segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10757: (Ex)citações (203): O "fado das comparações"... ou o humor sarcástico do Cancioneiro do Niassa (Luís Graça)

1. Comentário de L.G. ao poste P10754:

Camarada Rosinha, já que se evocou aqui (mal, segundo as regras deste blogue...) os "chicos", que são igualmente filhos de Deus e nossos camaradas (e todas generalizações serão sempre abusivas, nesta como noutras matérias...), e já que tu próprio, sempre oportuno, foste buscar (ou reforçar) a questão das similitudes e das diferenças entre "tugas" de Angola e de Moçambique (ainda há dias estive com o Mia Couto, no aeroporto de Lisboa...), toma lá mais esta... Neste caso, esta "canção do Niassa":

Fado das Comparações

Que estranha forma de vida!
Que estranha comparação!
Vive-se em Lourenço Marques, (Bis)
Cá arrisca-se o coirão!

Vida boa, vida airada!
Boites, é só festança!
Lá não se fala em matança, (Bis)
Nem turras; há só borgadas.

Niassa, pura olvidança!
Guerra, como és ignorada!
Conversa que é evitada, (Bis)
P'los que vivem n'abastança!

Falar na nossa desdita
Fica mal e aborrece!
E como lembrar irrita, (Bis)
Toda a gente a desconhece!

Ao passar pela cidade,
Com tanta tranquilidade,
Deu-me para] comparar, (Bis)


Meninas com mini-saias!
Mandai-as p'ras nossas praias
P'ra manobra de atacar! (Bis)

Pipis com carros GT's, [Ou: Hippies com carros GT's]
Mandai-os para as Berliets,
Tirai-lhes as modas finas; (Bis)


Melenudos efeminados
Eram bem utilizados
P'ra fazer rebentar minas! (Bis)

Bem como essas tais meninas
Que, apesar de enfezadinhas,
Mas com ar da sua graça, (Bis)


Serviriam muito a jeito
Para acalmar a dor do peito [Ou: Para aliviar a dor do peito]
Cá da malta do Niassa. (Bis)

Mas não, só por pirraça,
Hão-de lá continuar!
E nós temos de lerpar, (Bis)


Invertem-se as posições,
E trocam-se as situações,
Continuamos a aguentar! (Bis)

Nós, sem sermos desejados,
Ficamos cá apanhados,
Aos urros, num desvario! (Bis)


Eles, os daqui naturais,
Gastando dinheiro aos pais,
Vão para o Matola Rio! 

[Ou: Vão p'ra a puta que os pariu!]

Acabe-se com a tradição,
Entre-se em mobilização,
Utilize-se a manada!  (Bis)


Dentro de poucas semanas,
Como quem come bananas,
Estará a Guerra acabada. (Bis)



Gentileza da página na Net do Joraga [José Rabaça Gaspar], que inseriu a gravação áudio, com a  voz do João Paneque, na Rádio Metangula, em 1970 [Clicar aqui para ouvir]... Essa  versão tinha a seguinte introdução:

"Este é um fado que compara algumas coisas que se passavam. Não é um fado para ofender, e era cantado em ambientes muito particulares e com público esclarecido! De resto, como todo o cancioneiro, sobressai sempre o aspecto humorístico com que todos os  temas são abordados". 
  
Fonte: Reproduzido de Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, I Série > 11 de maio de 2004 > 11 Maio 2004 > Blogantologia(s) - XI: Guerra Colonial: Cancioneiro do Niassa (1) 

2. Comentário de L.G.: 

A música deste fado, do Cancioneiro do Niassa,   é a do clássico  fado Estranha forma de vida (Letra e música: Alfredo Duarte e Amália Rodrigues). No entantato, a segunda parte parece-me ser a do Embuçado , precisarei de tempo para confirmar.

Mas o que importa agora é a  letra: sarcástica, parodia a privilegiada condição dos colonos moçambicanos e dos seus filhos e filhas, condição que, vista de Metangula, no lago Niassa,   deveria   uma das  contradições daquela guerra, difíceis de (di)gerir:  de facto,  dificilmente se poderia convencer um soldado metropolitano que estava a defender o chão sagrado da Pátria, quando do inferno do Niassa se olhava para  o bem-bom de Lourenço Marques...Em todo o caso, é bom não esquecer que houve moçambicanos, filhos de colonos brancos, que morreram em combate no TO da Guiné: caso do nosso camarada Mário Sasso, por exemplo.

Noutro registo, era o mesmo tipo de crítica que nós fazíamos na Guiné - nós, os operacionais, a carne para canhão - aos mais privilegiados, não os colons que praticamente não os havia, mas sim a rapaziada da guerra do ar condicionado, instalada no relativo conforto e na precária segurança de Bissau... 

Recorde-se que na Guiné não havia colonos brancos, a única empresa que se podia chamar colonialista era a Casa Gouveia, ligada à CUF - Companhia União Fabril, mas que ficou praticamente inactiva com o início da guerra, reduzida a muitos poucos entrepostos no mato (em Bambadinca, ainda havia um, no meu tempo, 1969/71).

Acrescente-se que o léxico do combatente de Moçambique e da Guiné tinha muitas coisas em comum: por ex., a palavra lerpar que era utilizada pelas nossas tropas, nos dois TO, com o mesmo sentido de perda: morrer, ser ferido, perder qualquer coisa (por ex., ao jogo da lerpa), apanhar uma 'porrada' (castigo), ser escalado, etc. 


[Imagens acima: Cortesia da Wikipédia. A distância da capital, hoje Maputo, ao Niassa, é de 2800 km... Matola é hoje cidade e município,  capital da província de Maputo. É também nome de rio que desagua na baía do Maputo.]
_______________

Nota do editor:

9 comentários:

Antº Rosinha disse...

Pois é Luís Graça, como já disse noutro lugar, repito, era interessante um dia ser analisada por estudiosos, esta faceta da guerra do soldado que foi para a guerra "para guardar as costas dos brancos".

Foi tão importante o jogo psicológico do IN, e do jogo da guerra fria e do anti-salazarismo, incutido ainda na Metrópole aos militares, que, como estive de todos os lados, oportunidade que me deu de ver o divórcio tropa/civis, em Angola.

Havia companhias que chegavam a isolar-se dentro do arame farpado e não se comunicavam nem com brancos nem pretos, quando havia aquelas povoações com 3 ou 4 comerciantes e um chefe de posto e duas ou três sanzalas.

Claro que a minha guerra de 13 anos foi diferente de muitos e não é chamada para aqui.

Mas apesar de se querer esquecer esta faceta da guerra, fazia falta alguem estudar este divórcio entre portugueses, o que ajudaria a revelar coisas que seriam surpreendentes sobre nós "tugas".

Cumprimentos

Anónimo disse...

É simples meus caros.

Onde é que havia guerra em Moçambique ?
Distritos de Cabo Delgado,Niassa e Tete.

Em Agosto estive em Nampula, e falando com um Português aí radicado desde o tempo colonial me dizia que nunca deu pela guerra (sic)..essa era lá para o norte em Cabo Delgado.
A distancia entre a actual Maputo e Nampula é 1800 km que se fazia de automóvel ...nas calmas.
A grande maioria ficou "chocada" com a entrega à Frelimo..porquê ? se não havia "porra" de guerra nenhuma..o mesmo se podia aplicar a Angola.
Um alfa bravo

C.Martins

Antº Rosinha disse...

C.Martins, já que se deu o 25 de Abril, era difícil evitar o 26 que foi uma baderna, em que do "cantinho do ocidente" quase nos tornámos o "corno do ocidente".

Vê que em Moçambique quem se virou contra essa entrega à Frelimo não fomos os portugueses, mas sim os próprios moçambicanos durante mais de 15 anos.

De um dia para o outro formou-se a Renamo.

E se não havia guerra em grandes regiões de Moçambique e Angola, não era tanto pela força das "nossas" armas, mas porque a Frelimo e MPLA e os outros não se conseguiam impôr às populações.

Na Guiné também o PAIGC e a voz de Amílcar não se impunham às populações, "até hoje".

O velhos sobas, régulos e secúlos eram mais Salazaristas do que nós os portugueses, que a maioria de nós era mesmo contra o santacombadense, ou pelo menos céptico.

Só admira é como conseguimos seguir com a guerra depois do acidente da cadeira.

E como hoje parecemos umas "marionetes" nas mãos de uns gajos e gajas que nos dão uns trocados, e nem pestanejamos, como foi possível o "Botas" mandar um dia à merda o Kennedy e o Brejnev.

Descarado!

Luís Graça disse...

Rosinha (e C. Martins):

Não conheço Moçambique, por enquanto. E Angola (ou melhor, Luanda), só desde 2003, embora tenha contactos com profissionais de saúde desses dois países lusófonos há pelo menos um quarto de século...

O problema que o Rosinha levanta, e bem, do divórcio tropa/população civil em Angola, e de que ele foi testemunha (uma vez que esteve de um lado e do outro), é “histórico”: aconteceu em Angola, mas também em Moçambique, na Argélia, no Vietname, e por aí fora…

Na realidade, os militares das potências colonizadoras não estavam lá muito dispostos a morrer para defender os seus "compatriotas do ultramar", em guerras de guerrilha para as quais estavam pouco ou nada preparados...em termos não apenas técnico-militares como político-ideológicos, éticos e psicossociais.

Quanto à outra questão que tu, Rosinha, levantas, a do "timing" para acabar com a guerra... O que teria acontecido se o sucessor de
Salazar se se tivesse empenhado, com imaginação, ousadia, coragem e determinação, na "solução política (e diplomática)" para o "problema ultramarino" ?... E já que estamos no domínio da ficção histórica, o que teria acontecido se a guerra (colonial) nunca tivesse existido ? Imaginemos que, depois da II Guerra Mundial, Portugal voltasse a ser uma democracia parlamentar, ocidental, com a sua economia aberta ao exterior e beneficiando do plano Marshall ? Muita coisa poderia ter acontecido "de outra forma e feitio"... Pelo menos, e muito provavelmente, não estaríamos aqui a "desenterrar os mortos" (como nos têm acusado amiúde...) e a "exorcizar os fantasmas" da guerra colonial (que masoquismo!)... Bom, seguramente nunca nos conheceríamos, tu, eu e o C. Martins, nem estaríamos agora a "partir mantenhas"...

Quanto à tua guerra de 13 anos, "diferente da de muitos", não vejo por que é que não deveria ser aqui chamada... Como "grã-tabanqueiro" tens todo o direito a falar dela, aqui e agora... Aproveita, meu caro, enquanto o ministro das finanças não se lembrar de "taxar os blogues" e obrigar-nos a enfiar de vez a viola no saco...

Torcato Mendonca disse...

Pois sempre tenho que dizer algo.
1º...não é preciso focar outros Países.Na Guiné, concretamente em Bissau,Bafatá e, possivelmente noutras "cidades" esse divorcio esse notório...era longo o comentário se aprofundassemos isso. Podem falar em pessoas "amigas da tropa", por interesse delas.
2º - Se Marcelo Caetano tentasse outra via...era demitido!

Nota - Ler "O Regresso das Caravelas" de João Paulo Guerra, ...na sua Cronologia pós 25 de Abril.

Abraços do T.

Antº Rosinha disse...

"2º - Se Marcelo Caetano tentasse outra via...era demitido"

Torcato Mendonça, nem mais, mas demora os historiadores escreverem que aqueles anos a seguir ao desastre da cadeira, o país só deslizava pelo impulso do "falecido", era a força da inércia.

Luís Graça, criaste este blog da Guiné e não deve haver dispensa para sair do quartel.

Além de eu não saber escrever, e nunca na minha vida pensei escrever tanto como faço aqui, apenas as minhas afirmações (abertas mas só do que eu vi), não devo sair dos comentários aos livros que nos vão sendo lidos pelo Beja Santos e poucos mais, e tu publicas.

Cumprimentos


Anónimo disse...

Tropa em tempo de guerra significa problemas para os elementos da dita e mais ainda para a população civil que reside no teatro de operações militares..logo só se gosta se se for masoquista..normalmente finge-se..pudera.

No caso em apreço a esmagadora maioria vivia em regiões,felizmente, em paz (Angola e Moçambique)que fazia a sua vida mais ou menos cómoda e que não sabia ou melhor não queria saber nada do que se passava em regiões distantes..isso era lá com os militares.
Nos "entretantos" e para espanto quase geral são confrontados com o facto consumado da mudança do poder "independências"..revolta generalizada,angústia e impotência perante os acontecimentos que se sucediam vertiginosamente..
Muita injustiça..oportunismo mesquinho de alguns..ponte aérea..descarregados em figo maduro como simples mercadoria (muitos).
Porquê ?..Porquê ?..
Ah.. já me esquecia..então não é que havia uma guerra, e como todas as guerras têm um começo e um fim.

C.Martins

Antº Rosinha disse...

C. Martins falas de retornados.

Falas de mim que tive oportunidade, e até digo o "previlégio" de ser retornado.

Tive oportunidade de receber uma aula de vida e sobre a história do nosso Portugal "português", que nenhum catedrático me ensinaria tanto como essa aula que recebi.

Quem estivesse ainda em idade de "reprodução" e com saúde, só teve a ganhar com a experiência.(36 anos, maravilha)

Mal foi para aqueles que estando numa idade mais entrada, foi um murro no estômago, que vai chamar crise...cala-te boca!

É de lamentar a vinda de africanos e brancos já lá nascidos e que alguns até eram dos partidos, mas por causa de crianças e velhos tiveram que vir para uma terra que nem conheciam, para fugir à guerra que se seguiu em Angola e também em Moçambique.

Andam por aí "meninos" vindos de lá que taparam o nariz, e que se governaram muito bem aconchegando-se à partidocracia que de repente se criou.

Há estômago para tudo.

Um abraço

Anónimo disse...

OH..meu caro "colon" e camarada A.Rosinha.

Detesto o termo "retornado", falo isso sim de "refugiados".
Retornado é aquele volta às suas origens, só que muitos nasceram lá.
Aconteceu de tudo, como sabes.
Muitos reiniciaram uma vida nova, outros perderam tudo, e alguns oportunistas "abotoaram-se" com milhares de contos do IARN e deram ao "slide" para outras paragens..

A minha actual companheira é uma nampulense de gema apesar de ser loura e ter olho azul..
Fomos lá em agosto..comoveu-se e chorou no meu ombro.
No regresso ainda no aeroporto de Maputo voltou-se para mim e com ar sério e grave, disse : "NUNCA MAIS CÁ VOLTO"...ok..está bem..tu é que sabes...

C.Martins