Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
segunda-feira, 8 de outubro de 2012
Guiné 63/74 - P10498: Notas de leitura (415): Uma viagem à Lapónia que ficou por Bissau (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Agosto de 2012:
Queridos amigos,
Sem nenhum constrangimento acabo de deitar no balde do lixo o arremedo poético que deu ensejo ao texto que vos ofereço.
Tudo aquilo me sabia a água chilra, a uma inquietação de quem não sabia comunicar que estava punido e só veria a família um ano e meio depois. Durante anos, atirava as folhas amarelecidas de uma gaveta para outra, a supor uma pirueta imaginativa para a sua aplicação. Prestes a reformar-me, chegou a hora de vazar no balde do lixo todas as insignificâncias. Só que foi neste espaço que tudo publiquei à volta da minha comissão militar, intui que fazia todo o sentido passar-vos a lembrança de um tempo onde, meu Deus, até se invocou a Lapónia a pretexto de um saboroso relato de viagens.
Um abraço do
Mário
Uma viagem à Lapónia que ficou por Bissau
Beja Santos
Em Março de 1969, fui submetido no hospital militar em Bissau a uma intervenção cirúrgica, tratou-se de uma remoção de cartilagem por detrás do joelho direito que me tornava o caminhar cada vez mais difícil, dava tombos a toda a hora e demorava a conciliar o sono, tais e tantas eram as dores, fruto de um grande tombo de bicicleta, ocorrido largos anos atrás. Estava recém-chegado a Bissau, a ameaça de dois dias de prisão simples tornara-se uma realidade, detido já eu estava, desfazia-se era o sonho de ter férias, singularidade que me levou a viver non stop a comissão militar na plenitude, fora curtas andanças na capital provincial. Fodé Dahaba era visitado todos os dias, nem ele nem eu tínhamos saído do estado de choque que fora o fornilho que o acidentara para o resto da vida, nas fimbrias de Madina, no Cuor profundo, no mês anterior. Sentia-me triste, ainda não tinha recebido a notícia da destruição de Missirá, irá acontecer em 19 de Março. A atmosfera mais aprazível que me era dado viver naquela Bissau era no Pidjiquiti, a olhar aquele bulício de embarcações e vozes, aquele odor da vazante que impregna a atmosfera e que sobe até mesmo à Pensão Central. Aquele magneto que se chama Ilhéu do Rei sempre ao fundo, alargando a panorâmica, era fascínio permanente. Ali sentia-me sereno, ali fazia contas à vida. E ali poetei, imprevistamente.
As circunstâncias em que escrevi “Uma viagem à Lapónia” prendem-se com a dificuldade que sentia em comunicar telefonicamente aos entes mais queridos que não iria vê-los antes de 1970. Sentado num banco, acompanhado de um caderno, lia uma obra de Regnard sobre uma viagem à Polónia, em pleno século XVII, fora uma prenda de Natal do Ruy Cinatti e deu-me para garatujar uma sentimentalidade, era expediente de que me socorria para ganhar coragem para informar, via telefone nos CTT, os factos daquela punição devida a “não ter apresentado, durante uma visita do comandante-chefe, o aquartelamento nas melhores condições de organização e asseio”. E assim se escreveu: “Toda esta inquietação de viajar, não do cais do Pidjiquiti que me pode levar até um ponto do mapa iluminado a petromax e três fiadas de arame farpado, nada tem a ver com este Geba prateado pela fornalha solar; estou é impaciente em partir, fazer uma viagem na Lapónia, estou a ler um relato de um viajante que por lá andou em 1681 e que fala da tundra, de iglus, trenós e campainhas que quebram o silêncio nas noites geladas, mas é neste cais do Pidjiquiti que está tomada a decisão: hei de viajar à Lapónia quando regressar desta terra de sede oleaginosa, talvez feito rapsodo de quem vai do Sol à Lua ártica, contar estas andanças dentro do capim, explicar o que são cibes, a mancarra e o fundo, como são coloridos os cemitérios pelos cajueiros em flor, como as casas podem ser cobertas de colmo ou chapas de polegada e meia. É curioso como o Cuor rima com suor ou, baixando a voz, amor.
Mas tenho que ir telefonar para Lisboa, este passeio pela Lapónia é um devaneio e nada mais, era o que faltava ensarilhar-me, petulante, com noites brancas e nevões suaves, quando estou a viver em plena época seca, era mesmo o que faltava pôr-me ao telefone a divagar sobre madrugadas lustrais, conversas com lapões risonhos, o que eu estou a olhar é para um rio de águas barrentas, taciturnas, que nem rumorejam em direção à foz. Tomavam-me como louco se dissesse: quero ir à Lapónia, não posso passar por Lisboa, é o melhor derivativo que encontrei para me sossegar da guerra, não se esqueçam que parti daí gentil moço, que nunca vira uma cobra verde ou uma surucucu, nem balas tracejantes, nem crianças com barrigas de fome, nem árvores majestosas desfeitas a tiro de canhão, muito menos sabia o que era o baga-baga, nem que estas guerras põem populações em fuga e dividem brutalmente as famílias.
Pronto, ponho termo ao devaneio, a Lapónia é uma mera curiosidade. Daqui a minutos pego no telefone, desdramatizo a operação, calo a raiva desta punição, vou falar de saudades, destas leituras tão inofensivas como seja uma viagem à Lapónia, no ermo da Suécia. Direi então que fui punido, coisa de pouca montra, contem comigo no termo da comissão, daqui a ano e meio. Sim, estamos todos bem, não se preocupem comigo. Dentro de dias volto a Missirá onde me sinto bem. Quantas saudades de vós! Esta noite escrevo. Adeus”
Terá razão o leitor em perguntar a que propósito vem este papelucho se já se escreveu tudo quanto se passou durante a dita comissão. Para ser honesto, o arremedo poético andou de gaveta em gaveta durante a confecção dos livros, que começaram em 2006 e que já acabaram. É que espero em breve reformar-me, toda a papelada saiu das gavetas, no essencial apontamentos, faturas e documentos de vária índole têm vindo a encher o caixote do lixo. E apareceram umas folhas amarelecidas e deu-se conta que o arremedo poético já não me pertencia. Mas se é verdade que nem tudo pode ficar escrito, apaziguou-me passar a limpo o garatujado no cais do Pidjiquiti e dar-lhe publicidade aos meus confrades. Coisa curiosa, é que nunca me apeteceu ir à Lapónia. Mas gostei muito de ler o que Regnard escreveu, sentir aqueles nevões na época seca de 1969. Ponto final sobre uma viagem que não se fez.
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Notas de CV:
Vd. último poste da série de 5 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10485: Notas de leitura (414): "História da Guiné, Portugueses e Africanos na Senegâmbia, 1841-1936", por René Pélissier (3) (Mário Beja Santos)
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7 comentários:
"Nunca me apeteceu ir à Lapónia"......O que é pena,porque na Lapónia tens hoje uma ÚNICA "casa portuguesa"....mas com a porta bem aberta à Tua espera. Um abraco.
Não tenho ideia de que me tivesse apetecido ir à Lapónia, mas, a partir de Piche, ou de Bajocunda, quando a fornalha esquentava o corpo, seria uma proposta irrenunciável, e ainda mais a salvo de outras queimaduras.
Curiosamente, um amigo que fez a guerra em Bissau, acabou a tropa, casou com uma loira que vacacionava connosco, e ainda hoje palmilha na Suécia, que, como todos sabem, é muito perto da Lapónia.
Aquele senhor muito bonito que se apresenta com uma rena sobre fundo azul estrelado, pode certamente confirmar.
A tal porrada, a evasão para o hospital, e o relato de uma viagem de antanho por latitudes ignaras, felizmente, deram origem a um texto aqui transcrito de forma poético-prosaica, que fica bem em qualquer lugar de publicações.
Se não acharem assim, passem lá pelo Cuor, por Madinas e Missirás, que vão aprender a dar-lhe valor.
Abraços fraternos
JD
Como (JD) fala em "formas-poético-prosaicas" näo resisti a olhar com maior cuidado a foto.A cara do senhor (bem disfarçado!)näo se me aparenta desconhecida.Não será um "futuro-ex-governante",algures, que por aqui anda a fazer horas extras...visto que a metade direita dos cornos da rena já foram hipotecados?
Caro Zé Belo,
Ando muito cegueta, já com laser's e injecções, e as lupas não me parecem adequadas, pelo que não consigo identificar feições, logo, não posso nomeá-las.
Mas a metade direita dos cornos estar empenhada, quererá dizer que a metade esquerda já é mais valiosa?
Este mundo deve estar a mudar!!
Um grande abraço
JD
Caro JD.Concordo inteiramente contigo quanto a "este mundo estar a mudar"(o Novo "modelo" da Bandeira hasteada será um bom exemplo).E,a propósito de "hastes", confesso desconhecer se haverá mais valia quanto às da direita ou esquerda.Mas,como criador de renas nos tempos livres,posso garantir-te que os vitelos "mamöes" no lado direito da "alimária" se tornam muito mais gordos.Coincidências? Um grande abraco.
Caro Zé Belo,
Aprecio o fino recorte da tua resposta, e associo-me à tua dúvida sobre as mais-valias. Como seríamos imensamente felizes, se os parlamentos apenas tivessem lugares a bombordo ou a estibordo. As mais-valias estariam do lado dos mais lustrosos. Nos tempos que correm há uma nítida miscigenação entre os ocupantes das cadeiras, na maioria aparentando-se com bombordistas, e só se distinguem quando são obrigados a levantar o braço em votações. Mas é tudo tão rápido...
Fui informar-me:
Vai por mim, deixa lá esses titubeares duvidos sobre enchimentos e rentabilidades; procura algum maçon, pede-lhe apadrinhamento, frequenta os rituais de solidariedade e partilha, traz as hastes sem as hasteares, que nesse ambiente caloroso tudo se valoriza.
Se quiseres, manda-me um mail para identificar o novo endereço.
Um abraço
JD
Meu caro José Belo,
A engorda rápida dos vitelos de rena que mamam à direita é só passageira. Repara bem, a mais longo prazo. Vê como os que os que mamaram à esquerda prolongaram o tempo de mama indefinidamente. Encontram sempre quem lhes dê de mamar.
Um abraço,
Carlos Cordeiro
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