milho ou as nossas searas de trigo...
Na terceira e última das fotos, o Zé está numa pose que parece sugerir estar emboscado, por detrás de um tronco de árvore ou - não é claro - de um bagabaga, outro dos fenómenos naturais da Guiné que faziam as delícias dos nossos fotógrafos amadores... Não havia militar que se prezasse que não mandasse para casa uma foto, de pé, garbosamente, - qual Teixeira Pinto ! - em cima de um bagabaga, que está para a formiga como os Himalaias estão para nós...
Daqui vai um grande abraço para ele, que vive em Matosinhos, gozando com saúde e com alegria de viver a sua reforma de gerente bancário... Um abraço também para a restante tertúlia do Norte (LG).
PS - O Zé Teixeira mandou-me um mail, logo a seguir, para esclarecer o seguinte: (i) as fotos foram tiradas na célebre tabanca Ponderosa (aliás, Ualada, a sudoeste de Empada) (2) ; (ii) a CCAÇ 2381 também tinha (dois) lança-roquetes, de 37 mm: o Zé está com um que lhe terá salvo a vida, uns dias antes, quando esteve em risco de ser apanhado à mão; (iii) recorde-se que o Zé estve primeiro na região de Buba (Buba, Mampatá, Chamarra e Aldeia Formosa) e depois na região de Empada (onde fica Sare Tuto e Ualada). Buba e Empada pertencem actualmente à Região de Quínara. Em contrapartida, Quebo (antiga Aldeia Formosa) já pertence à Região de Tombali (Catió).
Fotos: © José Teixeira (2006). Direitos reservados.
Texto do Zé Teixeira (que foi 1º Cabo Enfermeiro, na CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70; que é um excelente contador de estórias; e que tem, além disso, um notável diário do seu tempo de Guiné, que já tivemos o privilégio de publicar no nosso blogue, entre Janeiro e Março de 2006) (1) .
Luís.
Saúde, paz e felicidade para ti, para os teus e para todos os tertulianos.
No meu último texto (3), que fizeste o favor de publicar, eu afirmava:"Quando regressei, acreditava que ia ser fácil esquecer . . .mas não foi".
A Ana Ferreira, filha do cabo Ferreira que nos acompanha neste intercomunicador contínuo, glosou as minhas palavras afirmando: "Quando regressei estava convencido que ia ser fácil esquecer, mas não foi", diz o José Teixeira. Acredito. Não o foi para o José nem para ninguém. Não o foi para os que lá estiveram , de facto, nem para os que viveram esta guerra, através dos que amavam" (4).
Isto foi uma provocação sadia, que me pôs a reflectir e da reflexão surgiu o novo texto que agora te envio, com um beijinho fraternal à Ana.
Quando regressei estava convencido que ia ser fácil esquecer, mas não foi.
Por Zé Teixeira
De facto essa era a minha esperança, mas logo nos primeiros dias de peluda a situação mudou.
Era a verdade sonhada. Tudo ia ser fácil, SE…
SE ao reentrar na sociedade civil, não sentisse que tinha perdido os três melhores anos da minha vida, numa guerra estúpida que não conduziu a nada, pois as informações que chegavam, quantas vezes lidas nas entrelinhas, confirmavam que a situação piorava dia a dia e o fim estava à vista com uma derrota que teria sido estrondosa e trágica se não acontecesse o 25 de Abril.
SE os amigos que deixei não se tivessem naturalmente dispersado na organização da sua vida e o vazio afectivo, não fosse um tormento, embora a prazo.
SE o rosto da mãe que viveu o drama de ver morrer carbonizada a sua menina sem lhe poder valer, por estar ferida e impossibilitada de se deslocar em seu socorro, não me perseguisse.
SE o grito do camarada, que mal conhecera, ao sentir a vista a fugir-lhe e ao reflectir que a sua vida se estava a apagar, sem eu lhe poder valer, não atormentasse mais os meus ouvidos.
SE os olhos aterrorizados das crianças a correr para os abrigos nos ataques diurnos e nocturnos à Tabanca não aparecessem mais à minha frente.
SE a voz sonante do Conceição Caixeiro, não continuasse a soar um melodioso fado nos meus ouvidos, recordando-me a sua morte com a nuca esmagada, quando feliz da vida cantava, enquanto fazia as necessidades fisiológicas.
SE a visão das aldeias cercadas por duas fiadas de arame farpado, não fosse uma constante que apenas desapareceu após o regresso à Guiné em 2005. Arame farpado, cemitério de garrafas amarradas duas a duas para tilintarem à mais pequena tentativa de intrusão do IN. Cercadas ainda por campos de minas, obrigando as populações a usarem só e apenas os carreiros ou picadas. Autênticas prisões de onde se saía apenas para o essencial e bem armado.
SE não sonhasse com o grito eufórico do camarada que localizou um pedaço de corpo humano enegrecido pela pólvora, julgando ser de um inimigo . . . e as suas e nossas lágrimas, quando se verificou que eram de um camarada que tinha pisado um fornilho.
SE o grito do Miguel ao sentir a falta da perna que uma Anti-Pessoal arrancou sem piedade - ela já não me quer – deixasse de me atormentar. O Miguel, calmo e sereno que eu conheci. O Miguel que cintava as cartas da namorada e correspondia a uma por dia . . . O Miguel que só reencontrei 32 anos depois.
SE a cena que vivi na bolanha dos passarinhos a caminho de Nhala em que senti a voz de Deus, dizer-me Salta da viatura e segundos depois esta foi pelos ares, ficando totalmente destruído o habitáculo que momentos antes eu ocupara. Se tal cena não continuasse a perturbar-me.
SE não recordasse com imensa saudade as pessoas de cor negra com quem partilhei belos momentos. Homens da milícia, mulheres, crianças e sobretudo lindas bajudas, a Fátma, a Mariema, a Auá, a Djobo Ansato e tantas outras. Momentos tantas vezes encerrados abruptamente pelo sargenti di milícia Hamadú, que aparecia, com a celebre frase hora di vai na deita, bandido stá lá e apontava para o local donde de vez em quando éramos brindados com umas canhoadas, que punham a Tabanca em sobressalto, trazendo sustos, ferimentos e quantas vezes a morte.
SE as bebedeiras monstruosas para esquecer, que me faziam ir de gatas para a caserna, ou quantas vezes apanhar a agradável cacimba no rosto nas noites dormidas a curtir, não fossem um provocante estímulo a continuar a trilhar esse caminho.
SE o simples bater de uma porta ou o estoirar de um foguete, não provocassem um baque no coração e uma procura rápida de um buraco para me abrigar.
SE o estrondo de simples embate de duas viaturas, com perdas em chaparia, em plena cidade, não me fizesse desatar a correr com medo de ver sangue a correr. (Fui enfermeiro na guerra e bastou o que vi) Só uns anos mais tarde senti algum equilíbrio nesta área.
SE os olhar do prisioneiro abatido a sangue frio, sem culpa formada e sem defesa, não se espetasse no tecto do meu quarto a gritar-me Estou inocente !
SE a voz do prisioneiro, afogado no Rio Grande de Buba - Morte justificada na linguagem militar (muito provavelmente) Atirou-se à água para tentar fugir, levando uma G3 (A G3 que tinha desaparecido e era preciso justificar) - não ecoasse nos meus ouvidos.
SE os sorrisos da minha Maimuna, que me acompanhou durante meses - Bebé amorosa, hoje mudjer garandi - deixasse o meu coração.
SE os canhões sem recuo que todas as noites faziam serenatas - ora em Gandembel, ora em Guileje, Gadamael, Cacine, Catió, Buba, ou ali mesmo onde eu estava - se calassem para sempre.
SE as corridas atarantadas para a vala, para o abrigo mais próximo ou o simples deitar no chão, cobrir a cabeça com as mãos e aguardar a bala ou o estilhaço que felizmente nunca chegaram até mim, cenas de filme repetido e que não me deixavam viver em paz.
SE a voz do Raul Fodé a convidar-me para deixar a arma e ficar em Empada com enfermeiro civil, com comida e mudjer garantidas.
SE...SE...SE...
Tantos SE que ficaram armazenados no sótão da minha consciência a atormentar-me. Armazenados, mas não apagados, dos quais me vou libertando com o tempo.
Não fiz guerra, porque a minha guerra era outra – prestar os socorros possíveis com um volume de soro fisiológico, algumas compressas e pensos, alguns injectáveis na sacola de enfermeiro e muita sorte, sobretudo. Mas, vivi os horrores de uma guerra que não queria. Guerra que era um dever patriótico. Veneno que me injectaram desde a escola primária, num Portugal pluri-racial de aquém e além mar que era preciso defender, até ao sacrifício da própria vida.
Guiné-Bissau > Buba > Tabanca Lisboa > 2005 > O Zé Teixeira, felicíssimo, com um puto ao colo, na tabanca Lisboa (um antigo centro de treino do IN, de nome Sare Tuto, a 5 km de Buba) (4)
Foto: © José Teixeira (2006). Direitos reservados.
Depois do meu regresso à Guiné [, em Abril de 2005], muitos SE se foram esbatendo. Revi um povo que continua pobre e sem rumo, com um futuro muito difícil, mas alegre como sempre o senti, acolhedor como sempre foi. Povo livre, senhor do seu destino, que lutava por uma vida melhor, vida que ambas as partes em contenda prometiam e foi por uns abandonado e pelos outros enganado.
Um dos fantasmas que me perseguia, era como seria recebido, agora que não tinha a força da G3 a impor-me. A surpresa no acolhimento, logo ao chegar à fronteira em Pirada, terra que só conhecia de nome, do tempo em que se ouviam os rebentamentos e alguém dizia - Pirada está a comer !
Guiné-Bissau > 2005 > Morcão e dragão, o Zé Teixeira pôde testemunhar e comprovar, algures numa tabanca do interior, o orgulho de se ser... portista!
Foto: © José Teixeira (2006). Direitos reservados.
Senti-me como que em Portugal. A preocupação do polícia, que me atendeu, foi saber onde tinha estado no tempo da guerra e lá localizou um irmão em Buba e um primo em Quebo. Queria saber se eu os conheci.
Revi amigos, antigos companheiros - Portugueses da Guiné, que lutaram a meu lado -, que se recordavam de mim, que me procuravam para recontar, recordando, cenas vividas em comum., que falavam de outros companheiros, uns desaparecidos que o tempo não perdoa, outros aqui ou além, na sua nova vida a que tiveram de se adaptar, outros que fugiram para nunca mais, ou ainda, os que foram assassinados com o estigma de traidores à Pátria, só porque estavam do lado errado, quando a guerra acabou.
Revi bajudas, agora mudjer garandi, com filhos e netos, que me recordaram velhos tempos de convívio e de namoro, porque não. Elas eram tão lindas ! Como nos divertíamos nos espaços de tempo que o bandido da mato nos permitia !
Visitei uma tabanca que foi base inimiga (Sare Tuto, ou Tabanca Lisboa, como os seus habitantes gostam que lhe chamem) situada a cerca de 5 Km de Buba (5).
Daí partiam para as emboscadas que sofri, para os ataques aos aquartelamentos, para me saudarem ao deitar, acordar de noite ou de manhã cedinho com as suas mortíferas canhoadas. Hoje, é, apenas e só, mais uma Tabanca da Guiné, cuja população já não precisa de se esconder quando ouve o Já passou (*), se é que ainda existem na Guiné aviões desse tipo, o que duvido.
Pude abraçar companheiros de guerra, que me fizeram cara a vida, porque estavam do outro lado da contenda, que ainda não sabem falar português, pois que retirados, talvez à força, sua terra, ainda muito jovens, aprenderam o francês como língua materna e agora servem-se do crioulo para comunicarem.
Que agradável encontro. Foi como que um fazer de pazes.
As tabancas cercadas com duas fiadas de arame farpado, deram lugar a grandes aldeamentos onde habitam milhares de pessoas, onde as pistas de aviação foram transformadas em zonas habitacionais ou campos de cultivo de caju, onde os quartéis se tornaram escolas. As picadas / estradas, outrora campos de morte, cumprem hoje, lá como em todo o mundo, a sua missão de interligarem povoações, de encurtarem distâncias, caminhos de um progresso bem merecido, mas que teima em não aparecer.
Com tudo isto, os fantasmas vão desaparecendo, enquanto a afeição pela Guiné, vai crescendo.
Zé Teixeira
(*) Nome que o IN dava aos Fiat – Caças a jacto da aviação portuguesa que, quando passavam resteiros, só se ouviam quando já estavam em cima do alvo... Logo, quem pudesse gritar Já passou, tinha escapado à sua acção mortífera
_____________
Notas de L.G:
(1 Vd. post de
14 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXVI: O meu diário (Zé Teixeira) (fim): Confesso que vi e vivi
Vd posts anteriores:
1 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDX: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (1): Buba, Julho de 1968(...) Buba, 21 de Julho de 1968: Agora me lembro, hoje é Domingo... Saí às cinco da manhã em patrulha de reconhecimento à estrada de Aldeia Formosa. Voltei a Buba onde assento desde ontem pelas treze e trinta, depois de uma marcha de cerca de vinte quilómetros debaixo de sol abrasador. O resto da tarde foi para dormir, estava completamente esgotado (...).
2 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXI: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (2): Buba/Aldeia Formosa, Julho de 1968(...) Buba/Aldeia Formosa, 24-26 de Julho de 1968: (...) A noite começou mais cedo neste negro dia de vinte e quatro de Julho! Esta vida salvava-se, mas um mal nunca vem só. A viatura atingida era o carro do rádio e consequentemente desde aquela hora (16 h) ficamos completamente isolados do resto do mundo. O ferido mais grave e que veio a falecer era o radiotelegrafista. Isto é guerra...Quando nos dispúnhamos a montar acampamento o radiotelegrafista morreu. Com o impacte do rebentamento tinha ido ao ar e caíu de peito, rebentando por dentro. Eu e o Catarino nada pudemos fazer (...).
2 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXIII: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (3): Aldeia Formosa, Julho de 1968 Aldeia Formosa, 9 de Agosto de 1968: (...) Um pelotão de milícia de Aldeia Formosa foi bater a zona de Mampatá, para confundir o IN e sofreu dois mortos e três feridos. Trouxe orelhas de vários IN, mortos durante o combate. É horrível, Senhor... dois mortos e três feridos e... orelhas de vários IN mortos. Alguns, foi a sangue frio, segundo dizem, depois de serem descobertos com ferimentos que os impediam de fugir. Tudo isto é guerra, enquanto uns estavam na rectaguarda feridos, outros, autênticas feras, procuravam IN, irmãos de raça, para os assassinarem (...).
2 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXIV: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (4): Aldeia Formosa, Agosto de 1968 (...) Aldeia Formosa, 28d e Julho de 1968: (...) Encontrei em Gandembel o Mário Pinto, meu colega de escola, contou-me coisas terríveis que se têm passado neste aquartelamento fortificado, junto à fronteira com a Guiné-Conacri que tem como objectivo cortar os carreiros de ligação à estrada da morte, impedindo o IN de fazer os abastecimentos (...).
6 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXXVII: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (5): Mampatá, Agosto-Setembro de 1968 (...) Mampatá, 7 de Setembro de 1968: Tenho que reagir. Estou-me portando pior que os outros. Onde está a minha força de vontade de viver segundo o meu projecto de vida ? Sinto-me só... recomeço a luta tanta vez... como fugir ?...Eu não quero matar. Eu não quero morrer. Quero viver, mas esta vida, não (...).
11 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXL: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (6): Mampatá, Setembro-Outubro de 1968 (...) Mampatá, 17 de Setembro de 1968: Dia de correio. Ainda cedo sentiu-se a avioneta de Sector em direcção a Aldeia Formosa. Aguardamos com ansiedade a viatura que partiu para lá....O Vitor escreveu-me. Por Bissorã nem tudo corre bem. Segundo ele, num pequeno incidente ficaram dois soldados inutilizados para toda a vida, ambos com uma perna amputada e um outro com a cara cheia de estilhaços. Além destes, uma nativa morta e outra sem uma perna. Tudo por rebentamento de minas A/P, montadas pelo IN. Numa saída em patrulha a malta vingou-se fazendo sete mortos e dois prisioneiros. O último a morrer foi o tipo que montou as minas e, pelo que ele conta, teve morte honrosa. Todos os africanos verificaram a eficiência das suas facas no seu corpo (...)
(...) Mampatá, 25 de Setembro de 1968: Como é belo sentir nas próprias mãos o pulsar de um coração novo que acaba de vir ao mundo. Um corpo pequenino, branco como a neve, puro como os anjos e no entanto, este corpo vai crescer, a pouco e pouco a natureza encarregar-se-á de o tornar negro como os seus progenitores, negro como os seus irmãos que hoje não cabiam em si de contentes. É puro como os anjos, a sua alma está imaculada, mas virá o tempo em que conhecerá o pecado, terá de escolher entre o bem e o mal (...).
Guiné 63/74 - CDLIV: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (7): Mampatá, Outubro-Dezembro de 1968(...) Mampatá, 29 de Outubro de 1968: (...) A família do sargenti di milícia Hamadu (1) estava toda reunida. No meio, um alguidar cheio de vianda (arroz) com um pequeno bocado frango frito:- Teixeira Fermero, vem na cume (Enfermeiro Teixeira vem comer). - Sentei-me meti a mão no alguidar, fiz uma bola com arroz bem temperado com óleo de palma e meti à boca (Em Roma sê romano). Estava apetitoso e eu estava cheio de comer massa com chispe que o cozinheiro confeccionava na cozinha improvisada ao ar livre, porque não havia mais nada. Estamos no tempo das chuvas, a Bolanha dos Passarinhos está intransponível pelo que não há colunas a Buba para trazer mantimentos (...).
19 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXI: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (8): Chamarra, Janeiro de 1969 (...) Mampatá, 5 de Janeiro de 1969: (...) Admiro esta população de Mampatá. Quando souberam que eu ia de serviço na coluna em substituição do Lemos vieram despedir-se de mim. Fui abraçado, as bajudas beijavam-me e cantavam uma melodia triste. Até dá gosto viver com esta gente.A mãe da Binta veio trazer-ma para lhe dar um beijinho e fazer um festinha como era meu hábito (Pegava nela e atirava-a ao ar dando a miúda e a mãe uma gargalhada). A Maimuna tinha oito luas quando cheguei a Mampatá (...).
(...) Chamarra, 23 de Janeiro de 1969: (...) Ontem ao anoitecer, em Aldeia Formosa, alguém, lançou uma granada de mão para a Messe dos sargentos. Não se sabe quem foi. Branco ou negro. Por vingança, por descuido. Os resultados foram tremendos. Dois soldados, meus camaradas, tiveram morte imediata e houve ainda dez Furriéis feridos, alguns com gravidade. As medidas tomadas pelo Comandante para descobrir o assassino ainda não resultaram.Aqueles dois colegas que casualmente se encontravam à porta encontraram a morte, pela mão de um companheiro cego pela loucura ou pelo ódio, tudo leva a crer (...).
24 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXXIV: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (9): Buba, Fevereiro/Março de 1969, 'manga de chocolate' (...) Buba, 20 de Fevereiro de 1968: Estou em Buba desde 7 de Fevereiro e as perspectivas não são muito boas. Gandembel foi abandonada e o IN entretinha-se por lá. Agora, talvez porque se está a construir uma estrada nova para ligar Buba a Aldeia Formosa, esta linda terra está a ser a preferida pelo IN para as suas brincadeiras.A estrada nova já causou um morto, o primeiro da minha Companhia quando eu ainda estava em Chamarra. O IN estava emboscado com dois fornilhos montados e, ao fazer rebentar a emboscada, provocou a explosão das armadilhas e um homem, o velho, foi pelos ares. Mais uma vida roubada (...).
30 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXXXVI: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (10): Abril/Maio de 1969, 'Senhora, nem Tu me salvaste!" (...) Buba, 19 de Abril de 1969: (...) Um pequeno incidente de palavras entre um soldado da minha Companhia [CC 2381] e um Comando Africano, quando tomavam banho, originou uma luta entre Fuzileiros e Comandos com consequências graves. Parece estar tudo louco (...).
6 de Fevereio de 2006 > Guiné 63/74 - DII: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (11): Desenfiado, em férias na Metrópole (Maio/Junho de 1969)(...) Bissau, 19 de Junho de 1969: Regressei a Bissau depois de um mês de férias na Metrópole onde pude participar no casamento do meu irmão Joaquim.A minha [licença] de férias foi cheia de aventura. O Comandante não assinou o Passaporte, pelo que não podia ir, apesar de ter a viagem comprada. Mandei um rádio para Bissau a anular a viagem e entretanto o Comandante foi para uma Operação.
(...) Entretanto aparecem dois bombardeiros no ar e o lugar do atirador vago. Ao pressentir que iam aterrar, fardei-me, peguei na mala e dirigi-me à pista com intenções de pedir ao Comandante da Esquadrilha para me levar, só que vejo sair do outro Bombardeiro nada menos que o meu Comandante que regressava da Operação (...).
8 de Fevereiro de 2006 >A Guiné 63/74 - DV: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (12): A morte do Cantiflas (Julho de 1969)(...) Buba, 18 de Julho de 1969: (...) Para morrer basta estar vivo, não interessa o local ou meio. De paz ou de guerra. A morte aparece em qualquer sítio e a qualquer hora. O Cantinflas estava na guerra.. Caíu debaixo de fogo várias vezes, sofreu os efeitos de uma guerra traiçoeira, sem o mais pequeno ferimento, mas a morte espreitava-o impiedosamente e há dias, através de um choque eléctrico, veio ter com ele (...).
9 de Fevereirod e 2006 > Guiné 63/74 - DVIII: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (13): Vi a morte à minha frente (31 de Julho de 1969)Buba, 31 de Julho de 1969: Vi a morte à minha frente. Saí de manhã até à Bolanha de Beafada, a montar segurança à coluna que ia para Aldeia Formosa. Tinha como missão assistir os Picadores que iam à frente a tentar detectar as possíveis minas que o IN costuma colocar. Coloquei a bolsa na 1ª viatura e segui à frente da mesma.Como havia muitas poças de água, instalei-me ao lado do condutor. Em determinado momento tive um pressentimento e saltei da viatura seguindo à sua frente. Não andei 50 metros e senti um rebentamento, fui projectado pela deslocação do ar e senti algo a cair em cima de mim, deduzindo que eram estilhaços. Pensei:- Desta não escapo (...).
11 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXX: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (14): De que lado estaria Deus ? (Agosto de 1969)(...) Buba, 7 de Agosto de 1969: As colunas de abastecimento a Aldeia Formosa e povoações limítrofes continuam a dar que falar. Ontem, seguiu mais uma e, ao chegar ao Pontão de Uane, uma mina anticarro rebentou debaixo da 14ª viatura, projectando os seus ocupantes a grande altura, pois a viatura seguia sem carga. Três mortes instantâneas, todas de africanos e nove feridos graves, entre os quais dois colegas meus. Foi este o resultado (...).
20 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXVII: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (15): um dia negro para a 15ª Companhia de Comandos (Setembro de 1969)(...) Empada, 9 de Setembro de 1969: Na estrada de Fulacunda, mais 8 Comandos e 3 soldados ficaram sem vida. Houve ainda sete feridos graves, entre os quais o meu amigo Zé João, enfermeiro comando. Uma mina anti-carro de grande potência atirou com a viatura cheia de militares, que estiveram comigo em Buba (15ª Companhia de Comandos) contra um tronco de árvore que se debruçava sobre a estrada, matando uma série deles instantaneamente. No buraco feito pela bomba pode-se esconder uma viatura, tal era a sua potência... (...)
8 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXVII: Dia Internacional da Mulher (5): 'Fermero, ká na tem patacão pra paga, fica ku minha mudjer' (Zé Teixeira) .XVI Parte de O Meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (16)
9 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXX: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (17): Este gajo estava mesmo apanhado (...) Empada, 16 de Outubro de 1969: Do pelotão que está em Buba chegam novidades. Há dias houve por lá um terrível ataque com tentativa de assalto. Atacaram do sítio habitual do lado do rio com 10 Canhões s/r (...) Segundo dizem os meus colegas eram mais de duzentos, a avançarem em arco para que se as nossas forças saíssem a envolverem. Felizmente estava emboscado um Pelotão que os detectou. Parece que foi um tremendo fogachal, enquanto os Fuzas perseguiam os que atacaram do lado do rio que pretendiam reforçar as forças de assalto (...).
12 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXII: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (18): Empada, Novembro/Dezembro de 1969 )...) Empada, 20 de Novembro de 1969: O Kebá aparecia todos os dias na Enfermaria. É o nosso ajudante no tratamentos da população. Trata as pequenas feridas. Elas já sabem:- Kebá põe mercuro ! - e ele põe.- Kebá, parte quinino! - e ele vai buscar LM. Vão-se embora todos contentes. Ao Almoço lá lhe trazemos uma cantina cheia de comida. É a nossa paga. Há dias deixou de aparecer. Estranho, mas como tem duas mulheres e vários filhos no mato, admiti que tivesse ido embora.Ontem vi-o a carregar barricas de água, da fonte para o jardim do chefe de posto. Perguntei-lhe porque deixou de aparecer e fiquei horrorizado. Estava preso por não pagar o Imposto de Pé Descalço.Vim para o Quartel e a minha revolta fez-me agir. Um quarto de hora depois estava a casa do Chefe de Posto cercada por militares armados de G3 a exigirem a libertação do Kebá (...).
(2) Vd. post de 11 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCXCIII: Notícias do Zé Teixeira: da Ponderosa (CCAÇ 616) a Gandembel (CCAÇ 2317) (José Teixeira)
(...) "A Ana Ferreira diz que o pai esteve na tabanca Ponderosa, cujo nome nome verdadeiron não conhece. Pois bem, trata-se da Tabanca de UALADA.
"Houve uma Companhia que em memória da célebre série da TV Bonanza fez um pórtico com o nome RANCHO DA PONDEROSA e este vingou, ficando a ser conhecida por todo o branco como Ponderosa.
"Em 1969 a Tabanca estava deserta. Tinha sido abandonada e a população recolhida em Empada. Como tinha um bolanha muito produtiva, a população ia todos os dias para lá trabalhar nos campos de arroz e a minha Companhia fazia deslocar 2 Secções para o local, no sentido de proteger a população. Algumas das fotos que te enviei (Em cima de um bagabaga) foi tirada lá. Vou ver se consigo um foto que já vi, com o pórtico do Rancho da Ponderosa" (...).
(3) Vd. post de post de 26 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1214: Tão longe e tão perto, camaradas de Empada, Gandembel, Guileje, Buba, Mejo, Cacine, Tite, Guidaje ... (Zé Teixeira)
(4) Vd. post de 2 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1239: Recordando o meu pai: era o silêncio o que mais custava ouvir-lhe (Ana Ferreira)
(5) Vd. post de 26 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCI: Onde ficava Sare Tuto ? (Afonso M.F. Sousa)
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