quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Guiné 63/74 - P12028: "Memórias da Guiné", por Fernando Valente (Magro) (8): O Clube de Oficiais

1. Continuação das "Memórias da Guiné" do nosso camarada Fernando Valente (Magro) (ex-Cap Mil Art.ª do BENG 447, Bissau, 1970/72), que foram publicadas em livro de sua autoria com o mesmo título, Edições Polvo, 2005:


MEMÓRIAS DA GUINÉ

Fernando de Pinho Valente (Magro)
ex-Cap. Mil de Artilharia 

8 - O Clube de Oficiais




Instalado no Clube de Oficiais, em Santa Luzia, próximo do Quartel-General, iniciei a 21 de Abril de 1970 a minha actividade nos Serviços de Reordenamentos Populacionais no Comando Chefe (Amura).

Durante a minha estadia nesse clube tive contacto com vários oficiais do quadro permanente e do quadro de complemento (milicianos) que também lá se encontravam instalados ou que, estando sediados fora de Bissau, por lá passaram para tratar assuntos relativos às companhias que comandavam.

Em finais de Abril o General Spínola reuniu numa grande sala do Palácio praticamente todos o capitães em serviço na Guiné.
Eu, praticamente acabado de chegar, também estive presente nessa reunião.

O General traçou novos rumos no que dizia respeito à luta contra a subversão.
Deu a entender que se estavam estabelecendo negociações com os chefes terroristas no sentido da resolução política do diferendo.
Ordenou que as Companhias Operacionais não mais tomassem atitudes ofensivas, mas simplesmente defensivas. Mandou que se procedesse sem ódio nem brutalidade contra os prisioneiros de guerra e as populações afectas ao inimigo, de modo a que se possibilitasse a sua apresentação às autoridades e se pudesse caminhar para a pacificação.

Com a vinda a essa reunião dos capitães que se encontravam espalhados pelo território, pude conhecer alguns e rever o Espinha de Almeida, do meu tempo da Escola Prática de Artilharia, que se encontrava no Xitole (Bambadinca).

Este capitão miliciano, embora de pequena estatura, era corajoso.
Chamavam-lhe, por ser baixo, Capitão Pitaitas.
Mostrou, no entanto, valor militar, uma vez que nunca deixou de acompanhar os seus soldados em diversas missões, expondo-se ao fogo do inimigo.

Em dada altura sabedor do local, na mata, onde estava estacionado um numeroso grupo de "terroristas" fora do alcance do seu obus, resolveu desmanchá-lo e transportá-lo em peças para um lugar donde fosse possível bombardear a posição inimiga.
Depois de montar devidamente as peças do canhão atingiu com êxito a posição "terrorista" causando-lhe diversas baixas.
Pela sua bravura, o Capitão Espinha de Almeida foi galardoado com a medalha de serviços distintos com palma.

Na referida reunião dos capitães com o General Spínola, fui surpreendido pela forma descontraída, directa e muito incisiva, como o Capitão Vasco Lourenço procurou saber do General mais pormenores sobre o modo como actuar futuramente face às novas directivas. Directivas que passados alguns dias foram canceladas, dado que foram mortos três majores e um alferes que, desarmados, procuravam o contacto com chefes terroristas de que havia indicação de se quererem entregar.

Um dos majores (Pereira da Silva) conhecia-o muito bem, pois havia privado com ele no GACA 3 tendo ele, na altura, o posto de Tenente.

A minha vida ia correndo sem grandes sobressaltos entre o Comando-Chefe e o Clube de Oficiais. Aqui no Clube, havia uma piscina e à noite por vezes havia cinema e outros espectáculos ao ar livre.
Lembro-me de ter visto espectáculos de música, de ilusionismo e uma vez de hipnotismo. Neste último um soldado, depois de hipnotizado, foi convencido que estava uma noite gélida (ao contrário do que acontecia, pois tratava-se de uma cálida noite africana) e recordo-me como ele tremeu de frio e se agasalhou o mais que pôde com as roupas que tinha por perto.

Estando à beira da piscina, no dia 19 de Maio de 1970, ouvi pela primeira vez a artilharia dos independentistas em acção.
Eram cerca de 23 horas quando foi desencadeado um ataque com artilharia ao Quartel de Tite.
Os rebentamenros era perfeitamente audíveis em Bissau. O poder de fogo era grande, tendo havido lançamento, por parte das forças inimigas, de cinco mísseis.

No Clube de Oficiais fazia a minha vida depois de findo o meu serviço no Comando-Chefe. Era a minha casa. Lá tinha tudo: alimentação, dormida e até barbearia.
Foi justamente na barbearia onde certo dia fui cortar o cabelo que se deu este episódio com o Capitão Vasco Lourenço que vou passar a contar.

Encontrando-me uma vez sentado numa das cadeiras da barbearia do Clube de Oficiais de Bissau, acomodou-se a meu lado o Capitão Lourenço.
Imediatamente solicitou que lhe cortassem o cabelo. Este pedido surpreendeu o soldado da barbearia que, tartamudeando, se aprontou para o atender.
- Mas... meu capitão, ainda nem há uma hora lhe cortei o cabelo!
- Pois é. Mas vais cortar-mo de novo.

O rapaz não replicou, mas muito em surdina, ainda conseguiu pronunciar duas palavras que só eu pude entender, embora com dificuldade.
- Está "apanhado".

Também fiquei intrigado com o que se passava, pelo que procurei esclarecer o assunto mais tarde.
Quando ambos abandonamos o Clube de Oficiais, o Capitão Lourenço satisfez a minha curiosidade.
Segundo me explicou, havia-se cruzado, após o primeiro corte de cabelo, com um dos chefes militares de Bissau.
O Coronel Onze, como era conhecido e não me perguntem porquê, era muito rigoroso com o atavio e o porte dos seus subordinados, principalmente com os oficiais. Quando se cruzou com o Capitão Lourenço te-lo-á interpelado com severidade, chamando-o à atenção para o facto de o seu corte de cabelo não ser o regulamentar.
- O Senhor Capitão é miliciano?
- Não, não, meu Coronel. Eu pertenço ao quadro permanente.
- Mas isso é indisculpável. Faça o favor de ir cortar o cabelo imediatamente. Essa melena na testa é uma vergonha. Depois apresente-se no meu gabinete.

Seguidamente a este relato, que tentei aproximar tanto quanto me foi possível da realidade, o Capitão Lourenço teceu várias considerações e deu curso à sua revolta interior.
Explicada a razão pela qual o Capitão Lourenço teve necessidade de cortar o cabelo, pela segunda vez no mesmo dia, o referido oficial encaminhou-se para o gabinete do Coronel Onze.
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Nota do editor

Último poste da série de 4 DE SETEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12007: "Memórias da Guiné", por Fernando Valente (Magro) (7): Relato do ataque à capital da República da Guiné feito pelo Tenente Januário na Rádio Conacry

14 comentários:

Antº Rosinha disse...

Ainda alguem pensou que este blog estava moribundo.

Veja-se só esta pérola da melena de um futuro Capitão-de-Abril.

Esta cena da melena não seria possível em qualquer filme de uma RTP, nem em cenas da colonial Legião Francesa ou de um filme da guerra de Secessão.

Só mesmo num exército típico do Estado Novo.

Antes da guerra havia o hábito da "ecada" como castigo ao recruta indisciplinado.

Esta do futuro Capitão-de Abril encomendar a melena ao barbeiro é muito representativa daquele exército do Estado Novo.

O exército que alem de sustentar o Estado Novo, fez a guerra do Ultramar e também o 25 de Abril.

O 26 de Abril já foram os civis, fomos nós todos.

Cumprimentos

Anónimo disse...

Caro Senhor Fernando Valente. Esta é a "guerra" que agora, entendo, devamos descrever. Assim explicitamos o que aconteceu, quer sendo este pormenor, ou outros que nada têm de sangue à mistura, embora este tenha existido. São episódios que não magoam, mas nos mantém no activo.
Veríssimo Ferreira
CCAÇ 1422 K3 65/67

Anónimo disse...

O Coronel Santos Costa, o Onze, não era só austero. Era desumano.

O capitão Lourenço ficou-se por um corte de cabelo, não uma carecada. Um furriel da CCaç 3327 descreveu a ocorrência numa participação que fez, mas não mencionou o artigo ofendido do RDM. Levou com 5 dias de detenção. Por pouco iosso não lhe custou as férias na Metrópole.

Cumprimentos.

José Câmara

Carlos Pinheiro disse...

Gostei desta memória e acima de tudo de ouvir falar do tal "11" que era mais que famoso na cidade de Bissau. A maior parte dos militares nem o chegou a conhecer, mas histórias acerca dele toda a gente conhecia.

manuel carvalho disse...

Conheci um Major Santos Costa. de quem tenho péssimas recordações foi meu comd. de comp. na recruta nas Caldas da Raínha 2º turno de 67 e pelo que estou a ler trata-se do mesmo artista.Era desumano muito exigente em fardamentos e outras coisas que não interessam nada e quanto a coragem não sei mas duvido muito. Não gostsvamos muito dos comd. de Pel.mas agora percebo porque é que eles procediam assim.Diziam que ele era filho de um militar que foi ministro de Salazar muitos anos.
Quanto ao Cap. Mil. Espinha de Almeida julgo que é do Porto e foi comandante de Companhia do nosso camarada David Guimarães.Não é necessário ir à Academia Militar ou a outros sítios para se ser um bom combatente.

Manuel Carvalho

MANUEL MAIA disse...

O VASCO DE MELENA E PÁ...TAMBÉM CONHECIDO POR FAZEDOR DE REVOLUÇÕES E COISAS AFINS...

manuel carvalho disse...

Olhando mais atentamente para a foto do Clube de Oficiais em Santa Luzia veio-me à memória o celebre incendio das casernas do seiscentos em Junho de 69 (aqui falado num poste do Carlos Pinheiro).Vemos do lado direito da foto uma arvore enorme e mais para a direita estariam as casernas que arderam, tinhamos chegado a B

issau há uns dias vindos de Jolmete e estava eu e uns camaradas debaixo daquela arvore a asistir e mesmo ali um camarada levou com um pedaço de G3 na cabeça.Em frente ao Clube julgo que haviam umas arvores da papaia,Desde já agradeço que alguém que conheça a zona que me diga se é assim ou não.

Manuel Carvalho

Anónimo disse...

Desmontar "canhões" na artilharia.

Capitães "melenas" infantes..

Coroneis "militares de parada"..

"Enbrulhanços" ouvidos no "bem bom" de Bissau...

Assim ia decorrendo o "tempo de guerra"..para uns...para outros era mais ..fome..sede...sangue...suor..lágrimas..

Triste "fado e sina"..deste jardim à beira-mar que as musas cantavam em tempos idos e agora lamentam nesta apagada e vil tristeza perpetuada por "troikas" e similares...

C.Martins

Carlos Silva disse...

Amigos & Camaradas

1 - Reitero o que escrevi em comentário ao Post 11637

"Olá Mário

Tenho o livro, que li e reli, pois é interessante.
Vejo que não abordas uma história/testemunho presenciado por ele na reunião dos capitães com o Gen Spínola relativamente à intervenção do então Cap Vasco Lourenço, págs 38 e 39, que também está contada pelo próprio no seu livro " Interior da Revolução - págs 237 a 239 " e é engraçado que o Cor Vasco Lourenço desconhecia que este episódio vinha publicado neste livro, pelo menos até ao momento em que lhe dei a conhecer.
Um abraço
Carlos Silva "

2 - O Cor Vasco Lourenço, com melena ou sem melena, é um capitão de Abril.
Quer gostem dele ou não e quer queiram ou não, é um Homem que faz parte da nossa História Contemporânea, e por enquanto não vejo nenhum dos prosadores do nosso blogue a terem lugar na nossa História, salvo se, vierem no futuro a praticar actos relevantes para o País, o que tenho sérias reservas que isso venha a acontecer nesta altura do campeonato da nossa vida.

2 - Eu sou abrilista, sempre, embora respeite opiniões contrárias.
Tudo o resto são tretas ....
Um abraço
Carlos Silva

Antº Rosinha disse...

Qualquer guerra vista pelos olhos de um mancebo que vai para a guerra e vista pelos olhos desse mesmo mancebo ao apagar as velas do septuagésimo aniversário, será com uma opinião forçosamente diferente.

Todos os países europeus que tiveram exércitos coloniais, e que nós até as fardas e os métodos de alguns copiámos, continuam a manter exércitos, com fins idênticos, só que agora são militares voluntários profissionalizados.

Ainda recentemente houve a intervenção militar francesa no Mali.

Será que é por uma bandeira ou um ideal que esses militares arriscam a vida?

Não haverá naquelas cabeças uma grande percentagem de espírito de aventura natural em muitos jovens?

Em muitos de nós com 20 anos não faltaria o espírito de aventura e curiosidade.

Não eramos de certeza uns jovens-maduros.

Um dos motivos da ida à guerra também não seria desprezível o entusiasmo, a aventura e a curiosidade.



Anónimo disse...

Caro camarada C.Silva

Tem calma..não te enerves..olha que te faz mal à tensão...

Claro que o Sr.Coronel V.Lourenço tem um lugar na nossa história como mentor e preparador do 25A..a melena é só uma "treta"..com alguma piada..aliás qualquer beirão tinha..menos os carecas...

Um alfa bravo

C.Martins

Anónimo disse...

Segundo julgo saber,não foi nenhum "canhão de artilharia"(não os tinha)que o Cap.Espinha de Almeida mandou desmontar.Terá sido o morteiro 10.7...

PSantiago

Anónimo disse...

Para os que se interessam com os pormenores da história, em Janeiro de 1971 o Cor. Santos Costa era o Cmdt do AGRBIS, com sede em Brá. Nessa altura era ali que ele tinha o seu commando.
Cumprimentos.
José Câmara

Anónimo disse...

Dizia-se que para o Sr.Coronel, conhecido como o 11, atingir a sua posicäo verdadeira na "escala" lhe faltavam 58 números.
Quanto a melenas (de outros), aparentemente desapareceram com o passar das décadas.
O sentimento de..."näo haver sido"...só ele saberá.