terça-feira, 4 de novembro de 2014

Guiné 63/74 - P13848: Memórias da CCAÇ 2616 (Buba, 1970/71) (Francisco Baptista) (6): Uma consulta no HM 241 interpretada como um abandono do pelotão que comandava

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), com data de 25 de Outubro de 2014, com mais uma memória de Buba:


Memórias da CCAÇ 2616

6 - Uma consulta no HM 241 interpretada como um abandono do pelotão que comandava

Camaradas e amigos

Após a reforma li muitos livros para me reconciliar com um velho prazer que tinha descurado bastante tempo. Ler é melhor do que escrever pois a leitura enriquece o espírito enquanto a escrita... o acto de escrever é em si uma tarefa empolgante como desafio como paixão mas depois de concluído, o seu resultado deixa de entusiasmar o autor.

O acto de escrever será parecido com outros actos que praticamos com muita euforia, com muita adrenalina enquanto os praticamos e depois nos deixa na boca um sabor amargo a fim de festa e a desengano. Quantos escritores já não ouvimos dizer que não mais releram o livro que tinham escrito. Os grandes escritores naturalmente pensam num público, tal como os cantores, pintores e outros artistas mas julgo que escrevem também porque têm a cabeça cheia de palavras e essa foi a forma que encontraram para se libertarem do seu excesso.

Acabei de ler há poucos dias o livro "Das Trincheiras com Saudade" da Isabel Pestana Marques.
O livro descreve a vida quotidiana dos militares portugueses na 1.ª Guerra Mundial. Está muito bem escrito com grande preocupação de objectividade e com muito trabalho de pesquisa da autora.

Neste tempo em que os nossos políticos, a reboque dos políticos europeus, segundo opinião do camarada Luís Graça, e ele costuma estar bem informado, resolveram relembrar esses pobres camaradas das trincheiras, tão maltratados pela República, mal vestidos, mal armados, mal alimentados, mesmo se por suspeita foi encomenda deles, não deixa de ser um bom livro sobre o tema, segundo a minha opinião que não é de um critico de literatura e muito menos de livros histórico-militares.

Entre muitos assuntos recordo de falar em problemas entre soldados e graduados, já que as diferenças de regalias e tratamento eram chocantes, ainda por cima se se pensar que o regime político desse tempo se proclamava defensor das virtudes republicanas.
Conta nomeadamente como através de cunhas de vários tipos, familiares, amigos, médicos, etc. muitos graduados, sobretudo oficiais, fugiam à frente de combate. Muitos passavam longas férias em Portugal e outros havia que regressavam por qualquer doença e não mais voltavam.
A par disso havia companhias inteiras que por falta de rotação chegavam a passar mais de um ano na linha da frente das trincheiras, muitas vezes à chuva, à neve a ter que suportar temperaturas inclementes sem roupa nem alimentação adequada.

Tudo isso provocava sentimentos de grande revolta, chegando a haver algumas vezes sublevações de companhias inteiras e até de batalhões. Ainda é cedo para se escrever a história da guerra do ultramar e de retratar conflitos semelhantes que lá se terão gerado. Este blogue também não é o sitio próprio para se falar desse assunto. A organização militar já é em si uma pirâmide em que os postos ou escalões inferiores têm que obedecer, sem discussão, sempre aos superiores.
Os exércitos foram concebidos como máquinas de guerra, normalmente alheios a regras democráticas pela sua própria finalidade. Quarenta anos de ditadura e obediência cega à autoridade devem também ter contribuído bastante para retirar à maioria dos portugueses a vontade de praticar actos de indisciplina e rebeldia.

Num convívio recente da CCaç 2616, muitos anos já anos passados e com outra liberdade e abertura de espírito, foi interessante ouvir o que uns e outros tinham a dizer sobre o comportamento e a personalidade de cada um nessa época. Procurei falar bastante com os camaradas do meu pelotão e criar um ambiente descontraído que pudesse dar lugar a críticas da personalidade de cada um, nesse tempo. Gostaram do desafio e disseram-me que ficaram surpreendidos porque eles recordavam-se de mim como um tipo mais fechado, menos comunicativo.

Nesse ambiente de cordial e descontraído houve um soldado, o mais falador, que me disse o seguinte: "Passados poucas dias daquela emboscada na Bolanha dos Passarinhos, o alferes foi quinze dias para Bissau, alguém do pelotão se queixou várias vezes que nos tinha abandonado nesses tempos difíceis em que chegámos a ter três emboscadas no mesmo dia".

Eu fui a Bissau a uma consulta já marcada antes dessa emboscada em que comandava o pelotão, sem prever que as condições de guerra se iriam agravar. Quando regressei de Bissau soube que a companhia tinha passado por um período difícil, mas não me recordo de ouvir dizer que o meu pelotão tivesse tido três emboscadas no mesmo dia. Esse camarada que me terá criticado pela minha ausência, além de ser muito competente, era muito frontal e não me lembro de alguma vez me pôr essa questão. Também esteve no convívio mas não lhe cheguei a falar nisso.

Por outro lado, o camarada que me contou isto acredito que não foi por má fé ou por querer fazer intriga. Tanto por um como pelo outro tenho e sempre grande estima e consideração.
Nada disto é importante e grave, interessante é analisar aquilo que à distância de mais de 40 anos recordamos de muitas formas diferentes, mais vivas, já esquecidas, mais apagadas, mais fantasiadas.

Reconheço também que eu pela proximidade com o alferes médico tive a possibilidade de ir passar 15 dias a Bissau e a maior parte dos camaradas não a tinham. De resto garanto-vos que passei toda a minha comissão no mato, em Buba ou em Mansabá.

Um abraço a todos os camaradas
Francisco Baptista
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de Abril de 2014 > Guiné 63/74 - P13064: Memórias da CCAÇ 2616 (Buba, 1970/71) (Francisco Baptista) (5): Pequenas estórias de medo, pesadelo e apanhados do clima

2 comentários:

Anónimo disse...

Francisco Batista

Do teu texto, neste Post, transcrevo a seguinte passagem sobre a 1ª. G.Guerra (linhas 27/28/29):
«(...)
Tudo isso provocava sentimentos de grande revolta, chegando a haver algumas vezes sublevações de companhias inteiras e até de batalhões. Ainda é cedo para escrever a história da guerra do ultramar e de retratar conflitos semelhantes que lá se terão gerado. Este blogue também não é o sítio próprio para se falar desse assunto. (...)»

E transcrevo-a para manifestar a minha discordância quanto à última frase, pois que este blogue não só é UM sítio próprio para se falar desses assuntos como até já tem sido, embora não com a dimensão de companhias inteiras nem de batalhão.
Abraço
Alberto Branquinho

ana oliveira disse...



Alberto Branquinho

Confesso que sou um novato no blogue, que ainda não apreendeu grande parte do seu conteúdo, que consta nos milhares de postes já editados nestes dez anos de vida.É natural que a tua opinião esteja mais bem informada.
Do que tenho lido no blogue só me lembro de de dois casos de indisciplina, um deles até de violência grave. Este último, passado em Bissau que pôs em confronto tropas especiais.
O outro escrito por um camarada, que não se quis identificar, tendo-se identificado somente ao Luís Graça, em que acusava um outro camarada deste blogue, de ter posto em perigo vidas de camaradas na Guiné, por atitudes que tinha tomado. Julgo que não foi dada resposta a essa acusação.
A guerra da Guiné apesar de presente no espirito de todos os que a viveram já se passou à quase meio século e julgo que a grande maioria dos camaradas, com a idade avançada e uma visão da vida calma e sem quezílias, não quer falar das pequenas misérias de que foi testemunha. Prepotência, cunhas, corrupção e outros males que geralmente prejudicavam os subordinados, quando os seus autores foram camaradas que o tempo já amnistiou e algumas vezes a morte.
Apesar desta resposta, não quero deixar de agradecer a tua opinião que poderá até estar mais próxima da verdade. Agradecido, mas não de todo convencido.

Um grande abraço

Francisco Baptista