1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Setembro de 2012:
Queridos amigos,
Mário de Andrade organizou esta biografia política de Cabral quase como um manual de consulta para leitores que fossem eventualmente quadros do PAIGC mas também curiosos que quisessem conhecer a formação cultural, a aprendizagem política, a organização do pensamento político e do tipo de intervenção pragmática que Cabral teve na história do PAIGC.
Utiliza a correspondência dos dois, e o produto final leva à conclusão que não se pode estudar a obra de Cabral e o seu relacionamento com o PAIGC sem ler este Mário de Andrade.
Um abraço do
Mário
Amílcar Cabral, uma biografia intimista de um grande intelectual africano
Beja Santos
Em 1980, as edições François Maspero davam à estampa o livro “Amílcar Cabral, Essai de biographie politique”, por Mário de Andrade. É do conhecimento de todos que os dois líderes trabalharam conjuntamente, Andrade e Cabral nutriam uma estima e uma admiração reciprocas. Cabral confidenciava-lhe memórias, pedia-lhe conselho, mostrava-lhe em primeira mão documentos de tese. Por todas estas razões, Andrade dispunha de meios singulares para escrever esta biografia que se distingue de todas as outras, as que a precederam e as que a antecederam. E ele não esconderá, ao longo deste trabalho, que se rende perante as excecionais qualidades de Cabral como organizador, teórico, diplomata e revolucionário. Não exagera quando diz que o nome de Cabral estava associado a duas outras grandes figuras dos anos 60, Patrice Lumumba e Kwame Nkrumah, o mártir do Congo e o visionário da unidade continental.
Cabral propõe-se reconstituir o itinerário político intelectual do líder do PAIGC, passando pelos escritos da juventude até às intervenções mais significativas no período mais fulgurante e de maior apogeu das suas faculdades.
Pouco há a comentar ao que escreve sobre as raízes do líder. Julião Soares Sousa na sua indispensável bibliografia sobre Cabral já procurou dilucidar alguns mitos em que incorre Andrade e não só: o papel que tiveram na sua formação Juvenal Cabral e Iva Pinhel Évora, seus pais; a sua cultura assumida de caboverdianidade nos tempos de liceu, a sua clara preparação em moldes praticamente europeus, que se veio a acentuar em Lisboa, quando ele ingressa no Instituto Superior de Agronomia e frequenta a Casa dos Estudantes do Império. A primeira mulher de Cabral depõe sobre o recém-chegado do Mindelo, transcreve-se uma poesia que lhe foi recusada na Seara Nova e que acabou por ser publicada num boletim praticamente desconhecido, O Metalúrgico. Andrade cita a correspondência trocada com Cabral onde sobressai o seu desejo de regressar a África. Reflete profundamente sobre a condição cabo-verdiana, sabe que os mestiços são em número mais elevado que os brancos e num número três vezes maior do que os negros e escreve mesmo: “Um grupo de homens – seres humanos – comporá uma raça ou um grupo étnico na medida em que eles afrontam problemas comuns e lutam por aspirações comuns”. Estamos em 1949, ele começa a usar repetidamente na sua correspondência a palavra libertação. Volta a Cabo Verde e procura intervir em palestras radiofónicas, escreve sobre a erosão dos solos, continua a escrever poesia e no seu livro de curso vem o seu poema “O adeus à Tapada” e na página que lhe é reservada ele dedica uma tocante homenagem à sua grande referência, a Mãe Iva.
A sua formação em Lisboa, observa Andrade, decorre da leitura de obras marxistas ou de conotação social; milita no MUD juvenil e fala constantemente na identidade africana e na “reafricanização” dos espíritos. Estamos no tempo em que se fala nos meios intelectuais do new negro norte-americano, na negritude de Léopold Senghor e nos contactos estabelecidos com a revista Presença Africana. Andrade considera que Cabral tinha um relacionamento privilegiado em Lisboa com Marcelino dos Santos e Viriato da Cruz. Todos esses estudantes africanos faziam a sua formação ideológica e política inequivocamente junto da esquerda marxista-leninista.
Dá-se o regresso à Guiné, Cabral faz o recenseamento agrícola e estabelece contactos clandestinos. Está lançada a semente para mais tarde criar o PAI, a primeira designação do PAIGC. Todo o percurso subsequente analisado por Andrade é hoje matéria consensual: a frente conjunta anticolonial, a conferência das organizações nacionalistas das colónias portuguesas, a ida pra Conacri, a ascensão dos nacionalismos e o reconhecimento de muitos países independentes.
Debruçando-se sobre o pensamento político de Cabral, Andrade sublinha a sua abundantíssima produção constituída por notas, estudos e relatórios e, ao longo dos anos, textos de conferências, entrevistas, artigos e o rico material das suas notas relacionadas com o seminário de quadros do PAIGC, em 1969.
Primeiro, o escopo teórico da luta contra o colonialismo português, na sua ampla abrangência das diferentes lutas anticoloniais mas com a identificação das características específicas da Guiné, em termos socioeconómicos e culturais.
Segundo, a aliança entre a teoria e a prática, a implementação de uma estratégia que irá apanhar completamente de surpresa as autoridades portuguesas: os guerrilheiros não vêm das fronteiras, instalam-se no interior do território, conquistam a adesão de população, demarcam áreas de influência.
Terceiro, a construção do modelo de guerra popular acompanhado de um projeto revolucionário do poder, mediante um esquema que compreendeu a mobilização, a propaganda armada, uma organização social, uma supervisão do esforço militar pelos dirigentes políticos. Cabral não tem ilusões da extensão da guerra e de igual modo escreve sobre as taras e os desvios que surgem no seu do partido e que ele designa claramente: a regulundade, o espírito do chefe guerrilheiro que procura organizar clientelas; a catchorindade ou o servilismo e a mandjoandade, o espírito de clã, o resquício do tribalismo. E dirige-se continuamente aos seus quadros, alertando-os para o grande perigo de se ficar enquistado pelas tradições ou pelo desejo de um qualquer domínio étnico, verdadeiro fator desagregador do espírito da unidade.
Quarto, a capacidade e a dinâmica que imprime aos trabalhos do congresso de Cassacá e as consequências na organização política e das forças armadas. Com o avançar da luta, desenhou e fez com que se praticasse os princípios de um poder popular através de comités de base e da submissão do chefe guerrilheiro ao comissário político. Entretanto o pensamento de Cabral era dominado por uma ideia central: a luta teria que se traduzir por uma melhoria real das condições de vida e repetiu para quem o quis ouvir: “Não serve de nada libertar uma região ou um país se o seu povo não puder dispor de artigos de primeira necessidade para a vida corrente". Isto saldou-se durante a luta pela criação de armazéns do povo e pela tentativa de distribuir equitativamente os produtos provenientes da ajuda internacional, bem como pela criação de equipamentos para a saúde e educação.
Quinto, a sua teoria política, se bem que revelasse uma enorme flexibilidade quanto à relação com todos os povos, era inequivocamente socialista, anti-imperialista e equidistante dos blocos erguidos pela Guerra Fria. Sabia que o proletariado agrícola/camponês não dispunha de condições para ser a força mobilizadora, mas alertou a pequena burguesia dirigente que devia estar permanentemente atenta às expectativas do povo em armas. E por isso mesmo foi atribuindo um papel de primordial importância à cultura como a força galvanizadora do movimento de libertação, o homem novo iria liquidando progressivamente os restos da mentalidade tribal e feudal, os tabus e até as crenças animistas.
No termo da sua biografia política, Andrade considera que o pensamento de Cabral era suficientemente forte para manter a sarça-ardente do processo revolucionário.
Este texto foi concluído em Março de 1980, em Bissau. Sabe-se o que aconteceu depois do 14 de Novembro.
____________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 3 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10754: Notas de leitura (436): "Elites Militares e a Guerra de África", por Manuel Godinho Rebocho (3) (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
4 comentários:
Penso que é Mário Pinto de Andrade este autor.
Ele chegou a fazer parte do Governo de Luís Cabral.
Tanto Amílcar como Mário Pinto de Andrade, já fizeram parte da fundação do MPLA.
Havia muita irmandade entre angolanos, caboverdeanos, guineenses e Sãotomenses, principslmente por todos os que andaram nos liceus, missões e universidades.
Poucos ficaram como refrência para aqueles países enquanto vivos.(para o povão)
Teria durado menos tempo a sua refrência se em 1961, Salazar tivesse apoiado esses portugueses numa independência.
E foi pena , muita pena, porque era gente marvilhosa, conheci e vi milhares "irmãos" deles que podiam ter ficado na terra deles e ajudar a fazer daqueles países, países sem guerra.
Porque essa gente não era de guerra.
Mas era,a era dos "Ché,s" e contra a força não havia "Spínolas" que aguentassem.
Cumprimentos
Penso que é Mário Pinto de Andrade este autor.
Ele chegou a fazer parte do Governo de Luís Cabral.
Tanto Amílcar como Mário Pinto de Andrade, já fizeram parte da fundação do MPLA.
Havia muita irmandade entre angolanos, caboverdeanos, guineenses e Sãotomenses, principslmente por todos os que andaram nos liceus, missões e universidades.
Poucos ficaram como refrência para aqueles países enquanto vivos.(para o povão)
Teria durado menos tempo a sua refrência se em 1961, Salazar tivesse apoiado esses portugueses numa independência.
E foi pena , muita pena, porque era gente marvilhosa, conheci e vi milhares "irmãos" deles que podiam ter ficado na terra deles e ajudar a fazer daqueles países, países sem guerra.
Porque essa gente não era de guerra.
Mas era,a era dos "Ché,s" e contra a força não havia "Spínolas" que aguentassem.
Cumprimentos
Abençoado Rosinha, que cinquenta anos depois, continuas a acreditar
que esses militantes revolucionários, em luta pela sua África oprimida por cinco séculos de colonialismo, eram, "gente maravilhosa".
Conheci Viriato da Cruz, talvez um dos mais puros e honestos de todos,do MPLA, e conheci a sua trajectória entre Moscovo e Pequim, onde viria a falecer em 1975, quase como um cão, chutado e ignorado por todos, MPLA,soviéticos, chineses.
Abraço,
António Graça de Abreu
Talvez António Graça talvez eu não me tenha feito entender.
Aliás eu já expliquei que não sei escrever, e talvez até seja disléxico.
Eu apenas atribuo a Amílcar e a aquelas dezenas de portugueses que pegaram em armas para chefiar o MPLA, e PAIGC, que ajudaram a impedir que milhares de irmãos deles, que não eram "de guerras", a cavar, fugir, dar de frosques, da terra que os viu nascer e que estavam preparados para fazer daquelas terras, terras sem guerra.
Tinham em geral uma óptima formação para tal.
Ora, António Graça, eu apenas atribuo a Amílcar e às poucas dezenas de fundadores e dirigentes do MPLA e PAIGC, a responsabilidade pelo êxodo de milhares de irmãos deles que faziam muita falta àqueles países, mais do que faziam falta em Portugal e no Brasil.
E também quís dizer que se Salazar não "amasse" aquelas dezenas de portugueses tinha-os apoiado numa independência, e teriam sido liquidados pouco tempo depois, como os Belgas fizeram com Lumumba, por exemplo.
Penso que me fiz entender.
Cumprimentos
Enviar um comentário