sexta-feira, 27 de junho de 2008

Guiné 63/74 - P2990: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (36): Um memorável batuque, em Bissau, na Mãe de Água, em honra da Cristina



Subintitulado «Crónica de uma cidade interior», Prefácio de Ferreira de Castro, Capa deslumbrante de António Domingues, Publicações Europa-América, 1960. É um romance gigantesco,uma obra susceptível de escapar à erosão do tempo.Gigante no recorte dos personagens,na trama, na história de amor,na tragicomédia do poder.São Jorge de Ilhéus ganha uma dimensão de um Novo Mundo,dos negócios,da multiculturidade,das paixões.A luta entre conservar e progredir, a tensão entre a velha e a nova classe,entre a paixão sem medida e a liberdade de um amor verdadeiro.Foi uma grande felicidade, reler este prodígio, 40 anos depois.


Fotos (e legendas): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.

Texto do Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1), enviado em 19 de Março de 2008:


Luís, aqui vai o episódio n.º 36, amanhã começo a escrever o 37. Interromperei entre 31 de Março e 10 de Abril, faço umas férias de desintoxicação, embora saiba já que os restantes episódios que faltam escrever andem a bailar na cabeça. Tens aí as ilustrações, agora vou para a neuropsiquiatria, é a vez do Jorge Cabral me invejar a capacidade de delirar, de gargalhar e surrealizar os territórios da guerra. Recebe um abraço do Mário



Operação Macaréu à vista > Episódio XXXVI > UM GRANDE BATUQUE PARA A SENHORA DE ALFERO
por Beja Santos (1)

(i) Chegou a vez de Cherno Suane entrar em cena


Ainda não era 9h de uma noite quente de Março de 2008 quando Abudu Soncó e eu atravessámos o Largo de São Paulo, ali ao lado no Mercado da Ribeira, enfiámos numa rua estreita e tocámos na campainha de um primeiro andar. A janela abriu-se de repelão e Cherno Suane, vasculhando demoradamente a rua com a sua miopia acentuada, recebeu-nos com uma casquinada, mandou-nos subir.

Entrámos numa dessas residenciais em trânsito onde os guineenses pernoitam por tempo limitado ou até por largos meses, até alugarem um quarto ou uma casa: uns, ouvem a telenovela da Guiné-Bissau, um deficiente visual (ex-combatente que picou uma mina numa estrada em Mansoa) desloca-se no corredor e fala ao telemóvel, há uma divisão onde as visitas estão a deixar encomendas, alguém parte em breve para Dakar.

Cherno abraça-me, perguntamos pelas nossas famílias, retiro o meu caderninho viajante do bolso, rememoro com a sua ajuda algumas datas dos últimos trinta e oito anos: em 1970, Cherno, com Mamadu Camará e Queta Baldé, abandona o Pel Caç Nat 52 e vai para a 2ª Companhia de Comandos Africana, que estava a constituir-se em Fá. Ficou nesta unidade até à independência. É preso e levado para o Cumeré, vê execuções, vive diariamente humilhado e aterrorizado. Um dia escapa-se e foge para Bambadinca, o comité local do PAIGC, ao princípio, nega-lhe a entrada no Cuor, ele esconde-se na mata, mais tarde consegue arranjar trabalho na importante serração da Socotran, em Biassa, Gambiel.



Cherno Suane regressou finalmente a Portugal, depois de 2 anos em Bissau e Missirá. O que lhe devo não tem preço,é uma desmedida que me tolhe o sentimento. Partiu do Pel Caç Nat 52 para a 2ª Companhia de Comandos Africana, em 1970, levava consigo uma folha de serviços invejável. Em 1974, foi preso e assistiu aos horrores do Cumeré, com as suas execuções sumárias e as humilhações mais degradantes a que se pode sujeitar o ser humano. Foi trabalhar para a Socotran, no Gambiel, depois de ter fugido. Reencontrámo-nos em 1990, em 1991, quando fui cooperante na Guiné-Bissau, fiz o que era possível para o trazer, depois aqui recebeu nacionalidade , tem uma pensão pequenina, continua a trabalhar.


É ali que eu o vou encontrar, em 1990, e em 1991 iniciou-se o processo para vir para Portugal, o que aconteceu no ano seguinte. Cherno é hoje cidadão português, tem uma pequena reforma da segurança social, e, como muitos outros militares com uma relevante folha de serviços de louvores e condecorações, tem um trabalho humilde para subsistir e ajudar a família.

Traz-me correio de antigos soldados, faço perguntas sobre a nossa gente e quando vem à baila o nome de Trilene, um valoroso milícia de Missirá que fora para os Comandos (Demba Baldé, mas que gostava tanto de calças em terilene, que ficou assim conhecido), o rosto de Cherno ensombrou-se, baixou ainda mais o seu melodioso fio de voz, parecia que me estava a segredar:
-Desculpa, nunca te disse, foi fuzilado também em 1977, por engano, não podes imaginar os gritos que deu diante dos que o mataram, a perguntar porquê, porquê, o que é que eu fiz?

E deu ainda mais notícias: Ussumane Baldé, que fora o 104, o meu soldado prussiano, morreu muito doente, também queria vir para Portugal ganhar a vida, Adulai Djaló, o Campino, trabalha agora no Senegal para sobreviver. Oiço-o atentamente, faço perguntas com a voz embargada, sinto pelo meu guarda-costas um grande enlevo. Não o vejo há mais de dois anos, no início de 2006 Cherno partiu para Bissau para construir uma nova casa, voltou a casar, foi fazer negócios ao Senegal, chegou há dias, trouxe escultura em madeira que tanto aprecio, aprazámos este encontro com toda a urgência. Estamos a pôr a escrita em dia, conto-lhe esta aventura narrativa de toda a minha comissão na Guiné, começara a escreve-la quando ele já partira, peço-lhe encarecidamente ajuda, ele foi cumprimentar-nos à Catedral de Bissau em 16 de Abril de 1970, a seguir organizou um grande batuque em honra da Cristina, um acontecimento memorável na Mãe d’Água, na rua de Boé, no Cancote, perto do mercado de Bandim.

- Cherno, por favor, conta-me tudo, houve batuque, dança e marimbas, lembras-te?
Felizmente que Cherno se lembra de quase tudo.


(ii) O grande batuque na Mãe d’Água


Os mandingas são grandes músicos e adoram dançar. Possuem um bailado individual, lento e muito cadenciado, à partida; depois, com os acordes do tambor, o ritmo cresce freneticamente. A batucada aparece associada à dança. São bailados que se executam em círculo, três tambores de diferente porte asseguram esse ritmo trepidante, avassalador. As raparigas têm um papel importante, competindo-lhes acompanhar o tambor com cânticos e palmas. Os três artistas do tambor, que respondem pelos diferentes ritmos do batuque, acompanham as danças das raparigas. Ela avançam devagar em direcção ao local onde está o músico, da lentidão passam à rapidez dos movimentos.

A tradição dos grandes batuques, nas tabancas, é realizarem-se só à noite, mas a guerra veio alterar tudo, naquele dia 18 de Abril de 1970 Cherno Suane encomendara o batuque para as 6h da tarde, dera instruções sobre o que queria que se cantasse, convidara um roda de raparigas, alguns caramôs (pessoal notável pelos conhecimentos do Alcorão, da escrita e da língua mandinga) iriam assistir, bem como familiares dos Soncó, dos Mané, gente de Farim, da família de Cherno, talvez aparecesse um tocador de Korá, mas só depois do batuque e da dança.

Saímos do Bairro da Ajuda, Cherno, Cristina e eu, foi um passeio agradável até à Mãe d’Água, o calor abrandara. Cherno insistiu em pagar tudo, não sei se pagou em dinheiro, em cabritos ou outros alimentos. Quando chegámos, já havia um círculo, a pequena multidão engrossava com mirones, alguns balantas-mané ofereceram-se para tocar marimbas. Como na Grécia clássica, dois jovens untavam o tronco, vestiam calções de algodão colados às coxas. Um simpático caramô procurava explicar-nos o essencial daquele torneio de luta: os lutadores têm uma dança própria, também ao som de três tambores, desafiam-se por gestos, mostram amuletos, são ovacionados, não aqueles que estamos agora a ver, são jovens amadores, mas os outros que pelejam em torneios são conhecidos por alcunhas artísticas: djató (leão), ñ ñ kumó (gato), çubá lóló (estrela da manhã). Assistimos a tudo de pé, os jovens faziam piruetas, desafiavam-se empinando busto, parece que tinham deitado pela cabeça abaixo um líquido que contera a tinta com que se escrevera versículos do Corão, eram ágeis nos golpes de braços e pernas, quando um deles caiu no chão, alguém, feito árbitro decidiu quem tinha sido o vencedor.

Os lutadores saíram, a roda estava cada vez maior, entraram os tocadores, um dançarino emplumado, as raparigas começaram a fazer o coro e a bater as palmas; o bailarino saracoteava-se, parecia recorrer à pantomima, depois falava, a assistência acenava, parecia confirmar o que ele dizia, depois o coro erguia a vozearia, os tambores irrompiam com a sua música. Cherno tinha-me avisado durante o percurso que o bailarino/cantor iria exaltar as minhas façanhas, imagine-se. Sei que foi a meio deste bailado que Cherno começou a vociferar, o olhar cuspia fogo, o bailarino protestava com igual veemência.

Achei estranho este repentino desaguisado, novamente o caramô justificava-me a zanga dizendo que Cherno exigia para que o bailarino/cantor falasse mais das minhas façanhas, era para isso que ele lhe tinha pago. Terão certamente chegado a um acordo, pois ainda houve mais música e dança, a seguir ainda apareceu outro bailarino enfeitado com um barrete, chegara a hora dos balantas-mané exibirem as suas marimbas de vinte teclas tocadas com pequenos paus, era um som muito agradável, debaixo das teclas viam-se pequenas cabaças, fiquei a pensar como a cabaça permite tão belas ressonâncias. À despedida, o bailarino percutiu intensamente o grande tambor, a assistência bateu as palmas apoteoticamente e depois veio cumprimentar-nos.

Anoitecera completamente, convidámos Cherno a vir jantar connosco, viemos passeando sem pressa, ao longe via-se o Bandim Alto e o cais da Dicol, em panorâmica, descemos como se fôssemos para a Amura, virámos à esquerda e fomos jantar ao Pelicano. Se reconstituo esta tarde inesquecível é porque Cherno guardou tudo e prometeu dar-me mais ajuda sobre os acontecimentos de Maio, Junho e Julho, em que disponho de pouca correspondência para a Cristina.

Findo o encontro com Cherno, quando voltámos a atravessar o Largo de São Paulo, em direcção ao Cais do Sodré, eu recordei a Abudu Soncóum acontecimento de grande delicadeza, que viera confirmar a amizade sem mácula que eu nutria por Cherno, ao longo destas décadas. No princípio de Agosto de 1970, o Pel Caç Nat 52, completamente aprumado e ataviado, leva-me ao Xime, de onde vou partir para Bissau. A lancha sairá dentro de minutos, faço questão de voltar a agradecer a todos a camaradagem que partilhara com eles durante dois anos, as lições de coragem que deles recebera.

Despeço-me emocionado de todos e quando pergunto pelo Cherno, o último de quem me faltava despedir, alguém me disse sem hesitação, justificando assim o seu desaparecimento:
- Não gostamos que nos vejam a chorar, Cherno sabe que acaba de perdeu um grande amigo, não vai voltar a ser guarda-costas de ninguém, e ele não quer que se saiba que está triste.

Fora esta mágoa de Cherno que eu levei para Bissau, quando a guerra acabara para mim.



(iii) Os nossos passeios pela península de Bissau


Até ao fim do mês de Abril [de 1970] vagabundeámos no que se chama a península de Bissau, entre o rio Mansoa e o Canal de Geba, onde estão Quinhámel, Prábis, o Cupelão, Safim, até Nhacra. Chegámos a ir até João Landim, mas houve o bom senso de não viajar para Mansoa ou mesmo Bula. Viajámos na companhia da Inês e do Alexandre Carvalho Neto (este desapareceu da circulação a partir de 21 de Abril, após o massacre, no dia anterior, de quatro oficiais no chamado “chão manjaco”), da Elzira e do Emílio Rosa, da Isabel e do David Payne, do Rui Gamito e outros. Era um turismo de fim de tarde, umas vezes íamos até junto ao mar, outras vezes internávamo-nos por estradões entre palmeiras poilões e bissilões, vimos Bissau no lado do Cumeré, petiscámos em Quinhámel e Nhacra.

Todos os passeios possíveis dentro da cidade de Bissau tiveram lugar: as cavernas de Ali Bábá da Taufik Saad e Casa Gouveia, o Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, o museu, a Associação Comercial e Industrial, a Udib, o porto, os cafés, os serões no convívio do Quartel General, com ou sem cinema. Telefonámos para Lisboa, escrevemos, lemos. Recordo um livro espantoso que a Cristina tinha trazido, Gabriela Cravo e Canela, de Jorge Amado.

Deste autor lera anteriormente Jubiabá, Mar Morto e Terras do Sem Fim. Aliás, encontrei afinidades entre este último e Gabriela, são passados em São Jorge de Ilhéus, nos tempos heróicos do cacau. Gabriela é um romance monumental, tem uma galeria de figuras de primeira água na literatura brasileira, com Gabriela e Nacib, o coronel Ramiro Bastos e Mundinho Falcão, o Capitão, o Doutor, Malvina, os ambientes como os bares e os bordéis parecem saídos de quadros em movimento, o presépio das irmãs Dos Reis é alucinante, a luta entre os conservadores e os progressistas é tão impressiva naqueles anos vinte como naquele 1970 em que dela partilhávamos o fulgor literário.

Líamos o livro da seguinte maneira: a Cristina estudava ou escrevia, eu lia a chegada da Gabriela a Ilhéus e como fora recrutada para o bar Vesúvio; enquanto eu escrevia, a Cristina lia o que se estava a passar no bar Vesúvio, com Chico Moleza e Bico Fino a servir de mesa em mesa, com a ajuda do negrinho Tuísca, seu Nacib a conversar com o coronel Manuel das Onças ou o Dr. Maurício. Depois comentávamos a vivacidade da prosa, a descrição das atmosferas, o prodígio dos diálogos. Aprendi pois que um bom livro pode entrar numa lua-de-mel, exercitar apreciações a dois, desenhar até um novo tipo de comunicação nos casados de fresco. À noite, visitámos amigos de amigos e foi assim que conheci o compositor Pedro Jordão, creio que fazia parte do Fotocine, voltei a vê-lo em Junho quando ele veio filmar as obras do alcatroamento da estrada Xime-Bambadinca.

Assim passávamos uma lua-de-mel serena, às vezes ouvindo o troar longínquo dos canhões e morteiros, às vezes os temas bélicos entravam insidiosamente nas conversas, como tínhamos projectos para o nosso futuro, como a Cristina ainda sonhava fazer alguns exames em Junho, andámos entre a casa dos Payne, o Grande Hotel e a pensão da D. Berta sempre divertidos, a Cristina mergulhada nos seus apontamentos de estudo, eu escrevia, lia policiais e até livros religiosos. Tinha levado O Senhor, de Romano Guardini, obra de grande profundidade, e li em pequenos sorvos Poemas para Rezar de Michel Quoist. Estes poemas impressionaram-me muito, como se a vida fosse tornada oração, um diálogo permanente com Deus no quotidiano, poemas sobre as crianças, sobre a paz, orações para acompanhar a Via-Sacra. Estas meditações trouxeram-me alívio, julguei-me melhor preparado para o Seu Reino de justiça e de amor.


Era um livro de referência na JUC (Juventude Universitária Católica, onde militei).

Tradução de Lucas Moreira Neves, revista por Pedro Tamen, capa de Sebastião Rorigues,4ª edição, 1967, Livraria Morais Editora.

Preces curtas, ajustáveis aos novos tempos de então:hinos para as crianças, reflexões do padre-operário,orações na escola,aceitação do Amor.Trouxe para os cristãos uma abordagem refrescada da oração,nessa nova atmosfera da recém aparecida sociedade de consumo.




Findava o mês de Abril quando o David Payne me recordou que chegara a hora de me apresentar no HM 241. Cordato, tudo aceitei. Uma noite, depois do jantar, ele preparou a Cristina para o insólito que se ia seguir: além de uma consulta de rotina à oftalmologia, iria ser internado nos serviços de neuropsiquiatria. Se é verdade que a guerra tem dimensões de crueldade inultrapassáveis, no meu caso iria beber uma volumosa taça de grotesco, ladeado por dois perturbados mentais com quem vivi alguns dos episódios mais hilariantes da minha vida.

Como passo a contar.
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Nota de L.G.:

(1) Vd. poste de 20 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2968: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (35): Just Married

1 comentário:

Rui Moio disse...

Lindo texto de Beja Santos.
Aconselho os mais novos a ler para que a nossa História da Portugalidade que estávamos a construir no ultramar não seja esquecida. É necessário que os mais novos de todo o antigo Portugal conheçam nos nossos heróis e a desonra e desumanidade de um golpe traiçoeiro que destruiu a obra que estávamos a construir na sequência normal da História de oito séculos de Portugal. Queríamos continuar a ser a nação mestiça e negra, asiática e índia que sempre fomos.
Rui Moio