quinta-feira, 23 de novembro de 2006

Guiné 63/74 - P1308: Doces mentiras, amargas verdades (2): as nossas (in)comunicações (Beja Santos)

Photobucket - Video and Image Hosting
Guiné-Bissau > Cacheu > Barro > 1968 > Feliz Natal..."Este é mais outro aerograma que descobri. Mandei-o, pelo Natal, em 1968. O que eu quis transmitir é que eram natais de morte e que o que procurava era esquecer, dando de beber à dor".

Aerograma:"Querida irmã e cunhado, um Natal feliz e que o Ano Novo seja sepre melhor que o anterior. António Manuel... Uma ginginha!.. Pois dar de beber à dar é o melhor"...

Foto: © A. Marques Lopes (2005)


Texto do Beja Santos:

Caro Luís, caros tertulianos, só a título excepcional é que contamos uma versão integral, sincera e cabal de acontecimentos, em contexto bélico ou fora dele. Todos nós recebemos instruções para nunca falar da guerra, a quem quer que seja. O aerograma era só para mandar cumprimentos e expressar seráficos estados de alma.

Nunca respeitei esta fórmula e desobedeci através de inúmeros expedientes. À minha namorada contei sempre tudo e quase diariamente. O tudo era a meus olhos aquilo que a podia interessar quanto a uma vida que não se podia acompanhar. Daí falar-lhe de um quartel que ardia e se reconstruía, do estado de saúde dos outros, das vitórias em alcançar bem- estar para a comunidade, etc. Eram um tudo a meus olhos genuíno e que, compreensivelmente, só pedia a contrapartida afectiva.

Este diário é tão importante que sem ele se teriam perdido episódios que hoje me catapultam para escrever a realidade/ficção Operação Macaréu à Vista (1). Reduzi ao limite as doces mentiras e as meias verdades: nunca dilatei a descrição das flagelações, emboscadas, minas, mortos, estropiados e feridos ligeiros. A minha comunicação era a melhor relação possível sem sobressaltar até à dor irrepremível quem me lia, fosse qual fosse a graduação do afecto. Aliás, nós precisávamos do nosso quinhão de doces verdades e doces mentiras, era o embalo para os melhores dias de que todos suspirávamos. Ninguém projecta o dia de amanhã sem algumas ilusões e quimeras.

Obviamente que fui mais cuidadoso com a minha Mãe e outros familiares. Com os amigos, joguei sempre na autenticidade, mas procurando não os consternar com matérias que para eles eram totalmente incompreensíveis. Quando o meu querido amigo Carlos Sampaio foi para o Norte de Moçambique, em 1969, as nossas cartas eram bem verdadeiras, ali não havia nada que eu quisesse esconder, exigia a interlocução frontal. O mesmo procurei fazer com os meus antigos soldados da CCAÇ 2402, a que pertenceu o Raúl Albino (2). Mas conheci sádicos, ou talvez pessoas muitíssimo doentes, que pormenorizavam todas as situações ou, pior ainda, falavam de um mundo que não existia, refugiando-se na banalidade de um quotidiano em algodão de rama.

Considero que a nossa correspondência é fundamental para a história da guerra colonial e porventura mais significativa que a maior parte dos relatórios das operações, onde tantas vezes se mentia deliberadamente ou se atribuia importância ao insignificante . O essencial no nosso correio, como diria o poeta, era dizer: Meu amor estou bem e, acima de tudo, tu estás a receber uma carta de quem precisa do teu carinho.

Cumprimentos do
Mário Beja Santos.
__________

Notas de L.G.:

(1) Vd. último post, de 22 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1304: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (21): A viagem triunfal do Pimbas a terras do Cuor

(2) Vd. post de 15 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1282: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (1): duas baixas de vulto, Beja Santos e Medeiros Ferreira

Sem comentários: