1. Em mensagem do dia 3 de Outubro de 2012, o nosso camarada Augusto Silva Santos (ex-Fur Mil da CCAÇ 3306/BCAÇ 3833, Pelundo, Có e Jolmete, 1971/73), enviou-nos mais uma história dos Fidalgos de Jol.
ESTÓRIAS DOS FIDALGOS DE JOL (13)
Aventura com final feliz…
Todos tínhamos grande admiração pelo Comandante da Milícia. Era um grande guerrilheiro, grande conhecedor da região no Chão Manjaco, fiel aos seus princípios, amigo do seu amigo, daí que ainda hoje seja recordado com respeito pela generalidade daqueles que com ele lidaram mais de perto. Infelizmente o Dandi [, ou Dandy,], como muitas outros que estiveram do nosso lado, acabaria por ter um fim trágico, após a nossa retirada da Guiné. Pura e simplesmente foi eliminado em circunstâncias mais ou menos obscuras, como é “usual” nestes casos.
Fora o aspecto militar, era uma pessoa como tantas outras e, enquadrada naquilo que era considerado natural socioculturalmente dentro das diversas etnias na Guiné, ou seja, com um peso religioso muito determinante no que respeita ao relacionamento e tratamento dos seus filhos e suas mulheres.
Sendo quem era, para além do que já referi no contexto militar, também no aspecto civil, se assim se pode considerar ou desassociar, era igualmente muito respeitado (ou temido?), tendo um estatuto acima da média dos restantes elementos da população masculina da tabanca, daí que no meu tempo de Jolmete, era casado (ou possuía) 4 mulheres. Era uma situação perfeitamente aceite por todos tendo em conta a sua crença religiosa, que nem sequer chocava aqueles que, da nossa parte, se assumiam mais ortodoxos quanto a esses hábitos, religiosamente falando.
Até aqui tudo bem, só que o nosso amigo Dandi nem sempre se mostravam muito “civilizado” (no nosso conceito) relativamente ao relacionamento que tinha para com as suas mulheres, sendo por vezes uma pessoa muito agressiva e até prepotente. Era do nosso conhecimento que com alguma frequência lhes batia, principalmente nas mais velhas, algo que de facto nos incomodava mas, dadas as circunstâncias, não tínhamos grandes hipóteses de interferir.
Estando este facto em determinada altura a tomar proporções alarmantes, diria mesmo, preocupantes, uma das suas mulheres tomou a decisão de fugir, daí ter tentado por diversas vezes obter sem êxito o “passaporte” (guia de transporte) para dali sair e assim escapar aos maus tratos a que estava a ser sujeita.
Ora isto era algo quase impensável, e ninguém se atrevia a deixar sair umas das mulheres do Dandi, sem ele ter conhecimento de tal facto. Ela só poderia ausentar-se de Jolmete se houvesse uma prévia autorização do Comandante da Milícia. Pôr-se a caminho sozinha, estava fora de questão, pois seria facilmente apanhada, pelo que a única solução era mesmo aproveitar uma das ausências do marido para sair através de um transporte, primeiro até ao Pelundo, e depois com ajuda de familiares iria tentar seguir para norte. Para que isto resultasse era preciso o envolvimento (conivência) de várias pessoas, dada a “complexidade” da situação.
Tomada a decisão por parte do meu amigo Borges, 1.º Cabo, impedido do Comandante de Companhia, em ajudar a infeliz mulher, restava organizar o esquema para que os resultados fossem os desejados. Assim, em determinado dia de ausência mais ao menos prolongada do Dandi e coincidente com uma coluna para o Pelundo, combinou-se a fuga da Nhimba Djassi. Para não sair directamente do quartel, ela apanhou a viatura na bolanha onde íamos à água, cujo abrandamento era quase obrigatório, e onde se montava sempre uma pequena segurança para entrada de outro pessoal. A mesma era conduzida pelo nosso amigo “Bob”, que já estava identificado com o esquema. Sendo eu o chefe de viatura, limitei-me a conferir se estava tudo correcto com a guia de transporte, e lá seguimos viagem.
Até ao dia em que o Dandi chegou e se deparou com a fuga desta sua mulher, as coisas aparentemente correram bem, só que não tendo ele conseguido trazer de volta a Nhimba para casa por já não estar no Pelundo, começaram as complicações. Soubemos mais tarde que ela havia conseguido chegar até ao Cacheu, e dali até uma aldeia na fronteira do Senegal, sítio onde praticamente estaria a salvo de uma possível investida do seu marido.
O Comandante de Companhia ainda tentou resolver pessoalmente o assunto, mas não conseguiu convencer o Dandi a esquecer o comportamento da mulher, pelo que o acontecimento passou para o conhecimento do Comandante de Batalhão, e mais tarde para o Comandante do CAOP1, Coronel Paraquedista Rafael Durão. Quando o vimos sair do seu DO a perguntar pelo Cabo que havia passado a guia de transporte para a Nhimba, para lhe partir o “focinho” (era hábito ele resolver tudo ao murro e à chapada), o Borges já não sabia onde se havia de meter, e nós pensámos logo... “estamos feitos!”.
Comigo e com o “Bob” acabou por não haver qualquer problema, pois limitámo-nos a dar cumprimento ao que era normal nestas situações mas, com o Cabo “Bigodes”, tendo a situação ultrapassado o que estava estabelecido, as coisas começaram a complicar-se. Importa salientar que o Dandi era medalhado com a Cruz de Guerra, e tinha alguma influência / impacto junto das altas esferas militares, e foi assim que inclusive o assunto chegou também ao conhecimento do General Spínola.
Tendo este acontecimento ocorrido já bem perto do final da comissão e, portanto, já de saída de parte do Batalhão para o Cumuré, começaram desde logo a correr os mais variados boatos tais como, que o Borges ia ficar preso, que o Companhia ia ser castigada com mais tempo de comissão, que o Dandi havia de se vingar, enfim era já a ansiedade da partida para a metrópole a baralhar o raciocínio do pessoal.
A situação não ficou resolvida sem o nosso amigo Borges ser chamado ao Quartel-General, já bem perto do dia do embarque, onde se deparou com uma mesa cheia de oficiais superiores para saberem o que efectivamente se havia passado. Contou ele mais tarde que o interrogatório foi de tal ordem que a determinada altura quase faltou dizer que ele até nem gostava de mulheres, pois o problema descambou para a possibilidade do seu possível envolvimento com a Nhimba. Felizmente lá conseguiu argumentar da melhor forma (dar a volta ao texto), explicando que tudo não tinha passado de um grande equívoco e baralhação de nomes.
O General Spínola acabou por dar o caso como encerrado, mas o Cabo “Bigodes” só se sentiu realmente seguro e aliviado, quando o navio Uíge largou amarradas e, pelo Geba abaixo, se dirigiu ao alto mar.
Como se costuma dizer, não ganhou (ganhámos) para o susto… No fim, tudo acabou em bem, até porque o Dandi acabaria por aceitar sem mais problemas o desfecho. Importa salientar que a Nhimba Djassi era a sua mulher mais velha, talvez por isso se tornasse mais fácil arranjar uma outra mais nova… (minha suposição).
Jolmete, Maio de 1972 > À entrada do meu abrigo
Jolmete, Junho de 1972 > Com uma cria de cabra de mato
Jolmete, Junho de 1972 > Tempo de matar a sede
Jolmete, Junho de 1972 > De pé com os meus amigos Bob, à esquerda, e Bigodes; à direita
Jolmete, Agosto de 1972 > Estrada velha de Buba
Jolmete, 1971 > Vista aérea do Quartel
Mapa da Guiné > Região do Cacheu
Navio Uíge no alto mar
____________Nota de CV:
Vd. último poste da série de 25 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10432: Estórias dos Fidalgos de Jol (Augusto S. Santos) (12): A minha primeira noite no Jol
7 comentários:
Olá Augusto.
A tua história, conta um pouco do ambiente em que vivemos a guerra da Guiné. Um natural, com quatro esposas, e um comandante que queria partir o "focinho" ao soldado, e resolvia tudo à chapada!.
Tú estiveste em 71/73, eu estive em 64/66, e não ouve muita diferença. As tuas palavras confirmam as minhas. Gostava que os nossos companheiros combatentes, aprofundassem este tema, da agressão de superiores com divisas, a subordinados, haveria muitos "Rambos", que se lhe tirassem as divisas, não teriam coragem de desempenhar nem o papel de "Branca de Neve"!.
Augusto, por favor não pares de escrever, vejo que continuas com coragem.
Um forte abraço de um um antigo combatente um pouco mais velho, Tony Borie.
Olá Augusto,
o Dandi no meu tempo 69 a 71 tinha sete mulheres e a mais velha é que fazia a escala de serviço...
Qando fizemos as casas que mostras nas fotos, as primeiras, junto à escola foram para ele.
Quando íamos para o mato, além dos roncos que todos desejávamos, ele tinha um "filing" como se diz agora, para apanhar mulheres. Para ele quantas mais tivesse maior era a importância.
Conto rapidamente um caso, em Fevereiro de 1970, em que ele foi caçar num domingo à tarde. Levou com ele dois milícias e um camarada de transmissões com um rádio. O destino era junto ao rio Cacheu. Nesta altura estávamos em tréguas com os turras, pois havia as conversações para o desfecho cruel do 20 de Abril, com o assassinato dos 4 oficiais do CAOP. Pois o nosso amigo Dandi deu de caras com uma columa de turras, e a reacção foi correr atrás de uma bajuda, que segundo ele, vinha agarrada ao turra que vinha à frente.
Claro que não houve tiroteio, porque por sorte eles pensavam que havia mais pessoal do nosso lado.
Claro que isto dava para um "poste", mas ficará para outra altura.
UM abraço
Manuel Resende
De: Augusto Silva Santos
Para: Tony Borie
Camarada e Amigo, antes de mais o meu obrigado pelas tuas palavras.
Também tenho acompanhado os teus relatos e sei da polémica que se levantou pelo facto de oficiais (e não só) resolverem situações com recurso a agressões físicas.
Na minha Companhia houve um Furriel que também tentou seguir por esse caminho, mas saiu-se mal.
Provavelmente ainda irei abordar algo relacionado com esse tema, mais propriamente um facto registado entre esse Coronel Paraquedista e um Fuzileiro.
Eu próprio fui castigado na Guiné com 3 dias de detenção, por ter respondido a uma tentativa de agressão de um Capitão. O motivo foi eu ter-me recusado a cumprir uma ordem mal dada pelo mesmo. Só não apanhei prisão porque tinha um louvor que me atenuou a "porrada". Apesar de ter razão, o Comandante da unidade disse-me que a ordem de um oficial, mesmo mal dada, era para ser cumprida, e que me dava o castigo porque a democracia ainda não tinha chegado à tropa. Mais comentários para quê???
Continua também a enviar as tuas estórias. Recebe um grande e forte abraço.
DE. Augusto Silva Santos
Para: Manuel Resende
Olá Camarada e Amigo. Quando a estava a escrever, calculei de imediato que esta estória não te seria indiferente (também espero um possível comentário do nosso amigo Manuel Carvalho). É um facto incontornável que o Dandy era aquilo que tanto eu, como tu, e o M.Carvalho, já referenciámos como militar, mas no aspecto que abordo no meu relato, deixava muito a desejar. Obviamente no nosso conceito. Vejo que com o avançar da idade o Dandy estaria um pouco mais recatado, no entanto sei que ele passado pouco tempo voltou a arranjar outra mulher (mais nova), pelo que continuou a contar com as 4 que tinha em meados de 72. Se calhar estas eram as oficiais, pois provavelmente até teria outras para as horas vagas :-) Fico a aguardar com interesse esse acontecimento que referes.
E não há dúvida que a importância que ele dava ao facto de quantas mais mulheres, maior a importância, foi toda a razão que o levou a levantar todo aquele burburinho. Junto à margem do Cacheu mais perto do Jol, era onde nós íamos à pedra para as construções.
Recebe um grande e forte abraço.
Camaradas,
É a África com as suas imprevisibilidades. Nós íamos para lugares desconhecidos, sem qualquer preparação relativamente ao relacionamento local, nem às orientações estratégicas. Quem sabia o que era a psico? Quantos recebiam informações atempadas sobre orientações políticas e estratégicas? Qual a coerência das relações institucionais? Qual a relevância das autoridades tradicionais?
Sabíamos dos filmes que uma criança poderia colocar uma mina, e eram todos terroristas. Se não tínhamos uma preparação de terror, também não tínhamos preparação para a prática da solidariedade.
Sem ter muito que ver: há meia-dúzia de anos, atravessi o reino da Suazilândia, praticamente dentro da África do Sul, e com um pedaço de fronteira com Moçambique. Todos os anos o rei casa com uma jovem escolhida em desfile. É uma nação absurda, economicamente ao abandono, e com uma autoestrada real, de poucos quilómetros, que liga a capital ao palácio, onde não pude circular, porque, obviamente, não era o rei.
Também o nosso registo de potência no território da Guiné ficou marcado por muitas incongruências, como o tratamento ajuridico aqui revelado.
À distância, até pode dar para rir: o vilão, a vítima, o moralista, e o valentão.
Abraços fraternos
JD
Caro amigo Augusto
Vou comentar para dizer que está aqui um retrato do Dandi perfeito. Penso também que o teu amigo Borges teve alguma sorte em as coisas terem ficado assim, parece que o Dandi pensou que ele fez mais do que passar a guia de marcha.Quanto ao resto todos nós sabemos que na Guiné um homem com algum poder tinha mais que uma mulher e exercia esse poder sobre elas e se não ia a bem ia a mal.
Quando nós chegamos a Jolmete julgo que o Dandi nem era milicia, como tinha sido caçador passou a guia. O nosso Capitão Barbeitos era uma espécie de treinador de futebol. olhava para um individuo e via se ele era avançado médio ou defesa, olhou para o dandi e disse esta aqui um grande comandante de Milicia, mandou o outro dar uma volta e aui está o nosso homem.
Um grande abraço continua que estou a gostar muito das tuas estórias.
Manuel Carvalho
De: Augusto Silva Santos
Para: Manuel Carvalho
Camarada e amigo Manuel Carvalho, obrigado pela tuas palavras.
Parece que o nosso amigo Manuel Resende também vai escrever algo relacionado com o Dandy. Esta minha estória avivou-lhe algo na sua memória. Vou ficar a aguardar com interesse.
Há sempre algo mais para contar, às vezes não há é tanto tempo quanto isso. Pode ser que um dia destes "apareça" mais uma estória.
Um grande e forte abraço.
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