1. Em mensagem do dia 8 de Setembro de 2011 o nosso camarada Torcato Mendonça* (ex-Alf Mil da CART 2339 (Mansambo, 1968/69), enviou-nos este texto para publicação:
Enfermeiras Pára-quedistas, as primeiras mulheres portuguesas equiparadas a militares
Foto: © Rosa Serra (2010). Direitos reservadosBEM HAJAM
Penso que é bonito.
Penso que as palavras deste Poste** são merecidas.
Penso devermos a essas Mulheres o nosso reconhecimento, o nosso bem hajam, o nosso respeito pelo seu trabalho, a sua ajuda a tentar salvar vidas.
Vidas sofridas, desgastadas pela brutalidade de uma guerra que não queriam mas cumpria toda uma juventude. Anos à rasca…
Infelizmente participei um pouco nela, dois anos. Podemos juntar mais dois ou mais, não faço contas agora, fora dela. Anos a representarem uma eternidade, uma revolução no meu ser, no meu sentir, na forçada interrupção do meu eu.
Anos de paragem desse eu, anos de profunda metamorfose noutro eu e tantos anos, tantos, posteriormente, a tentar esquecer.
Esquecer não tudo, impossível. Esquecer somente o que deve ser esquecido.
Não esqueço, jamais esquecerei as Enfermeiras Pára-quedistas.
Posso querer esquecer, ontem e ainda hoje, o ter sido evacuado duas vezes de operações do mato. Foram, ou são? Foram momentos considerados de fraqueza. Como se o ser ferido, o estar doente, o não puder continuar fosse fraqueza. Até onde chegou a deformação e a brutalidade, a tal metamorfose do eu, a dureza e desumanidade imposta por uma guerra a um jovem de vinte e poucos anos.
Fui. Fui efectivamente evacuado do mato por duas vezes.
Uma primeira para Nova Lamego e uma segunda para Mansambo.
Lembro pouco a primeira. Sei ter tido uma reacção violenta porque me disseram. Não sei. Recordo só já estar numa cama com gelo e, através de visão enevoada ver uma Enfermeira Pára-quedista a tentar mexer-me nas calças.
Disse-lhe: - não uso cuecas…
Ela riu e disse: - Finalmente acordado. Eu sei pois já foste injectado…
A segunda evacuação recordo-a bem.
Caímos, ao segundo dia da Lança Afiada, numa emboscada e o meu Grupo ficou na zona de morte. Foi a pior batida que tivemos, quatro feridos à primeira roquetada. Quatro evacuados, pouco depois, devido à perícia dos Pilotos dos “Hélis” e à coragem das Enfermeiras. Numa das evacuações, houve mais feridos, o héli teve que levantar pois o IN estava mal disposto e Ela ficou ali serena. Talvez nunca tenha tido tantos guardiães.
Ao fim da tarde fui eu o evacuado para Mansambo. Dois dias depois estava de regresso.
Só uma vez senti a emoção ou breve hesitação numa jovem Mulher destas.
Tínhamos um ferido gravemente queimado. Todo o corpo, excepto parte da zona dos calções e a das botas não estavam. Era negro e, ficava cada vez mais branco com a pele que caía…
- Mate-me, meu alferes.
O Furriel Enfermeiro a dar tudo, como sempre, para o aguentar até à evacuação. Chegou o Héli, sai rápida a Enfermeira, olha o ferido e aconteceu a breve hesitação. Talvez a sentir aquele sofrimento, a sua humanidade a vir e a agulha do soro a ficar na mão. Devia ser terrível para aquelas mulheres assistirem a tanto sofrimento (hoje certamente haveria apoio psicológico…).
A bota foi retirada e a agulha de pronto entrou na veia do pé.
Salvou-se. Parece viver hoje na sua Ilha em Cabo Verde.
Foram muitos, na nossa Companhia a necessitarem destas Mulheres.
Mulheres abnegadas, corajosas, mulheres a darem tudo de si, a correram todos os riscos para que uma vida fosse salva. Depois era a ida até Bissau ou outro porto de abrigo e tudo seria feito para a vida continuar.
Hoje sentimos que elas são humanas e, como tal, desta vida vão partindo. Talvez precocemente e,assim, lastimamos não puder fazer por Elas o que por nós fizeram. Todos, todos nós sentimos um profundo respeito por Elas, pela FAP e seus pilotos… o T6. O Fiat, o “Lobo Mau”… o grito interior… aí está, aí está a aviação…”Lobo Mau”… ou a evacuação… estás safo pá… estás safo pá…
Até sempre!
TM
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 5 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8735: Blogoterapia (188): Encontros, ou como abrir o tal Capítulo da Vida (Torcato Mendonça)
(**) Vd. poste de 8 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8750: In Memoriam (92): Homenagem às Grandes Mulheres, as nossas Enfermeiras Pára-quedistas que nos deixaram (Rosa Serra, ex-Enf.ª Pára-quedista / António Almeida, Fur Mil em Angola / Teresa Almeida, Liga dos Combatentes)
Vd. último poste da série de 4 de Julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8504: As nossas queridas enfermeiras pára-quedistas (24): Saltar ou não saltar de pára-quedas... hoje, só se fosse para salvar uma vida (Maria Arminda / Aura Teles)
7 comentários:
Meu caro Torcato
Nem sempre apontamos aos mesmos azimutes, mas este teu texto é brilhante. O homem sensível a borbulhar em sublimes afectos.
Pequena grande homenagem a essas mulheres quase perfeitas que desciam do céu para cuidar de nós.
Obrigado Torcato.
Este é o meu blogue da Guiné.
Abração,
António Graça de Abreu
Camarigo Torcato Mendonça
É assim que recordo a nossa gente naquela frente, naquela guerra: fortes, corajosos...mas também sensíveis.
Esta homenagem que prestaste às nossas enfermeiras pára-quedistas neste teu excelente texto é bela e afectuosa. Gostei e agradeço-te esta forma de as recordar.
Um abraço
Luís Dias
Caro Torcato Mendonça
Gostei,gostei do que escreveste.
Gostei do transparecer de afectos, irmanados a tantos e tantos de nós,nesta bonita e singela homenagem que prestas a esses "Anjos da vida".
Como diz o Graça de Abreu,este parece começar a ser de novo "o meu blogue da Guiné"
Um abraço
Luis Faria
Caros Amigos, Meu Caro Amigo Torcato!
Quantas recordações de momentos difíceis?
Quanta vez o medo? a revolta? a mágoa por fazer o que não queriam?
Quanta vez a raiva, a saudade de casa, da família, da vida interrompida?
Quanta emoção ao fim de tantos anos!
Quem apaga da memória, a ideia de um possível fim anunciado, para todos e cada um, quando se tem vinte anos e a vida está à espera de ser vivida?
Como não hão-de haver marcas psicológicas, já não falando das físicas e das baixas?
Quanto futuro interrompido, adiado, extinto!
E os Srs. do mundo impõem, exigem a vida dos filhos que cada um criou, sem um único apoio, naquele tempo de tantas dificuldades para a maioria.
Matar ou morrer, era o que importava, porque a guerra ganha-se matando, reduzindo a destroços, vidas humanas, inocentes, alheias aos interesses e ideias dos governantes, mandantes, opressores.
Em toda essa tragédia, houve então e apenas a ajuda das valorosas enfermeiras, que foram para vós, os anjos da guarda, que chegavam do céu, trazendo a esperança, a coragem, o bálsamo preciso, para o alívio das dores e do medo.
Benditas todas elas e o vosso reconhecimento.
Um abraço o todos vós, que sofreram na pele os efeitos do conflito referido e o meu agradecimento pelo vosso carisma.
Um beijo para o meu amigo Torcato.
Felismina Costa
Meu caríssimo Torcato
É muito belo deixar falar assim o coração!
Obrigado por este teu texto!
Um grande e camarigo abraço
Para todas as enfermeiras "páras".
A nossa eterna gratidão.
Nunca vos esqueceremos
C.Martins
Caro camarigo Torcato
Por estes dias tenho lido várias coisas que prestam homenagem às nossas camaradas enfermeiras pára-quedistas.
São, de um modo geral, interessantes e reflectem muito bem o sentir geral que os militares no terreno, principalmente na Guiné, tinham por essas mulheres.
No entanto esta tua intervenção, ao teu estilo, é de uma profundidade que não deixa de ser comovente.
Continua, Torcato, continua a escrever que todos ganhamos.
Abraço
Hélder S.
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