domingo, 5 de outubro de 2014

Guiné 63/74 - P13695: Estórias avulsas (80): Hojé, há pássaros! (João Rebola)

1. Mensagem do nosso camarada João Rebola (ex-Fur Mil da CCAÇ 2444, , Cacheu, Bissorã e Binar, 1968/70), com data de 26 de Setembro de 2014:

Olá, Carlos, boa noite
Envio-te este artigo para publicação, se assim o entenderes.
Conforme digo no início, a estória é verdadeira. No entanto, juntei-lhe uma pitada de fotos, confirmando o que se afirma para a tornar mais agradável de se ler e para aqueles que estiveram em Bissorã, possam também recordar alguma coisinha.

Aceita um abraço do
João Rebola


Hoje, há pássaros!

Esta é uma estória passada na vila de Bissorã, no já longínquo ano de 1969. Não se torna difícil para mim recordar alguns pormenores que aconteceram há mais de quatro décadas, isto porque, aí permaneci a maior parte da comissão, aí passei os melhores momentos, embora também houvesse outros menos bons, aí fiz amizades que ainda hoje perduram.

Em 2011 voltei lá e encontrei o simpático casal de comerciantes libaneses, Soad e Alfredo Kallil, onde, no seu estabelecimento, adquiri vários artigos, entre os quais, se bem me lembro, um rádio com gira-discos para ouvir as músicas e os discos em voga,”in illo tempore”. Depois de lhes mostrar fotos antigas, reconheceram-me, rejubilando de alegria.

Bissorã - 1969 - Aqui está a minha suite. À esquerda, o rádio gira-discos.

Bissorã – 2011 - Manuel Sá e João Rebola com Alfredo Kallil e Soad

Bissorã – 1970 - Soad com um dos filhos de Zé Manjaco, ao colo

Bissorã – 1969 - Com Alfredo Kallil, em dia de “ronco“

Bom, voltemos à estória. Junto ao bar dos sargentos da CCAÇ 2444, havia (e há) uma grande mangueira, onde em determinada época do ano, ao cair da tarde, afluía enorme quantidade de pássaros para passarem a noite.

Bissorã - 2011 - O bar e a mangueira ainda lá estão!

Então, pus-me a pensar como é que havia de fazer para, de vez em quando, termos uma boa ceia. Quando vim de férias, em junho de 69, levei desmontada a minha Diane 850, espingarda de pressão de ar, mas verifiquei que, de pouco ou nada servia: matava um, fugiam dezenas. Não podia ser, tinha de haver outra maneira. E ela surgiu. Havia em Bissorã um pelotão de polícia administrativa que não dependia do exército, mas sim do Administrador, Sr. Gramaxo. Como responsável pela polícia, encontrava-se o cabo Pedro.

Bissorã - 1969 - Visita do Administrador ao refeitório dos soldados

Alguém me disse que ele (Pedro) tinha uma espingarda calibre 12. Como sabia onde era a sua tabanca, lá o encontrei, pedindo-lhe que ma emprestasse, ao que ele acedeu, depois de lhe dizer o porquê do meu pedido. Com cartuchos no bolso e arma na mão, entrei no bar e aguardei que a passarada chegasse. Não demorou muito tempo a sua vinda. Dois pretinhos, tidos como “funcionários” encarregavam-se da limpeza do bar, dos quartos, faziam as camas, etc, e que nos dias em que a arma funcionava, com a colaboração de outros e de nós próprios, ajudavam a apanhar os pássaros caídos, a depenar e a assá-los. Assim, por volta da meia-noite, começava a ceia. E que ceias! Numa dessas noites, encontrava-me de serviço no abrigo/posto de Missirá, um pouco distante do quartel e vim ao bar, no meu transporte, para petiscar com quem lá se encontrava.

Bissorã – 1969 - Esta era a minha Honda 50, comprada em Bissau

O alf. António Marcão manisfestou-se negativavamente à minha chegada, deu-me cabo do juízo, mas depois de alguma discussão, acabei por ficar e acompanhá-los nesse saboroso petisco, ou não fosse eu que tivesse matado a passarada. A foto que se segue reporta essa situação, mostrando a sua indiferença.

Bissorã - 1969 - Na célebre ceia, fur. João Rebola, os alf. Vinagre (já falecido), Marcão e Carreiro (meio escondido); de costas os fur. Firmino, Cardoso e Orlando Silva.

Bissorã – 1969 - Ao fundo o alf. Beirão, fur. Firmino, alf. Carreiro e fur.Rebola, brindando

Como se sói dizer “não há bem que sempre dure nem mal que nunca acabe”, daí, que estas ceias não terem ultrapassado mais de dois meses. E por quê? Porque até setembro de 1969, a responsabilidade do sector de Bissorã era da CCAÇ 2444, única companhia aí sediada, mas a partir daquele mês, a sede do Batalhão 2861, procedente de Bula, transferiu-se para esta localidade. E como se tal não chegasse, dias depois, surgiu o TCor Polidoro Monteiro, oficial extremamente exigente, de poucas falas e de grande respeitabilidade. Perante este quadro, não arrisquei mais tiros. Havia também outra razão, pois o comando ficava relativamente perto do bar e qualquer detonação seria facilmente ouvida.

Assim, só me restou ir entregar a arma ao cabo Pedro, deixar a passarada em paz e utilizar a pressão de ar nas rolas, quando, distraidamente, se entretinham a comer mancarra, junto à estrada de Bissorã/Mansoa.

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Nota do editor

Último poste da série de 18 de Setembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13624: Estórias avulsas (79): A melhor coisa que me poderia acontecer, uma viagem sem pressa que até parecia que estava no país das maravilhas (José Maria Claro)

5 comentários:

Luís Graça disse...

Caro João:

1. Foi bonito, da tua parte, voltar a Bissorã e rever os teus amigos libaneses, que lá continuaram ao fim destes anos todos... As amizades cultivam-se. E a gratidão é um dos mais nobres sentimentos humanos.

2. A caça é tão velha como a humanidade. Sem sermos "formatados" como animais carnívoros, tornámo-nos predadores oportunísticos e o suplemento proteico trazido pela carne terá sido, seguramente, uma vantagem na nossa evolução biológica...

Caçar e comer passarinhos ajudou-te também a melhorar a tua alimentação em Bissorã e sobretudo dei-te oportunidades de socialização, de convívio, de camaradagem que são fundamentais na guerra.

3. Seria idiota se aparecesse aqui alguém com um discurso ecologicamente correto, "ai, que horrer, andar a matar e a comer passarinhos"!... Foi um passatempo de muitos de nós, e o petisco era apreciado, sobretudo pela malta do sul...

Não era o meu caso, sou boa boca, mas não é dos meus petiscos favoritos...

4. Quanto ao ten cor Polidoro Monteiro, infelizmente já falecido... Como sabes, ainda o fui apanhar, no fim da minha comissão, a comandar o BART 2917, a que a CCAÇ 12 estava adida, em Bambadinca... Tinha respeito e até admiração por ele. Não precisava mostrar os galões, e alinhava connosco no mato, o que era suficiente para se impor, quando a norma era os oficiais superiores nunca se misturaren, no mato, com a "tropa-macaco"... Comandante, ou fica no quartel, ou vai no bem-bom da DO 27, a fazer de PCV... Isto antes dos Strela, claro...

Era um oficial, de infantaria mas da confiança de Spínola. Disciplinado e disciplinador, mas tanto quanto sei também era capaz de infringir as normas de segurança e ir caçar à noite lebres, fora do arame farpado, no fim da pista...

O Paulo Santiago, que conviveu mais com ele, pode falar com mais propriedade sobre o Polidoro Monteiro e o seu gosto pela caça... Devo-te dizer que não sou nem nunca fui caçador, muito menos na Guiné...

Não te vou dizer que fizeste mal em deixar os passarinhos em paz, afinal podias continuar a gozar o teu passatempo (e a melhorar a tua dieta alimentar e a af<zer um favor aos fulas que cultivavam a mancarra...), se tivesses sabido negociar com ele...

O problema é que tu não sabias que ele também gostava de dar uns tirinhos...

Aquele abraço. Obrigado pela tua história. Luís

PS - E depois do petisco, não havia fados ?

armnando pires disse...

Só te esqueces-te de levar os pássaros para as noites de fado.
Há aqui na tua história umas três fotos que eu não conhecia. Quando estivermos ao telefone vou dizer-te quais são, para que me envies as digitalizações. Umas delas sei que o Dr. Oliveira gostaria de ver. É aquela onde está o Zé Manjaco, cozinheiro de messe dos oficiais e que tinha grande estima pelo Dr.
Um abraço e até mais logo.
Ao telefone ou no Skype.
armando pires

paulo santiago disse...

Não tenho ideia dessas caçadas nocturnas no fim da pista.
Lebre,comi uma vez,apareceu repentinamente a atravessar a carreira de tiro,em hora de instrução nocturna,e levou fogo.
Por falar no Polidoro,amanhã,vou almoçar com o filho dele,um "puto" que apareceu em Bambadinca na época do Natal/71,era aluno do Colégio Militar.Este almoço,foi "tratado" pelo Armando Pires,que ocasionalmente,conheceu o "miúdo" há meses atrás.Vai também o "Alfero" Cabral.
Abraços

Maria Dulcinea disse...

Olá João Rebola e restantes camaradas da Guiné.
Foi bom relembrar através das fotos publicadas e em especial onde estão representados o casal Soad e Alfredo Kallil.
Fiquei mesmo muito feliz por saber que pelo menos em 2011 estavam vivos e de tão bom aspecto.
Quando estive com o Henrique em Bissorã no ano de 1973/74 fiz grande amizade com a Soad,trocamos experiências culinárias e grandes tardes de conversa.Tenho uma foto ou outra tirada com a Soad,mas ficam mesmo as recordações dos momentos que passamos.
Gostei mesmo de rever este casal mesmo que em fotos e já com uns anitos de atraso.Por isso o meu obrigado ao João Rebola.
Maria Dulcinea

Anónimo disse...



Amigo João:

Passarinheiro e alentejano gostei da naturalidade e da malandrice da tua arte de caçador. Olhando para ti adivinha-se que não mentes pois tu realmente tens um ar matreiro.
A propósito tenho uma estória da minha adolescência que me surgiu ao ler a tua. Já bastante esbatida nos pormenores, tal como as fotografias a preto e branco daquele tempo, mas que sempre me encantou pelos protagonistas e pela relação que tinham com a terra e com os bens que podia proporcionar.
Não me irei alongar para não cansar ninguém. se quiseres mais detalhes dou-tos na quarta-feira se fores à Tabanca.
Nesses anos longinquos andaram cinco alentejanos na minha aldeia a podar os sobreiros, já que eles conheciam melhor essa arte do que os transmontanos. Homens muito trabalhadores e educados aproveitavam os pequenos ramos das árvores que os lavradores dispensavam para fazer carvão que depois vendiam.
No Verão, havia somente algumas poças de água nos ribeiros, onde todos os pássaros das redondezas iam bebem. Esses alentejanos montavam redes junto a esses charcos e apanhavam muitos deles.
Técnicas de fazer carvão, técnicas de caçar e outras que os naturais da terra não conheciam.
Achei sempre esses teus conterrâneos conseguiriam sobreviver se vivessem somente nas florestas e campos incultos. Estive muitas vezes com eles e apreciei muito o seu convivio, no vale da Lagariça, para onde eu levava as vacas a pastar enquanto eles trabalhavam nos sobreiros da minha avó nos montes contíguos.
Também gosto muito de passarinhos fritos ou refogados portanto quando quiseres ir caçá-los com arma ou com rede, conta comigo.
Eu dou o vinho, mas não me faças como naquela tarde em minha casa que depois de eu ter aberto uma boa garrafa de vinho do Douro, me disses-te que só bebias um copo de água. O primeiro impulso que tive foi correr contigo para fora de casa. Mas contive-me ao recordar os outros.
Um grande abraço

Francisco Baptista