terça-feira, 5 de agosto de 2008

Guiné 63/74 - P3112: História de vida (13): O meu amigo Nelson Batalha (Helder Sousa)



Helder Sousa
ex-Fur Mil de Transmissões TSF
Bissau e Piche
1970/72


1. Recentemente recebemos uma mensagem do nosso camarada Helder Sousa, contando uma História de Vida, desta feita do seu amigo e camarada, e nosso camarada também, Nelson Batalha.

Caros Editor e Co-Editores
Hoje vou dar-vos a conhecer um pouco mais do meu amigo Nelson Batalha, nosso camarada da Guiné que levei o ano passado ao Encontro da Tertúlia, em Pombal.

Já me referi a ele nas histórias que contei sobre a minha (nossa) viagem de Lisboa para Bissau, no Ambrizete, e também nos apontamentos que indiquei sobre os primeiros tempos passados nas Transmissões.

Acontece que este meu amigo não tem passado muito bem (acho que é vulgar dizer-se isso sobre quem esteve em teatro de guerra...), tem problemas de alzheimer (ainda não muito desenvolvidos) e nunca recuperou bem depois de ter acabado a sua profissão (era Despachante Alfandegário), sendo que da guerra da Guiné ainda guarda no corpo alguns estilhaços que foram absorvidos pela massa muscular, estilhaços esses adquiridos em Catió aquando do ataque a esse aquartelamento/povoação em Abril de 1971 (salvo erro a 13 ou 14).

Isto vem a propósito do seu aniversário, que foi no passado dia 15 de Junho, e que mais uma vez me deixou um pouco deprimido pela impotência que sinto em não o poder ajudar mais.

2. O meu amigo Nelson Batalha
Fomos para a Guiné juntos no mesmo barco (com o Manuel M. Martins) e em Bissau juntaram-se os outros 4 elementos do mesmo curso de TSF, num total de 7 rendições individuais que tiveram destinos diversos.

Assim, o Fur Mil António Calmeiro conseguiu ser colocado em apoio administrativo, os Fur Mil Eduardo Pinto e José Fanha (isso, primo do famoso dos concursos da televisão) ficaram adstritos à Companhia de Transmissões onde foram dar corpo à criação e desenvolvimento do aqui já referido Centro de Escuta da Guerra Electrónica e eu, o Nélson, o Martinho e também o Fur Mil Dutra Figueiredo ficámos a receber instrução específica e dedicada no STM para depois seguirmos para Postos no mato. O Dutra foi para Farim, o Martinho para Tite e eu e o Nelson Jogámos às moedas para ver quem ia para Piche (fui eu) ou para Catió (foi ele).

O nosso conhecimento já era anterior à da incorporação na vida militar. Ou melhor, ele já me conhecia, eu nem tanto no que a ele dizia respeito, pois ambos estudávamos no velho Instituto Industrial de Lisboa mas eu teria eventualmente mais alguma visibilidade por via da minha participação na vida associativa estudantil, apesar de cultivar sempre o low profile.

Certo dia (melhor, certa noite) de Agosto de 1970, estando nós no Porto, no antigo Regimento de Transmissões situado junto ao Jardim da Arca d'Água, onde dávamos instrução a várias fornadas de futuros telegrafistas, fomos ficando à conversa sobre diversos assuntos, fazendo tempo para a hora da ronda (a minha seria às 24 horas). Nessa conversa, para além de nós os dois, estava também pelo menos um dos dois colegas de curso que eram naturais do Porto e que iriam naturalmente pernoitar a casa, excepto quando tinham serviço, o José A. Reis e o Fernando Cruz, por sinal excelentes amigos e bons camaradas. O Reis não chegou a ser mobilizado e o Cruz foi para Nampula, Moçambique.

Ora acontece que o Nélson era conhecedor das minhas opiniões quanto à justeza da guerra, sabia do meu empenhamento no movimento associativo estudantil e eu, por meu lado, também conhecia a propensão que ele por vezes tinha para a provocaçãozinha, para a ligeireza no abordar dos assuntos, para avacalhar as conversas. Daí que, pesando tudo isso, não me importei muito quando ele, a partir de certa altura, começou a arrancar com o festival de alarvidades com que foi mimando a nossa conversa, pois isso dáva-me oportunidade para, ao argumentar contra o que ele dizia, ir fazendo a defesa das posições que achava justas e ir fazendo passar as minhas convicções, com todas as cautelas possíveis, não esquecendo que se estava em 1970 e num quartel...

O que eu não contava era que me deixei enredar nas provocações e (lembro-me bem) apesar de perceber que estava a morder o anzol estava a deixar-me ir na onda e as coisas azedaram mesmo! Ele, só para me provocar e puxar por mim (disse-me depois), socorria-se de tudo o que era o mais reaccionário possível, do tipo fazíamos muito bem em ir defender a Pátria em África porque aqueles territórios eram nossos por direito divino, que era sabido que os pretos eram naturalmente inferiores, que de acordo com a teoria da evolução humana descendíamos dos macacos e a prova disso eram os pretos, que estavam entre os símios e os homens, que aqueles que se opunham à guerra estavam a soldo de potências estrangeiras, para fins inconfessáveis e outras bojardas do mesmo quilate.

Fui defendendo os meus pontos de vista com a serenidade possível mas a certa altura, com toda a camarata a dormir (impossível, porque o tom de voz tínha-se elevado pelo empolgamento que a situação proporcionou), excepto os três ou quatro que mantínhamos a discussão, acalmei, e disse-lhe muito solenemente:
- Olha Batalha, tu não acreditas que vai haver uma revolução, mas podes ter a certeza que isso vai acontecer, não te posso dizer quando, mas que vai haver, lá isso vai, e nessa ocasião, a manteres esses pontos de vista, vamos estar em lados opostos da barricada e desde já te garanto e aviso, se tiver que enfiar um tiro nessa tua cabeça dura podes crer que o farei!

Como é natural, houve por breves instantes um silêncio ensurdecedor, depois todos os que dormiam começaram a agitar-se para ver se iria haver algum drama, o que não aconteceu, pois fui fazer a ronda...

A minha amizade pelo Nélson Batalha deve ter começado a cimentar-se naqueles instantes. Deve-se ter feito juz ao velho ditado queres um amigo, dá-lhe porrada. Pelo Cruz e pelo Reis o meu respeito, admiração e carinho são, ainda hoje, enormes. O Nélson é o meu padrinho de casamento (e não só) e vê-lo a perder faculdades dá-me um aperto que acho que precisei de relembrar este episódio para tentar ultrapassar a tristeza.

Que conclusões tirar?
Que a amizade não tem limites?
Que tenho jeito para premonições, porque previ o 25 de Abril quase 4 anos antes?
Que é sempre bom ser assertivo e não contemporizar com as situações com que não se concorda?

Pois, meus amigos, colham vocês as vossas próprias conclusões, que isto é suficientemente plural para cada um tirar a sua!

Um abraço e até breve!
Hélder Sousa
Fur Mil Transmissões TSF

Bissau > Restaurante Pelicano > Helder Sousa, Fernando Roque e Nelson Batalha

Bissau > Santa Luzia > Messe dos Oficiais > Nelson Batalha, Helder Sousa e José Fanha

Fotos: © Helder Sousa (2008). Direitos reservados.


Pombal, 2007 > Nesta foto, o nosso camarada Nelson Batalha está assinalado com a elipse encarnada

Foto: © Luís Graça (2007). Direitos reservados.

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Nota de CV

(1) - Vd. último poste da série de 31 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3101: Histórias de vida (13): Desistir é perder, recomeçar é vencer (Carlos Schwarz, 'Pepito', para os amigos)

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