terça-feira, 27 de julho de 2010

Guiné 63/74 – P6798: O mundo é pequeno e a nossa Tabanca... é grande (24): Fátima Amado, filha do nosso camarada João Amado, encontra no nosso Blogue notícias sobre a morte de seu pai (Juvenal Amado / Carlos Vinhal)


Guiné > Zona Leste > Sector de Galomaro > CCAÇ 3489/BCAÇ 3872 (1971/74) > Aquartelamento de Cancolim

Foto: © Rui Baptista (2009). Direitos reservados



1. Comentário de Fátima Amado, deixado no dia 26 de Julho de 2010, no Poste 3126 (*), dirigido ao nosso camarada Juvenal Amado (**):

Caro Senhor,
As minhas mãos tremem à medida que avanço na leitura do seu relato, procuro há décadas alguém que me conte uma história de embalar, digo de embalar porque o meu coração não sossega.

O meu nome é Fátima Amado, filha de João Amado, o soldado que morreu...

Tenho por fim um relato desse dia malfadado que me roubou o meu querido pai, esse menino soldado... e embora não seja esta uma estória de embalar, 38 anos depois responde a algumas perguntas... morreu rápido, tão rápido como viveu, e eu hei-de honrá-lo e amá-lo para além do infinito.

Se alguém conheçeu o meu pai e por delicadeza queira partilhar comigo algum relato, deixo aqui o meu contacto de e-mail, mailro:fatima-amado@hotmail.com, fico-vos eternamente grata.

Fátima Amado


2. Este comentário foi enviado pelos editores ao nosso camarada Juvenal Amado, para conhecimento:

Caro Juvenal
Para teu conhecimento e uma palavrinha amiga.


3. No dia 27, Juvenal Amado dirigia-se assim à nossa leitora Fátima Amado:

Minha querida senhora
Não vou mentir que os olhos se me encheram de lágrimas ao ler o seu e-mail.

Leio e releio, e a dor das suas palavras, cavam dentro de mim um buraco onde cabem as minhas lágrimas de hoje e as que chorei há muitos anos atrás.

De facto eu não o conhecia pois estávamos no início da comissão e era das primeiras vezes que eu visitava aquela Companhia. Mais tarde convivi com muitos camaradas dessa Companhia e passei lá muitas noites de ansiedade, felizmente sem a gravidade dessa que nos marcou com um ferro em brasa.

Dirá hoje como foi possível com o mesmo nome e não termos conhecido pessoalmente, mas na verdade só se veio a falar desse pormenor depois.

Se buscarmos no passado não será difícil encontrarmos parentesco entre nós, pois Amado é um nome com árvore genealógica e as suas raízes são fundas.

O seu pai morreu combatendo como um homem, que esteve no seu posto e pagou com a vida uma dívida que não tinha contraído.

Mas se de alguma forma poderei ajudar a mitigar a sua dor, não havendo forma de adoçar essa taça de fel, acredite que foi rápida a sua desdita.

Já estive por diversas vezes no monumento onde o seu nome está gravado. Nunca poderemos esquecer os nossos.

Quanto a colegas do seu pai é bastante difícil, pois essa Companhia não se reúne nunca. Há no entanto um ex-furriel que também já escreveu para o blogue que eu procurarei para lhe enviar um link.

Se quiser dar-me o prazer de a conhecer, falaremos pessoalmente daquele tempo.

Despeço-me respeitosamente, bem haja pela memória e o nome de seu pai.

Ao seu dispor atentamente
Juvenal Amado


4. Resposta de Fátima Amado ao nosso camarada Juvenal:

Caro amigo,

Lembro-me quando era pequenina e esperava junto à lareira com as mãos enfiadas nas mangas, pelo dia de Natal, ia de certeza comer chocolates nesse dia, nem que fossem aqueles que enfeitavam a pequena árvore e se misturavam com o algodão. Essa espera fazia-me saltitar todo o dia, corria de um lado para o outro como se o relógio pudesse correr também, olhava a chama do fogo que bailava à minha frente e aquele era o único calor que havia em todo o lar.

Hoje estou novamente junto à lareira à espera do dia de Natal, não para comer chocolates mas para lhe poder dar um enorme abraço, e vou correr tanto que o relógio vai ter que correr comigo e trazer o dia de Natal mais cedo.

Seria para mim uma enorme honra e prazer poder conhecê-lo pessoalmente.

Um dia um amigo levou-me a passear nos jardins de Belém, enquanto caminhávamos e conversávamos descontraidamente, surge junto a mim o monumento aos heróis da guerra, fiquei regelada, durante segundos os meus pensamentos voaram, até então não sabia a data da sua morte, percorri cada sentimetro daquela pedra com as minhas mãos e acariciei todos aqueles nomes que se esculpiram para toda a eternidade.

À medida que percorria, ia dizendo baixinho "meu pai onde estás tu" e, de repente, ele estava mesmo ali diante dos meus olhos, entre os meus dedos, foi como se lhe tocasse e o vento me abraçasse.

Anos mais tarde erigiram um outro monumento aos heróis do concelho da Marinha Grande, onde por vezes passo junto com os meus filhos, e digo-lhes que o avô foi um herói.

Hoje, quando digo ao meu pequenino que ele é o meu herói, ele pergunta-me se é herói como o avô do jardim.

Escreveu o senhor num dos seus poemas que em tempo de paz são os filhos que enterram os pais, em guerra enterrei o meu pai, naquele dia morreu também a minha mãe que vive sem querer ou saber porquê, aquele maldito morteiro ceifou-lhe o marido e o seu grande amor, com ele morreu-lhe a esperança.

Moro na Marinha Grande, perto de Leiria [...], espero ansiosamente junto à lareira pelo dia de Natal.

Um forte abraço e mil obrigadas por se dispor a ajudar, estou-lhe eternamente agradecida, a si e aos demais.

Fátima Amado


5. Comentário de CV:

Mau grado alguns comentários depreciativos de alguns penetras, o nosso Blogue vai cumprindo o seu destino, ser um repositório de memórias e experiências de antigos combatentes da Guiné que se expõem com nome, posto e rosto (fotografias) para que nos possamos conhecer e falar (escrever) olhos nos olhos. Umas largas dezenas até já se conhecem pessoalmente e convivem nos Encontros anuais.

O Luís criou uma série com o título sugestivo de "O mundo é pequeno e o nosso blogue... é grande" (***).

Na verdade esta página tem proporcionado momentos de felicidade no reencontro de antigos camaradas que perderam contacto por via dos desencontros da vida e muitos filhos de camaradas se nos dirigem em nome de seus pais no sentido de encontrar velhos companheiros de luta.

Temos ainda o privilégio de ter entre a tertúlia senhoras que de algum modo se sentem ligadas a nós, velhos camaradas de seus maridos, afilhados de guerra, amigos, etc.

Este poste traz ao conhecimento da tertúlia um caso interessante de uma filha de um camarada nosso, João Amado, Soldado Auxiliar de Cozinheiro, CCAÇ 3489/BCAÇ 3872, infelizmente falecido em combate durante um ataque ao aquartelamento de Cancolim (****).

Um poste do Juvenal Amado  e uma filha que encontra relatado o trágico momento da morte de seu pai. As mensagens dizem o resto.

Cara Fátima Amado, considere-se a partir de hoje filha adoptiva (adoptada) desta tertúlia, onde pontificam velhos camaradas de seu pai, que tiveram a sorte de sair vivos, mais ou menos incólumes daquela guerra que devastou a juventude da nossa geração.

Por que podendo ser nossa filha, não me acanho, antes de terminar, em mandar-lhe um beijinho em nome dos meus camaradas.

Carlos Vinhal
__________

Notas de CV:


(*) Vd. poste de 10 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3126: Estórias do Juvenal Amado (14): Morteiro no meio da Parada de Cancolim

(...) Não sei quanto tempo durou [ o ataque a Cancolim,], mas sei que foi demais. Pouco a pouco, a violência do ataque abrandou. O fumo, o pó e o cheiro, manteve-me muito tempo sem me mexer. Espreitava pelo bordo da vala para ver se descortinava o que se passava. Havia mortos e feridos, foi a noticia que começou a correr pelas valas.

A madrugada com a sua luz redentora, mostrou-nos a destruição e os estilhaços espalhados por todos o lado.


(...) Estavam três camaradas mortos dentro de uma vala. Uma granada tinha rebentado dentro. Os seus corpos destroçados foram, como possível, depositados nos sanitários em construção.

(...) é em memória deles esta estória.

José António Paulo - natural de Mirandela
João Amado - natural de Vieira de Leiria
Domingos de E. Santos Moreno - Natural de Macedo de Cavaleiros (...)


(**) Vd. último poste da série Estórias do Juvenal Amado >  11 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6716: Estórias do Juvenal Amado (29): Depois do meu regresso, ou o homem que num certo dia teve três mães

(***) Vd. último poste da série de 4 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 – P6533: O mundo é pequeno e o nosso blogue... é grande (24): You made my day. Encontrei o Xico (Nelson Herbert)

(****) João Amado, natural de Carvide, concelho de Leiria, Sol Aux Cozinheiro, nº 03858869, mobilizdao pelo RI 2, CCAÇ 3489 / BCAÇ 3872, morto em 2/3/172, sepultado em Vieira de Leiria, segunfo preciosa informação do portal Guerra do Ultramar: Angola, Guiné, Moçambique > Mortos na Guerra do Ultramar > Concelho de Leiria

7 comentários:

Beatriz disse...

Caros Srs,

Eterno é o meu agradecimento pelo vosso carinho, pelas palavras que honrram todos os soldados, mortos ou vivos, pela disponibilidade em ajudar e sobretudo pelo afecto e enorme humildade de carater em me reconhecerem como uma do vosso seio.
Chorei nestes dias lágrimas de imensa felicidade, jamais podeis avalizar a paz que trouxeram ao meu coração.

Pai, finalmente encontrei-te, encontrei um pai em cada rosto dos teus camaradas, já não me sinto amputada e tu meu querido pai podes descansar em paz porque aqueles que estiveram ao teu lado e a quem serviste, estão agora do meu.

Diz um velho poeta Japonês que quem honrra os mortos honrrasse a si mesmo. Espero assim que esta enorme honrra que prestam a um mero soldado vosso camarada vos honrre a vós também.


Tal como vós, tambem eu não me vou retrair em enviar-vos um enorme beijo de uma filha que encontrou o seu pai.

Atentamente

Fátima Amado

José Marcelino Martins disse...

Querida Fátima

A saga dos portugueses em África começou nessa zona do país: Leiria, Marinha Grande, Vieira de Leiria, São Pedro de Moel,...

Foi o trovador D. Dinis (o plantador das naus a haver) que mandou plantar esse pinhal, onde existe um local - o Tromelgo - que é local paradisiaco (será que ainda é?), que possibilitou a construção das naus que abotdaram Ceuta em 1415 e nunca mais pararam.

Houve muitas glórias, mas tambem se derramaram muitas lágrimas, que o próprio mar ficou salgado!

Bem vinda ao nosso convivio. Os "velhos" adoram ver caras novas e quem por eles se interessa.

Anónimo disse...

Fátima,
Fico contente por saber que através deste blogue conseguiu alguma paz e esclarecimento.
São pessoas muito amigas, ajudam muitas vezes sem terem consciência de que estão a ajudar, mas por vezes, temos de ter cuidado porque por qualquer coisinha, saem de G3.
Um beijnho.
Filomena

Joaquim Mexia Alves disse...

Só hoje li, com olhos de ler, este post da Fátima Amado e confesso que me emocionei por várias razões.

Primeiro por ser um camarada que esteve ao mesmo tempo que eu na Guiné e ao que percebo em Batalhões vizinhos.
Segundo porque o João Amado ao que leio era natural da terra do meu pai: Carvide e portanto quase um conterrâneo meu, que sou de Monte Real.
Ainda temos em Carvide a casa onde nasceu o meu pai e à qual obviamente me ligam memórias indeléveis.
Curiosamente, agora vivo na Marinha Grande onde pelos vistos vive a Fátima Amado.
O mundo é pequeno!!!

O seu pai será sempre recordado por todos nós combatentes, bem como todos aqueles que tombaram em combate nossos camaradas, quer o "pobre" Estado que temos, (e que despreza a vida dos seus filhos que por ele deram a vida), queira quer não.

Um forte e amigo abraço

Caro José Martins

Infelizmente o Tromelgo ou Tremelgo, como já vi também, perdeu muito da sua beleza, como aliás todo o Pinhal de Leiria, exposto mais à ganância da exploração do que à preservação do extraordinário património que constitui.

Um abraço

Beatriz disse...

Agradeço a todos os comentadores deste post, as palavras de carinho e conforto que me trouxeram.
Nestes dias tenho sido inundada com uma torrente de sentimentos dos mais variados, se a minha dor é imensa, a vossa que estives-tes com as armas em punho deve ser ainda maior, perdoem-me se vos fiz relembras momentos duros que por venturas mais quereis esquecer, a minha amargura ao pé da vossa é pequena, e ainda assim vos dispões a ajudar.

Sr. Joaquim, realmente o mundo é muito pequeno, por certo já nos cruzamos por aí, se achar conveniente, teria todo gosto em conhece-lo pessoalmente.

Bem haja a todos


Atentamente

Fátima Amado

Joaquim Mexia Alves disse...

Caríssima Fátima Amado

Em primeiro lugar não me trate, por favor, por sr. Joaquim mas apenas por joaquim.

Em segundo lugar, se um dia passar pelas termas de Monte Real, desça até aos balneários e pergunte por mim pois terei muito gosto em conhecê-la e falarmos um pouco sobre a Guiné, embora eu não tenho, julgo eu, conhecido o seu pai.

Um abraço amigo

Anónimo disse...

Querida FáTIMA, só hoje tomei conhecimento da sua procura desesperada e da sua saudade de tantos anos, e da felicidade que encontra nas notícias dadas. Creio que todos choraram, ao ler a sua dor que evidencia igualmente a dor da sua mãe. Eram estes casos sobretudo, que tornaram triste a minha geração. Eramos um País à espera dos seus mortos, e em cada lar, os corações destroçados por essa realidade, só cada um conhecia a sua dor. partilhei com muita gente apesar de miuda, esse tempo, escrevi tentando de alguma forma suavizar ausências, e sentia-me encantada quando sabia que regressavam sãos e salvos, mas não voltaram todos, e cada um era uma pedra base no equilibrio dos seus.
o seu pai, foi um dos pagou o que não devia, e voçê e sua mãe igualmente.
É extrordinário notar como depois de tanto tempo a dor prevalece. Quem paga essa saudade? Esse sofrimento de tantos anos?
Força Fátima!A geração do Pai, a minha geração, tinha um grande carisma patriótico e talvez o pai fosse um deles, acredite, que esses valores também pesam e muitas vezes minimizavam até a própria morte, mas falar de patriotismom a quem foi privada do convívio do pai por estas razões deve ser muito díficil, mas~´e uma tentativa de ajuda.
Creia Fátima, que a expressão da sua dor, é um relato impressionante, tantos depois de ter acontecido a tragédia: vivo e actual, como se tivesse acontecido agora. Partilho consigo essa dor, pois por cada jovem que lá ficou, eu sempre senti que perdia alguem.
Permita-me que a abrace, com o carinho com que abraço os meus filhos.

Felismina Costa