1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Outubro de 2014:
Queridos amigos,
Por mim, preferiria que se usasse de uma absoluta descrição sobre este livro. Trata-se de alguém em estado de grande sofrimento, com os seus sonhos por terra, alguém que esteve no Terreiro do Paço no dia 10 de Junho de 1968 a receber uma condecoração para a CART 1688, que passou um largo período de tempo a combater em Biambi, e que descreve situações terríveis, desde uma inacreditável execução de capturados até várias violações.
É tudo demasiado excessivo e doloroso e o que se deixa escrito é apresentado como um alívio da consciência.
Tudo quanto se escreveu naquela nossa guerra não pode ser ignorado, para isso procuro trabalhar com as regras de escrúpulo porque pauto a minha vida.
Constrange-me ler certos relatos, fica-se perplexo, nem sempre dá para acreditar. Por isso registo e sigo em frente.
Um abraço do
Mário
Um jogador de Os Belenenses em Biambi
Beja Santos
“Guiné, a cobardia ali não tinha lugar”, por José Silveira da Rosa, edição de autor, 2003, relata a história de um furriel que embarcou para a Guiné em Abril de 1967, de Bissau partiram para Bula, após o treino operacional coube à CART 1688 o destacamento de Biambi, no Oeste do Oio. Vai falar de rotina na montagem de emboscadas, nas operações de grande porte, nos patrulhamentos de reconhecimento e das nomadizações, escoltas com picagem das estradas e a outra rotina da segurança à fonte, das limpezas ao aquartelamento, dos serviços de capinação bem como a construção da pista de aterragem. Enumera as zonas que percorrem, nomes como Encheia, Biambezinho, Estrada de Bissorã, Estrada de Binar. Livro profusamente ilustrado, nunca encontrei álbum fotográfico como este: com diferentes armas e em posse para o fotógrafo, na messe, na fonte, a jogar à bola, junto de viaturas atascadas, com diferentes camaradas, disfarçado de autóctone, a simular que vai trabalhar com morteiro 81, no aquartelamento, ao pé do abrigo, em cima dos morros de baga-baga, a simular que está a trabalhar no arrozal, a pilar arroz, a colher mangos… E socorre-se de alguns depoimentos de camaradas, a seu pedido.
Tece acusações gravíssimas. O furriel Silveira Rosa pertencia ao 2.º pelotão da CART 1688, denominado “Os Diabólicos”, explicando que fora opção do seu irreverente alferes, “sempre na vanguarda em assuntos de guerra, oferecendo por vezes o seu e nosso pelotão para algumas missões voluntárias, sem perguntar se aceitávamos ou não”. Em Biambi, estimulou as orações noturnas. Aliás, reza sempre enquanto vai na picada, como escreve: “Lembrai-vos, ó puríssima Virgem Maria, que nunca se ouviu dizer que algum daqueles que tem recorrido à vossa assistência e reclamado o vosso socorro, fosse por vós desamparado”.
Biambi conheceu várias flagelações, que ele pormenoriza. Um ataque de paludismo, nos finais de Agosto de 1968, estava ele com mais de 39º de febre, não impediu que o comandante da companhia recuasse na ordem de ele ir para uma emboscada, regressou com mais dores, deram-lhe uma injeção que o levou ao hospital de Bissau, onde surgiu uma tromboflebite, nunca mais se recompôs, foi evacuado para Lisboa, ao fim de quatro meses de internamento, a sua guerra acabou aqui. Em Maio de 1969 regressou, à sua terra-natal, o Faial. A partir daí, potenciaram-se os sofrimentos. É deficiente militar, sofre de stress pós-traumático de guerra, é inapto para o trabalho desde o final de 2000. Escreve que tendo sido futebolista profissional, depois da vida militar sujeitou-se a ser caixeiro, empregado de escritório durante 24 anos e nos últimos anos da sua carreira profissional foi caixeiro/encarregado.
A região de Biambi tinha naturalmente diferentes tabancas submetidas a duplo controlo, o que gerava, nalguns casos, situações terríveis. Estamos já nas confissões que ele entende fazer, e que são assumidas como um desabafo e um grito da consciência. Numa emboscada para os lados do Alto do Tama apanharam uma jovem. Na presença do alferes, a jovem terá sido violada, o Silveira da Rosa recusou colaborar na violação coletiva. Segue-se o que ele intitula de “descrição macabra”, algo que aconteceu no dia 5 de Agosto de 1967. Houve uma operação de grande porte, coube à unidade do furriel Rosa efetuar um golpe de mão. A CART 1688 terá sido intercetada pelos guerrilheiros do PAIGC e seguiu-se uma emboscada terrível que meteu abelhas. Entretanto, houvera captura de prisioneiros. O comandante de companhia teria entregue os ditos prisioneiros (os nove nesse dia apanhados, e o autor acrescenta mais oito que já lá estavam há algum tempo, não se percebe quando nem porquê) ao linchamento. O furriel Rosa a tudo assiste em cima da caserna-abrigo, viu uma multidão enfurecida primeiro a distribuir pontapés, bolachadas e cotoveladas; um furriel pegou num barril vazio e dava com ele nas costas dos prisioneiros. E seguiu-se a execução, os prisioneiros foram levados de olhos vendados e mortos tiro a tiro, um outro furriel tirava uma orelha… Este foi o “massacre-genocídio” que ele presenciou. E escreve: “Sei que vou pagar por esta denúncia, mas enfrentá-lo-ei com coragem e teimosia, alivio o fardo que carrego há uns 35 anos. Que Deus me dê forças para enfrentar as consequências”.
Dá-nos uma descrição minuciosa do aquartelamento do Biambi, ilustrando mesmo com uma fotografia aérea, as instalações estão numeradas e ficamos a saber onde é a secretaria, a cantina, o centro-cripto, o balneário, as instalações onde viviam os militares da companhia e as milícias. A CART 1688 foi condecorada com a “Flâmula de Ouro”, bem como a Cruz de Guerra 1.ª Classe, o furriel Rosa participou nas cerimónias do Dia de Portugal, em 1968, no Terreiro do Paço.
O texto prossegue em ziguezague e temos mais violações ao desbarato, desta vez o alferes do 2.º pelotão vão buscar mulheres para um género de orgia, voltaram a insistir com ele, volta a pedir perdão a Deus. O furriel Rosa escreveu os seus desabafos no jornal Correio da Horta, logo foi interpolado por outros militares, encorajando-o. O presidente da Apoiar – Associação de Apoio aos Ex-combatentes Vítimas do Stress da Guerra, Mário Gaspar, também participa com o seu depoimento, descreve uma operação que se realizou em 14 e 15 de Julho de 1967 no Corredor de Guileje, na região de Famora, e conta a odisseia de um soldado que andou perdido onze dias ao fim dos quais foi ter ao aquartelamento de Guileje, o soldado António Fernandes da Silva, de Carregal do Sal.
Publicita os seus gritos de revolta, queixa-se das mentiras dos políticos, da falta de contagem de tempo, elogia o médico que o tem tratado.
O relato do furriel José Silveira da Rosa tem o aspeto incomum de publicar dezenas e dezenas de fotografias, de um modo geral em posições de lazer e recreio, onde não faltam poses a jogar futebol, o seu sonho danificado pelo acidente que modificou a sua vida. Relata um massacre de 17 pessoas, que me parece inacreditável, se acaso um comandante de companhia tivesse decretado um linchamento havia seguramente consequências, alguém teria participado para Bissau a carnificina. Acresce as descrições das violações, uma delas, como escreve inequivocamente, a mando do alferes do 2.º pelotão, com nome e tudo. Pode entender-se que haja problemas de consciência com o furriel Rosa e que ele está dentro da clara certidão da verdade, não se deixa de refletir como a liberdade de expressão pode ser desviada para excessos, para assassinatos de caráter, para o opróbrio de gente desta CART 1688 que seguramente nada teve a ver com alegados desmandos.
O que aqui se escreve em recensão deve ser tomado à letra, o que os autores escrevem, em memorial ou em ficção, ficarão como testemunhos, serão um dia filtrados, e nalguns casos alvo de condenação ou exaltação.
Sem mais comentários.
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Nota do editor
Último poste da série de 6 de Outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13696: Notas de leitura (639): “Do Outro Lado das Coisas", do Embaixador João Rosa Lã (2) (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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5 comentários:
Meus caros amigos,
Conheci o José Silveira da Rosa, o Káká dos Flamengos, natural da Ilha do Faial, jogador do Fayal Sport Club, que um dia tentou o profissionalismo no Belenenses, tendo passado por outros clubes. Após o serviço militar regressou ao Fayal Sport Club. Fui eu que fiz o processo da sua transferência de jogador profissional para aquele Clube amador, facto que julgo sem precedente na altura. O José Silveira da Rosa, foi extremamente exigente nas condições pedidas aos dirigentes daquele clube faialense, entre elas um emprego compatível com as suas habilitações literárias, o 2° Ano dos Liceus.
O José Silveira da Rosa como jogador de futebol era dotado de uma grande técnica para o meio faialense. Civicamente bem-educado, afável, simpático, jovial e brincalhão, fazia amigos com muita facilidade. Eu fui um deles.
Após o meu próprio cumprimento do serviço militar, voltei a encontrá-lo na Horta, era ele ainda jogador do Fayal Sport. Tanto quanto sei, ainda jogou futebol vários anos, sem limitações físicas visíveis. Levava o desporto muito a sério, mesmo no amadorismo puro da época. Era em tudo uma pessoa normal, ou pelo menos parecia. O seu estado traumático visível terá acontecido alguns anos após a sua experiência militar.
Foi numa das minhas deslocações ao Faial que li o livro “Guiné, a cobardia ali não tinha lugar”. Fiquei enojado com o seu conteúdo. Chocou-me a contradição entre o homem amável que um dia conheci e o azedume da escrita. Na abordagem que faz ao seu regresso ao Fayal Sport é por demais ingrato, para não lhe chamar outra coisa, para com o Clube e os dirigentes que o ajudaram e que em minha opinião pessoal cumpriram com o que lhe prometeram, arranjando-lhe o emprego possível e com o qual ele concordou. Numa ilha pequena como o Faial não era tarefa fácil. Muitos outros, nas mesmas circunstâncias, viram-se obrigados a procurar noutras paragens o emprego que a ilha não tinha. Porque não vivi as experiências do Fur.Mil. José Silveira da Rosa não me debruçarei sobre algumas afirmações que faz no seu livro e que o Beja Santos muito bem sublinhou, mas a necessitarem de corroboração para serem credíveis. Até porque os camaradas do Furriel Rosa se inocentes merecem bem melhor que esta bofetada.
Fui recentemente informado que o José Silveira da Rosa passou os últimos anos da sua vida numa instituição de saúde. Que no seu eterno descanso ele encontre o profissionalismo futebolístico com que tanto sonhou em vida.
José Câmara
Caros camaradas
Comento apenas para salientar a elevada postura no comentário do José Câmara.
O conteúdo do livro, principalmente nas passagens mais susceptíveis de serem polémicas, carece de confirmação, até pelo que de grave podem conter.
Abraço
Hélder S.
Se todas estas denúncias brutais são mentira o furriel Rosa, é um deficiente mental.
O que parece bater certo com o seu percurso posterior à guerra.
Seria correcto, e higiénico, que estas denúncias fossem comprovadas por quem esteve lá no Biambe nessa altura. Se é tudo mentira (17 fuzilamentos é obra, com pré linchamento e tudo!)vamos chamar aos bois pelos nomes, o Rosa é uma flor que fede.
Abraço,
António Graça de Abreu
Eu, Mário Vitorino Gaspar, Ex-Furriel Miliciano, Atirador com a Especialidade de Minas e Armadilhas da Companhia de Artilharia 1659 – CART 1659 (ZORBA), com o lema “Os Homens não Morrem”, e fiz a Comissão em Ganturé e Gadamael Porto, de JAN67 a OUT68. Percorremos toda a zona do “corredor da morte”, ou “corredor de Guileje”; Sangonhá; Cacoca; Cameconde e Cacine. Mais tarde veio a tragédia – mais para aqueles que lá ficaram destacados – de Gandembel. Conheci, e bem o Ex-Furriel Miliciano José Silveira da Rosa e acompanhei de perto a evolução do Livro “Guiné - «a cobardia ali não tinha lugar», lendo-o inclusive, visto ter-me pedido uma opinião. Ao mesmo tempo ele quis que colaborasse com um capítulo da minha autoria e dei-lhe um texto já escrito sobre a “Operação Rinoceronte”, efectuada a 14 e 15 de Julho de 1967 no famigerado “corredor da morte”, tendo perdido o contacto com a NT o Soldado N.º 00458266, António Fernandes da Silva de Oliveira do Conde – Carregal do Sal e que após inúmeras operações nunca conseguimos localizar. Houve empenhos da Aviação e de todas as Companhias, e felizmente apareceu no fim de 11 longos dias.
A minha opinião sobre o Livro – e recordo-o como se fosse hoje – disse-lhe que ele tinha um Processo a decorrer para que fosse considerado Deficiente das Forças Armadas em Campanha – isto do Deficiente em Serviço e em Campanha é uma história que gostaria de abordar, ou se é ou não Deficiente, sendo Deficiente nunca pode existir este aborto, tem de ser Deficiente das Forças Armadas – e aquilo que denunciava era gravíssimo e lhe poderiam trazer danos. Muito embora considerasse e considero que essas situações deveriam ser denunciadas. Ele contou até outras. Eu tinha sido um dos fundadores da APOIAR – Associação de Apoio aos Ex-Combatentes Vítimas do Stress de Guerra em 1994 (cargo de Vogal e Secretário); em Novembro de 1996 eleito como Vice-presidente, e de Dezembro de1998 até Janeiro de 2005 fui Presidente. Além de ter estado com ele, julgo que na Escola Prática de Engenharia em Vendas Novas, deve ter sido em 2002/3 que o reencontrei. Era acompanhado na APOIAR em Psiquiatria e Psicologia. Conversámos muito, e convidou-me para ir à cidade da Horta, no Faial ao Lançamento do Livro, talvez no Verão de 2003.
A APOIAR fez um Colóquio antes do Lançamento, que teve a presença da nossa Assistente Social, e Psicóloga Clínica, respectivamente Doutoras Sofia Pires e Susana Oliveira. Ainda houve um grande espectáculo, digno de se ver, antes do Lançamento, terminando com um beberete. Depois do Lançamento do Livro, foi poucas vezes à APOIAR e perdi o seu contacto.
Pelo que li, opiniões de camaradas, o Furriel Miliciano José Silveira da Rosa (trata-se de um Furriel Miliciano e não de um Furriel), não é mentiroso. Já passaram 11 anos desde o Lançamento do Livro, e ninguém se queixou. Será que Portugal anda a dormir? Ninguém da CART 1688 falou. Agora é que se lembram de comentar o que desconhecem? Noto que nem todos, ou somente o Camarada Beja Santos e um anónimo (apanho sempre com os anónimos em cima), embora diga que é José Câmara leram o livro. Verdade que faz acusações gravíssimas.
Percebi hoje que ele entretanto morreu, gostaria que me informassem se é verdade. Sei que publicou dois livros, este e outro da sua vida como futebolista. Até me pediu uma opinião sobre se deveria fazer só uma edição ou duas, mas já tinha ideia formada sobre isso.
José Silveira da Rosa denunciou situações de cobardia básica. Perdi a minha oportunidade porque fui censor do meu próprio Livro. Risquei com um lápis azul, cobardias e incapacidades, não fui vítima da censura, mas omiti. E ao omitir sou censor, embora de mim próprio.
Para acabar também querem que eu fale de situações de pôr as mãos à cabeça. E não se esqueçam, embora um qualquer Governo tenha acabado com os Furriéis Milicianos eles existem, não são Furriéis.
Quando éramos Cabos Milicianos, éramos Cabos no pré e Sargentos no serviço. Queríamos ser tratados pelo nosso posto. Agora é mais grave, sou Furriel. Repito, sou Furriel.
Um abraço ao José Silveira da Rosa.
Camaradas,
Sabem qual razão porque me identifico, não só com o nome completo; Posto; o N.º Mecanográfico; as Especialidades; a Companhia; a zona onde estive e também a chegada à Guiné e fim da Comissão? Só porque nunca fui, não sou nem serei um anónimo. Um anónimo é básico, anónimo até faz lembrar aqueles malditos anos de amputação daquilo que o Homem pode ter de mais sagrado: a LIBERDADE.
Sejam homens e mostrem a cara. Estou com dificuldades em ver, fui operado à vista. Não posso com a a mentira, mas vejo-a. Mais parece vivermos não um domingo e uma terça-feira de Carnaval, mas pessoas mascaradas todo o ano.
Na minha Companhia, havia uma sopa que baptizámos por 365. Todos os dias do ano lá estava a sopa da bolanha. agora vivemos num país de olhar para o interior, nada para o exterior. Venha a mim. o EU e EU, a apologia do EU. Os outros são aldrabões, esses outros foram por acaso julgados?
Conheci o José Silveira da Rosa, até estive na sua terra e no Lançamento do Livro. Li-o Livro antes de ser publicado. Até escrevi um capítulo com o título "Operação Rinoceronte". Na página 111 vem uma foto minha; na página 115 vem um erro (em lugar de Guileje consta Guilese). E constam mais fotos minhas.
Mário Vitorino Gaspar, Ex-Furriel Miliciano, Atirador com a Especialidade de Minas e Armadilhas da Companhia de Artilharia 1659 – CART 1659 (ZORBA), com o lema “Os Homens não Morrem”, e fiz a Comissão em Ganturé e Gadamael Porto, de JAN67 a OUT68
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