Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quinta-feira, 19 de novembro de 2009
Guiné 63/74 - P5299: Livro de Estilo (1): Nós, o autor do Os Cus de Judas e os Presuntos Picantes (L. Graça / V. Garcia / A. Matos)
Meu caro Victor, grande Kimba de Capunga (c/c aos nossos editores e a dois camaradas elegíveis para o futuro cargo de provedor do leitor do blogue, o António Matos e o Joaquim Mexia Alves):
Obrigado pelo envio desta mensagem, mas o nosso blogue, em princípio, não publica (nem precisa, felizmente, de publicar) aquilo que se chama SPAM (um buzzword da Web, do inglês spiced ham - presunto picante, em português - usada parta designar as mensagens não-solicitadas, enviadas em massa, diariamente, para a nossa pobre caixinha de correio). ...
Felizmente, temos produção própria para alimentar todos os dias o blogue. Temos, além disso, algumas regras de etiqueta e de convívívio... Eu penso que quiseste apenas dar-nos conhecimento deste texto que, fora a autoria (Barroso da Fonte com comentário adicional de Manuel Bernardo), eu não sei donde vem nem onde nem quando foi publicado. Eu, por (de)formação académica, gosto sempre de ir à fontes, até porque há muitas coisas apócrifas que por aí correm na Net. De qualquer modo, obrigado pela tua lembrança.
Em resumo: o texto não é teu, o Barroso da Fonte não é membro da nossa Tabanca Grande nem sequer o Manuel Bernardo (estive anteontem com ele, por acaso, tendo-lhe dito que ele, coronel, não pode sentir-se ofendido por nem sempre publicarmos a prosa dele; afinal ele nem sequer é da nossa tertúlia, nunca combateu na Guiné, não pagou a jóia de ingresso nem muito menos alguma vez pediu para fazer parte do nosso blogue)...
Por outro lado, não nos interessa alimentar este tipo de polémicas, para além do que é razoável, oportuno e pertinente (Veja-se o que se passou com o folhetim Almeida Bruno)... Como eu costumo lembrar aos meus queridos editores, o nosso core buiness é a guerra colonial da Guiné 63/74... Não podemos perder de vista o essencial... E, tal como na guerra, o acessório pode ser o fim do artista (e neste caso do blogue e de todos nós, que já temos idade para ter juízo e calma no gatilho)... Penso que às vezes vemos a árvore e não conseguimos ver a floresta...
Já sabemos que somos todos filhos de boa gente, mas não aprecio quem diz: "Não li o livro, não vi o filme, não estava lá... mas também quero malhar no gajo"...
O insulto (pessoal) é indigno de um camarada da Guiné. Como sabes essa não é a nossa postura: somos um blogue de partilha de memórias e de afectos, temos regras que temos de respeitar, etc... Não está em causa o teu eventual direito à indignação. O teu, o meu, o dos restantes membros do nosso blogue, o dos nossos leitores, etc.... Mas no teu caso eu gostaria de conhecer (e eventualmente publicar) a tua opinião, e não a do Barroso da Fonte ou do Manuel Bernardes ou de outra pessoa qualquer, antigo combatente ou não... No teu caso, terei muito gosto em recebê-la, apreciá-la e eventualmente publicá-la.
Enfim, está na altura, de resto, de nos mandares uma história (e fotos) da malta da CCAV 2639... Olha, nunca tinha ouvido falar de Capunga...
Um grande abraço do Luís e parabéns pela tua página pessoal, e os teus trabalhos em powerpoint.
2. Rsposta, gentil e oportuna, do Victor Garcia (*):
Caro amigo Luis Graça
Na verdade o intuito de eu ter enviado essa mensagem foi precisamente para divulgar algo que também chegou ao meu mail, e reenviá-lo aos endereços que tenho de rapaziada das Guerras Coloniais, entre os quais está o amigo Luis Graça.
O intuito não era de forma alguma ser publicado no seu Blogue. Eu, por sinal, até sou apreciador da escrita de Lobo Antunes.
O primeiro livro que li dele foi Os Cús de Judas [,1979,] que retrata a Guerra em África. Aprecio a forma frontal como ele faz a escrita e até um pouco a linguagem vernácula que utiliza.
No entanto, a ser verdade o que ai está escrito "será na verdade lamentável". No fundo também reconheço que anda pela NET muito lixo e muita falsidade. (...)
3. Parecer do António Matos: "Limito-me a aplaudir a decisão da não publicação do texto no blogue" (18/11/2009).
______________
Nota de L.G.:
(*) Vd. poste de 1 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5043: Blogues da Nossa Blogosfera (19): Victor Garcia abre na Net uma página sobre a CCAV 2639 (Binar, Bula e Capunga, 1969/71)
Guiné 63/74 - P5298: Tabanca de Matosinhos (12): O orgulho de pertencer à Tabanca de Matosinhos (José Teixeira)
O ORGULHO DE PERTENCER À TABANCA DE MATOSINHOS
Aqueles que passam por nós,
Não vão sós, não nos deixam sós.
Deixam um pouco de si,
Levam um pouco de nós.
Antoine Saint-Exupéry**.
A Tabanca de Matosinhos*** tem sido desde meados de 2005 um ponto de encontro de centenas de antigos combatentes da Guiné. O poema que Saint-Exupéry escreveu reflecte a meu ver, muito bem, a razão de ser deste encontro semanal, que nas últimas trinta e sete semanas, como apurou o Álvaro Basto, juntou 255 convivas.
Na verdade, todas as semanas aparece gente nova. Uns ficam, outros voltam quando a vida lhes permite, alguns poucos, sobretudo os de mais longe partem com a promessa e vontade de voltarem.
E de facto não vão sós. Pois deixaram um pouco de si e levam um pouco de nós
Interrogo-me muitas vezes do porquê desta relação de pessoas que não se conheciam e que logo após o primeiro contacto, parecem ser amigos de longa data.
Quebra-se o tabu da linguagem, localiza-se rapidamente os lugares por onde passaram. Lugares que tantos de nós conhecemos.
Apenas uns minutos e parece que já nos conhecemos de longa data. Quantas vezes descobrimos que as nossas vidas se cruzaram, entrecruzaram. Foi no COM ou no CSM. Foi na recruta, ou no Quartel. Tivemos como comandante o Capitão xpto. Um gajo porreiro ou um bom FDP. Um Major que era um castiço e só queria copos, ou o outro que andava sempre a ver se podia lixar alguém.
- E lá na Guiné! Lembras-te da Binta, a lavadeira. Eh pá essa já tinha filhos, quando lá cheguei!
- Pois… mas no meu tempo, não queiras saber!…
E o almoço começa a ser servido…
Intervalo, claro que o rancho está primeiro... As histórias continuam dentro de momentos...
Surgem num ápice as recordações dos momentos difíceis que a guerra trouxe a cada um de nós, agora que a boa pinga do Zé Manel aqueceu as gargantas e o estômago está rarefeito, com as saborosas sardinhas que nunca faltam na mesa, ou outro petisco a gosto de cada um.
Não são lengalengas para entreter, para matar o tempo, enquanto degustamos o almoço. São partes das nossas vidas, postas em comum. Espaços do nosso tempo que se foi, mas que continua religiosamente bem guardado, cá dentro. Surgem as histórias tão iguais e tão diferentes, que cada um tem para contar, muitas vezes abafadas ou escondidas no sótão, já envelhecido, do subconsciente.
Quantas vezes até, estivemos lá, no mesmo sítio, a outra hora num outro dia, num outro tempo. Trilhámos os mesmos caminhos. Tivemos como companheiros de luta, os mesmos soldados nativos.
Quando passadas duas ou três horas, saímos do restaurante com o estômago mais pesado, partimos para nossas casas, mais leves, porque partilhamos algo de nós com aquela gente, aquele grupo de gajos, mais ou menos da nossa idade, que nem conhecíamos. Deles recebemos exactamente o mesmo, um pouco de si. As suas vivências durante o tempo de guerra, que do mesmo modo os marcaram para a vida toda, tanto quanto as nossas vivências.
Desiludam-se os que pensam na Tabanca de Matosinhos, como um espaço de enche barriga e bebe uns copos.
Zé Teixeira
__________
Notas de CV:
(*) Vd. poste de 18 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5294: Blogoterapia (129): A guerra que Portugal não ganhou (José Teixeira)
(**) Antoine-Jean-Baptiste-Marie-Roger Foscolombe de Saint-Exupéry (29 de junho de 1900, Lyon - 31 de julho de 1944, Mar Mediterrâneo) foi um escritor, ilustrador e piloto da Segunda Guerra Mundial, terceiro filho do conde Jean Saint-Exupéry e da condessa Marie Foscolombe.
(Retirado da Wikipédia
(***) Vd. poste de 7 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5229: Ser solidário (43): A Tabanca de Matosinhos constitui Associação de Apoio e Cooperação ao Desenvolvimento Africano (Editores)
Vd. último poste da série de 9 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4310: Tabanca de Matosinhos (11): As crianças da Guiné-Bissau precisam da nossa ajuda (Álvaro Basto)
Guiné 63/74 - P5297: Parabéns a você (44): Mário Migueis, ex-Fur Mil Rec Inf (Bissau, Bambadinca, Saltinho, 1970/72) (Editores)
Fotos: © Luís Graça (2005). Direitos reservados
Meu caro Miguéis:
Passou tanta malta por Bambadinca!... O teu amigo Henriques conheceu dois batalhões (BCAÇ 2852 e BART 2917) e diversas unidades adidas, incluindo a minha CCAÇ 2590/CCAÇ 12 (1969/71)... E conheceu-te a ti, antes de partires para o Saltinho, para a CCAÇ 2701 (1970/72), a que esteve também adido o nosso querido camarada e amigo Paulo Santiago, ex-Alf Mil, Pel Caç Nat 53...
Tiveste a gentileza de evocar esse tal Henriques, que vestia à pipi, como mandavam as boas regras do RMD e a vontade do sr. major Anjos de Carvalho, antigo professor da Academia Militar e 2º comandante do teu batalhão... Em Bambadinca, nesse tempo, não havia bandalheira geral, era um quartel a sério e nisso temos que fazer justiça ao Anjos de Carvalho. Quanto aos óculos escuros do Henriques, ele já veio aqui defender a tese de que um dia voaram sob o efeito do cone de fogo de uma bazuca... Mito ou não, parece que esse teu amigo, no teu tempo (Novembro de 1970/Janeiro de 1971), já não usaria as cangalhas (que de resto não lhe faziam nenhuma falta, até hoje)... O detalhe da pêra parece bater certo...
Quem costuma falar dele, mas mesmo assim pouco, é o seu alter ego Luís Graça que tem a mania de ter e manter uma blogue "para dar voz" aos seus (dele, Henriques) antigos camaradas da Guiné... Como tu que, entretanto, nunca mais apareceste e hoje irrompes-me, pelo ecrã dentro, em dia de festa de aniversário. Felizmente que o Carlos Vinhal está a atento a tudo e não deixou a passar a efeméride.
O Henriques que brincava contigo por seres da secreta, isto é, do SIM - Serviços de Informaçáo Militar) vai ficar muito contente por saber que estás vivo da costa, em Esposnde, e ainda comemoras os teus anos. O Luís Graça, por seu turno, foi buscar duas velhas fotos do Henriques pra te avivar a memória... Infelizmente, não encontrou nenhuma do Tê Roda, que se sabe viver lá para os lados de Setúbal onde é (ou foi) professor... Há tempos o Benjamim Durães (que vive em Palmela, e que era do Pel Rec Info da CCS do BART 2917, possivelmente foste tu que o foste substituir, uma vez que ele foi evacuado por ferimentos graves em acidente), já me disse que tem em casa fotos do querido amigo e camarada do Henriques, da CCAÇ 12, o Tê Roda (natural de Pousos, Leiria), para me mandar... Prometo mandar-temais notícias de Bambadinca (o último a aparecer, aqui no blogue, foi o ex-Cap Art Passos Marques, comandante da CCS/BART 2917). E dar-te um abraço, ao vivo, em Esposende... quando o Henriques for ao Norte. Parabéns, meu caro!
__________
Notas de CV:
(*) Vd. postes de:
31 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1230: Onde se fala do Henriques da CCAÇ 12, do ranger Eusébio e da tragédia do Quirafo (Mário Miguéis)
16 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4194: Tabanca Grande (134): Mário Migueis da Silva, ex-Fur Mil Rec Inf (Guiné 1970/72)
17 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4200: Ainda e sempre a tragédia do Quirafo. Sortes distintas para António Batista e António Ferreira (Mário Migueis / Paulo Santiago)
17 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4202: Dia 17 de Abril de 1972. A emboscada do Quirafo, 37 anos depois (Mário Migueis)
29 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4262: Recortes de imprensa (16): O Morto-vivo no Jornal de Notícias e em O Comércio do Porto (Mário Migueis)
Vd. último poste da série de 18 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5290: Parabéns a você (43): Victor Condeço, ex-Fur Mil SM da CCS/BART 1913
quarta-feira, 18 de novembro de 2009
Guiné 63/74 - P5296: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (7): Mascotes e animais de estimação e/ou companhia - Os gatos….
9 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5081: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (6): O Primeiro Bonzinho
Guiné 63/74 - P5295: Histórias de Juvenal Candeias (6): Padaria de luxo em Cacine
A ideia generalizada de que a dieta dos militares na Guiné era bastante pobre, correspondendo, embora, à verdade, apresentava algumas excepções.
De facto, em muitos locais, o isolamento, em especial na época das chuvas quando não era possível efectuar reabastecimentos, implicava rupturas nos géneros, com as implicações daí derivadas!
Também as situações de flagelação constante aos aquartelamentos impediam o reabastecimento, como aconteceu em Gadamael, em Maio e Junho de 1973!
Quem andou por Gadamael nessa época lembra-se que os gatos desapareceram completamente! Parece que gato com ervilhas, era um pitéu de eleição!
Em Cacine, embora as épocas de crise alimentar também tenham existido, épocas em que a bianda (arroz) com conserva de cavala, ou até mesmo com marmelada, constituía verdadeiro pitéu, comia-se razoavelmente, na maior parte do tempo!
De facto, o Rio Cacine permitia enriquecer a dieta com refeições de peixe, que, apesar de pouco diversificado, era abundante, distinguindo-se o tubarão, normalmente preparado em filetes.
A caça, efectuada por caçadores nativos, era também frequente: a gazela, o tatu, o porco-espinho, o javali, o muntu (burro de mato), eram pratos frequentes e, quando, por razões de guerra os caçadores receavam sair… havia ainda o macaco!
E o pão!... De fabrico diário, sempre fresco, era uma delícia!
A partir de certa altura passou mesmo a ter sementes no seu interior.
O que me levou a alguns comentários de elogio com o Sargento Pestana, que, para minha grande admiração, contestou de muito mau humor, no seu característico sotaque alentejano, de Elvas:
- Sementes… sementes… eu acho é que aquilo são caganitas de rato!
Não era razoável que assim fosse! Se o pão sempre tinha sido tão bom...
Entrámos na padaria… e o nojo foi imenso! Ausência de higiene, dois sacos de farinha completamente abertos, a farinha em contacto com aquilo que de rastejante por ali passasse, enfim… indescritível!
Despejámos a farinha que restava nos sacos abertos em cima da mesa, espalhámo-la muito bem e… lá estava, agora que não estavam cozidas dentro do pão, não restavam dúvidas… eram mesmo caganitas de rato!
Mandámos imediatamente chamar o padeiro e… enojados e irritados, afirmámos, quase em uníssono:
- Ganda porco! Andas a servir ao pessoal pão com merda de rato?! Não tens vergonha?! A partir de agora, por cada caganita de rato que aparecer no pão, vais três dias para a prisão. Seu porco!... Desaparece!...
E foi deste modo que o pão com sementes, que chegou a ser bastante apreciado, padaria de luxo de Cacine, foi completamente banido do mercado.
Juvenal Candeias
Novembro 2009
__________
Nota de CV:
Vd. poste de 16 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5282: Gabriel Telo e José Carlos Machado, CCAÇ 3518, Guidaje, 1973: Presentes ! (Juvenal Candeias)
Guiné 63/74 - P5294: Blogoterapia (129): A guerra que Portugal não ganhou (José Teixeira)
Caros Editores
Saúde e bem estar.
Há tempos enviei um artigo em resposta ao José Belo sobre os Ui! ui! de Mampatá, a solicitação do Luís, que não vi publicado. Agora já perdeu a oportunidade, pelo que não agradeço não o publiquem.
Há dias, enviei um trabalho sobre a Tabanca de Matosinhos que também não veio a lume.
Suponho que é uma questão de falta de tempo que compreendo. Se for por outra razão por favor avisem-me**.
Abusando um pouco, junto um novo artigo sobre um assunto velho, que a meu ver nunca será esgotado. Se entenderem que não é oportuno a sua publicação, por favor avisem-me.
Abraço fraterno
José Teixeira
2. Blogoterapia > A guerra que Portugal não ganhou
por Zé Teixeira
Guerra que não for inclinação natural ou expressão de um desejo, torna-se difícil. (Li esta frase no “Cidadela”, do Saint-Exupéry, piloto francês desaparecido num raide aéreo durante a segunda guerra Mundial. Muito conhecido pelo seu livro “ O Principezinho”)
Deixei-me transportar para a guerra que fui forçado a fazer na Guiné. Guerra, que uns teimam a afirmar que estava perdida, outros, atiram-se para o chão a afirmar que não estava perdida, mas também não estava ganha nem a ganharíamos, penso eu.
Tenho lido no nosso blogue, muita coisa sobre este tema. Tenho reflectido nele, mas não tenho comentado. Esperei que as águas acalmassem um pouco. Agora ponho em comum o resultado da minha reflexão, respeitando todas as opiniões.
O povo a que pertenço, o de brandos costumes, como se orgulha que seja classificado, não tinha de facto nenhuma inclinação para a guerra que estava a fazer. Por mais apelos que se fizessem ao meu patriotismo, a Guiné, não me dizia nada, como parte de Portugal. Talvez me sentisse um pouco orgulhoso por pertencer a um país tão grande. Na verdade tinha aprendido desde os bancos da escola que Portugal ia do Minho a Timor, mas nada me ligava a África, como me ligava o meu Porto, Trás-os-Montes ou o Algarve.
Guerra que não era a expressão de um desejo de um povo, o nosso povo português, como seria por exemplo se fôssemos invadidos pelos espanhóis. A demonstrá-lo basta pensar na forma como o povo português aderiu ao 25 de Abril.
Era, sim, a expressão do desejo de um sistema político, que como a história já provou, estava a fazer, teimosamente, uma leitura errada, não sei se propositadamente, dos ventos da história contemporânea que, na sequência da Primeira Guerra Mundial e sobretudo depois da Segunda, gerou uma dinâmica de liberdade nos povos autóctones controlados pelos europeus.
Efectivamente, a sua participação directa ou indirecta nos conflitos mundiais, através dos países que os tutelavam política e economicamente, permitiu aos povos dominados, uma leitura de que seriam capazes de assumir e gerir o seu próprio destino. Para o bem e, ou para o mal.
Esses ventos de mudança, chegaram, naturalmente, às colónias portuguesas. Foi só dar gás à sua inclinação natural para a liberdade sonhada. Alimentada por interesses de terceiros e combatida ferozmente pelo sistema político português, gerou uma guerra na qual me envolveram. Era realmente a expressão de um desejo, mas de um povo, não o português, mas o guineense.
Voltando a Saint Exupéry, ele afirma:
- Então o vosso exército será semelhante a um mar que não exerce pressão sobre um dique. Sois uma massa sem fermento. Uma terra sem semente. Uma multidão sem desejos…
Somos, todos, testemunhas do desejo forte que nos alimentava o espírito. Apenas e só, o desejo de voltar, são e salvo. Poucos de nós, creio que mesmo muito poucos, tinham assumido conscientemente o desejo de lutar pela Guiné de Portugal. E, aos que tal acontecia, rapidamente mudavam de opinião face à realidade vivida.
Para os comandantes, desde os furriéis milicianos ao capitão, tenho orgulho em afirmá-lo, era seu grande e fundamental desejo, regressar com todos os seus homens.
Numa situação destas em que não havia alma no projecto de guerra, para o qual fomos atirados, os generais limitavam-se a administrar a guerra em lugar de a conduzir. Quem diz, os generais, diz os oficiais do Q.P. que se refugiavam nos gabinetes do ar condicionado, salvo honrosas e valorosas excepções, a quem presto a minha homenagem. Deixem-me, em abono da verdade, afirmar que poucos oficiais do Q.P. conheci no interior da Guiné, mas esses poucos eram pessoas com grandes qualidades humanas e excelentes condutores de homens.
É um facto histórico que, logo no início da guerra, as Forças Armadas disseram ao poder instituido, pela voz dos seus mais altos dignitários, que a solução era de cariz político. Era aos políticos que cabia a responsabilidade de acabar com uma guerra para a qual o povo português não tinha inclinação natural, nem era para si a expressão de um desejo.
Aos militares cabia-lhes aguentar a situação.
De nada vale, agora ou num futuro próximo, os historiadores tentarem explicar as causas do desastre. Sim, um desastre para nós, que saímos sem glória de uma terra, regada com o sangue de tantos compatriotas, deixando os povos entregues a si mesmos, sem a preparação adequada para gerirem a liberdade conquistada. Um desastre para os povos que, para conseguirem a sua independência, tiveram de derramar o sangue dos seus melhores filhos e, porque não estavam preparados para a liberdade que sonhavam, a têm esbanjado. Receberam-na de bandeja, sem contar, quando o poder político de Lisboa caiu.
Dirão os historiadores, para nos justificar, que o inimigo se serviu de técnicas de guerrilha, para as quais não estávamos preparados, tinha melhor equipamento, conhecia melhor o terreno, possuía elementos infiltrados nos nossos espaços de actuação, etc, etc, etc.
Penso que o inimigo, mais que tudo isso, que em parte é pura verdade, tinha, sim, uma forte vontade de ganhar a liberdade sonhada. Tinha a alma que nos faltava.
Nós, portugueses, fomos fazer a guerra com objectivo político de fazer a paz. O que eu senti é que por onde passava, alimentava mais a guerra.
A paz não é um estado que se atinge através da guerra. Se acredito na paz conquistada pelas armas e desarmo, corro o risco de morrer, como diz o Saint Exupéry.
Creio que foi isto mesmo o que nos aconteceu na Guiné.
Como não havia a tal inclinação natural, por se tratar, quer queiramos, quer não queiramos, uma terra estranha e inóspita, que pouco ou nada nos dizia afectivamente, não existia em nós o tal forte desejo de vencer, mas sim a vontade de regressar.
Os nossos oficiais de comando directo, na sua grande maioria milicianos, sofriam desta mesma doença. Logo, assumida a queda do poder político que nos forçava a fazer a guerra para tentar conseguir o impossível – a sua paz -, deixaámos cair as armas, de tão cansados que estávamos. Quem os pode censurar?
Não ganhámos nem perdemos a guerra. Saímos da guerra sem glória.
O inimigo, tornado agora amigo, não ganhou a guerra. Recebeu um presente envenenado. Um País com um povo dividido. Um povo profundamente confundido. Parte, que ontem era português e hoje já não o é. Parte, que ontem recebia ordens para combater os Tugas assassinos, que nos negam o direito à independência e à liberdade e hoje recebe ordens para visitá-lo e fazer festa.
Recebe um país sem estruturas, (estavam na mão dos dominadores que se foram embora). Sem pessoas com capacidade técnica e política para gerir o País, pois até então tinha apostado na formação de guerrilheiros combatentes. Sem trabalhadores. A força braçal estava quase toda empenhada na guerra, que acabou. A sua experiência era trabalhar com a G3 ou a Khalash.
Sem técnicos para dinamizar a agricultura, base da riqueza da Guiné, praticamente abandonada, devido ao esforço de guerra, por ambas as partes. Sem técnicos para desenvolver comércio e a parca indústria, áreas fundamentais para o desenvolvimento, que estavam na mão de firmas afectas ao regime colonizador.
Afinal quem ganhou a guerra?
Não foi o povo português, mas também não foi o povo guineense.
Foram algumas patentes douradas que a alimentaram, dentro gabinetes, quando integrados dentro do sistema político português, ganhando chorudo pré. Escamoteando ou escondendo a verdade da guerra, iam-na alimentando, enviando carne para canhão.
Foram os militares oportunistas do PAIGC, transformados em políticos de aviário, que acorreram a Bissau e agarraram os poleiros.
Os povos, esses, que tanto lutaram e sofreram, perderam. E continuam a perder. Queixámo-nos, nós os ex-combatentes, por nos sentirmos desprezados, abandonados e espezinhados pelos novos senhores do poder político. O povo da Guiné, continua na miséria. Sem esperança a curto, médio, longo prazo de conseguir libertar-se do fantasma da fome.
Dizia-me em 2008 um conceituado chefe guerrilheiro, que se retirou para a sua tabanca de origem quando acabou a guerra e se dedicou à agricultura:
- A paz e o bem-estar só se vai conseguir, quando os meus camaradas da guerrilha, os generais morrerem e cederem o lugar a pessoas competentes.
Alegra-me no entanto encontrar um povo que continua a acreditar que é possível a mudança. Alegra-me muito a forma como me recebe. Como me pede para voltar. Não escondo que chorei de emoção quando a velhinha Fatma, (tem agora 96 anos,) mulher do Régulo Chambel de Contabane, me abraçou em 2005 dizendo:
- Branco volta ! Branco volta !.
Sinais de uns tempos que vivemos em conjunto para uns e em confronto mortal para outros, os quais poderiam estar marcados pelo ódio, mas bem pelo contrário reflectem uma relação de afecto e carinho.
É essa relação de bem-estar que nos faz correr para lá, em visita aos lugares por onde passamos e às pessoas com quem convivemos. É essa relação que nos faz pensar em formas de colaboração e ajuda, de modo a tentar que aquele martirizado povo saia do burako.
Talvez, até num estado de guerra, conseguimos ser um povo de brandos costumes. Quem sabe!
A Fatma Chambel
O João Rocha e a sua lavandera
Em Mampatá com a Ádama e com a Djuba e Zé Teixeira
__________
Notas de CV:
(*) Vd. poste de 24 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 – P5001: Ser solidário (38): O Zé tem 840 € para comprar sementes (José Teixeira)
(**) Foi enviada mensagem ao Zé Teixeira a propósito deste assunto.
Vd. último poste da série de 16 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5281: Blogoterapia (128): (Im)possível regress(ã)o (Torcato Mendonça, CART 2339, Mansambo, 1968/69)
Guiné 63/74 - P5293: Tabanca Grande (187): Arménio Estorninho, ex-1.º Cabo Mec Auto Rodas da CCAÇ 2381 (Guiné, 1968/70)
Camarada e amigo Luís Graça,
Encontro-me por este meio a enviar em anexo um documento em formato PDF* com as estórias e algumas fotografias para ilustrar as mesmas.
Por hoje é tudo dando-te um forte aplauso de incentivo, que é de louvar a tua disponibilidade assim como dos co-editores, de tanto (quanto possível) poderem apresentar o blogue de forma organizada, para que possamos manter viva a nossa mística de ex-combatentes, sobre tempos idos tão difíceis e que nos valorizaram como homens.
Cordiais saudações, e, recordando com o complicado vocabulário e pontuação de, “djubi, amim mist parti manga di mantenhas pra abó, bai suma pra manga dêl escamaradas di tertúlia, járame ánãni.” (i.e., do crioulo: olha, eu quero dar muitos cumprimentos para ti, vai igual para todos os camaradas da tertúlia, obrigado está bem).
Arménio Estorninho
Ex-1.º Cabo Mec Auto Rodas
LAGOA
APRESENTAÇÃO
Meu nome é Arménio Gonçalves Freire Estorninho, ex-1.º Cabo Mec Auto Rodas, participei na guerra colonial na Guiné e pertenci à CCaç 2381 - “Os Maiorais de Empada, assim como o camarada ex-1.º Cabo Enf Zé Teixeira, da tertúlia Tabanca Grande. Estive em comissão de serviço no Sul da Guiné em 1968/70, em zonas de muita intervenção militar, como já tem sido descrito por outros camaradas que por lá passaram, não fui herói mas um felizardo, porque nas horas erradas estava nos lugares certos, estórias que não deixarei de contar em próximas oportunidades e apresentando o meu álbum de várias dezenas de slides e fotos que produzi, de quando da minha passagem por Bissau e por outras localidades do interior.
Foto 3 > Guiné - Bissau - Região de Quinara – Empada, em 1969, na LDM e após missão na Península de Cubisseco - Darsalame, conjunta de 2 Grupos de Combate da CCaç 2381 “Os Maiorais” e do Destacamento de Fuzileiros Especiais, sediado em Buba (?)
Foto 4 > Guiné-Bissau – Região de Quinara – Empada, em 1969, na Porta de Armas e após o arrear da Bandeira.
Foto 6 > Guiné – Bissau – Região de Quinara – Empada – Enfermaria, em 1969, estou eu de baixa às “cavalariças”e o ex-1.º Cabo Enf.º Zé Teixeira, (o polivalente paramédico) de Leça do Balio –Matosinhos.
No relacionamento com a população aprendi um pouco de crioulo, do qual ainda consigo manter alguma conversação, porque em Empada tinha a confiança dos Homens Grandes, dado que produzia fotografias, oferecia petróleo e gasóleo, para iluminação das Tabancas, disfarçadamente enchia de gasolina o depósito da motorizada do Chefe de Posto, (até ao dia que este deixou de estar em estado de graça perante os militares, por ter batido num elemento da população o Kebá e por isso foi transferido).
A partir de 14/12/69, a Administração Pública do Subsector de Empada passou a ser desempenhada pelo Capitão da Companhia Eduardo Moutinho. Aquela minha forma de proceder dava-me a oportunidade de conviver com a população e por conseguinte era convidado para diversos eventos.
Foto 5 > Guiné – Bissau - Região de Quinara – Empada, em 1969, acompanhado com os Homens Grandes, das Tabancas de Empada.
Sou sócio da Liga dos Combatentes, Núcleo de Lagoa/Portimão, o qual edificou um Monumento Memorial aos Combatentes do Ultramar oriundos do meu concelho, inaugurado a seguir ao de Lisboa a 9 de Abril, onde são feitas as devidas homenagens e, anualmente, promove um jantar convívio dos combatentes do ultramar e suas famílias.
Foto 14 > Lagoa – Algarve, 9 de Abril, de 2009, Largo Combatentes da Grande Guerra, Monumento Memorial aos Combatentes do Ultramar, oriundos deste Concelho.
Sendo um assíduo frequentador de blogues e Web sites, que tenham relacionamento com a Guiné-Bissau, como sinal de afirmação da nossa camaradagem, tive a pretensão de colaborar com o Blogueforanadaevaotres e pertencer à Tabanca Grande, o que desde já agradeço pela tua boa receptividade.
Acerca de mim
Arménio G. F. Estorninho
Curriculum Militar
Inspecção Sanitária de Recrutamento, em Lagoa - Algarve, em 1966;
Exame Psicotécnico no Regimento de Lanceiros 1, em Elvas, em 1966, pela situação ocasionou por opção de só entregar as habilitações literárias após o prazo legal, assim foi e por conseguinte fui incorporado no contingente geral;
Frequentei a Recruta no Regimento de Lanceiros 1- CICA 3, em Elvas, em 1967;
Aprovado na Especialidade de Mec Auto Rodas, na EPSM, em Sacavém;
Colocado no Regimento de Cavalaria 4, em Santa Margarida, em 1967;
Promovido ao posto de 1.º Cabo, em 1968;
Mobilizado para a Guiné, pela Unidade RI 2, aquartelada em Abrantes, com a concentração do pessoal na CCaç 2381;
Embarquei no NTT Niassa em 01/05/68, cheguei ao Porto de Bissau a 06/05/68 e regressei em 03/04/70 no mesmo NTT, por ter terminado a comissão de serviço;
Estive em Ingoré, Aldeia Formosa (Quebo), Buba e Empada;
Fui punido e louvado;
Desmobilizado e integrado na vida civil;
Bissau – Brá, Abril de 1970, CCaç 2381 “Os Maiorais de Empada”em Parada, na presença do Comandante-chefe Gen. António de Spínola, no final da Comissão de Serviço e regresso (faltaram três à chamada, o "Velho", o "Cantiflas" e o "Perdigueiro"), foi apresentada pelo ex-Cap Mil Grad Eduardo Moutinho, ex - Fur Mil Enf António Chico, “O Porta Guião” e o ex-Alf Mil Joaquim Barbosa que já nos deixou.
O meu perfil
Nome: Arménio G. F. Estorninho
Idade: 63
Sexo: masculino
Signo astrológico: Caranguejo
Sou casado com Maria Eugénia Estorninho
Pai do Roberto Estorninho, Doutorando em Gestão de Empresas, Gestor de Empresas, Instrutor de Ténis, e Presidente de uma Associação Cultural sem fins lucrativos.
Naturalidade: Lagoa - Algarve
Residência: Lagoa - Algarve
E-mail: aestorninho@megamail.pt e estorninho75@hotmail.com
Habilitações literárias e profissionais
Antes do serviço militar:
Curso Secundário da Escola Industrial de Silves;
Depois do serviço militar continuei na progressão dos estudos e na qualificação:
Exame de Aptidão Profissional do Ensino Técnico;
Curso de Agentes Sanitários, obtido pelo Instituto Nacional de Saúde, Doutor Ricardo Jorge – Lisboa
Equivalência ao Curso Geral dos Liceus;
Frequência do 1.º Ano do Curso Complementar dos Liceus;
Equiparação ao Curso Complementar de Mecanotecnia (11.º Ano);
Transição para a Carreira de Técnico de Diagnóstico e Terapêutica, com o título profissional de Técnico de Saúde Ambiental;
Local do exercício de funções, Centro de Saúde de Lagoa – ARS Algarve
Actualmente estou na situação de aposentado pelo Ministério da Saúde;
Ocupação e lazer
Manutenção de uma pequena quinta;
Entretenimento em informática, na fotografia, colaborador em programas radiofónicos, como animador musical e comentador desportivo na área do futebol de onze;
Tendo como leitura favorita, Livros Técnicos Profissionais e sobre História de Portugal e Universal;
Tive actividade desportiva como Árbitro de Futebol da 1.ª Divisão Regional e Fiscal de Linha da 1.ª Divisão Nacional, de futebol de onze (já em fora de actividade por limite de idade).
2. Comentário de CV
Caro Arménio, sê bem-vindo à Tabanca.
Fizeste uma apresentação tão completa que não me lembro de alguém ter feito igual ou parecido. Ficamos a conhecer-te bem. Muito obrigado pela tua abertura. Pelo que dizes, és uma pessoa multifacetada, logo com conhecimentos em áreas muito diversificadas.
O conteúdo da tua primeira mensagem faz prever uma frutuosa colaboração no blogue. Cabe-te não nos desapontar.
Como te disse em mensagem que te enviei, os teus trabalhos nunca deverão vir em formato PDF, porque não poderão ser editados. As fotos devem vi em formato JPEG ou então integrados nos textos que nós cá as editaremos.
Porque este poste ia ficar muito extenso, o trabalho que enviaste vai ser publicado à parte.
Vamos ficar à espera das tuas histórias relacionadas com acontecimentos que viveste ou presenciaste. Conta connosco para as publicar, pois não estamos aqui para outra coisa.
Recebe um abraço de boas-vindas em nome da tertúlia.
CV
__________
Notas de CV:
(*) O Arménio Estorninho enviou posteriormente o mesmo trabalho em formato Doc a fim de poder ser editado para publicação.
Vd. último poste da série de 11 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5256: Tabanca Grande (186): João Bonifácio regressa em Janeiro de 2010 ao solo pátrio (Os Editores)
Guiné 63/74 - P5292: Controvérsias (54): A. Lobo Antunes faz dos militares portugueses um bando de assassinos frios e sem piedade (J. Mexia Alves)
Meus caros camarigos:
Em comentário ao texto do Amílcar Mendes (*), aqui deixo a minha opinião.
Podem colocá-lo como comentário ou fazer dele o que quiserem, apenas vos digo que isto deve ter sido das coisas que mais me insultou como ex-combatente da guerra do Ultramar.
«Eu tinha talento para matar e para morrer. No meu batalhão éramos seiscentos militares e tivemos cento e cinquenta baixas. Era uma violência indescritível para meninos de vinte e um, vinte e dois ou vinte e três anos que matavam e depois choravam pela gente que morrera. Eu estava numa zona onde havia muitos combates e para poder mudar para uma região mais calma tinha de acumular pontos. Uma arma apreendida ao inimigo valia uns pontos, um prisioneiro ou um inimigo morto outros tantos pontos. E para podermos mudar, fazíamos de tudo, matar crianças, mulheres, homens. Tudo contava, e como quando estavam mortos valiam mais pontos, então não fazíamos prisioneiros».
Estas são, por aquilo que me é dado saber, as frases proferidas por Lobo Antunes e que são objecto da justa indignação do Amílcar Mendes e de muitos mais.
Para mim, muito mais importante que a frase: «Eu tinha talento para matar e para morrer», que até posso levar à conta de liberdade de expressão do escritor, (embora me pareça mais uma “boca idiota” de auto-elogio de quê não se sabe), são as afirmações que faz seguidamente, essas sim de uma gravidade muito séria e que colocam em causa todos os ex-combatentes, na sua dignidade, na sua humanidade, bem como as Forças Armadas Portuguesas, para além da enorme mentira que contêm.
Lembremo-nos que Lobo Antunes esteve em Angola já nos anos 70, ou seja, quando a guerra em Angola estava praticamente acabada, (cheguei a Angola no início de 74 e circulava-se livremente por todo o território), e portanto as operações militares, sobretudo ao nível dos Batalhões em quadrícula, não eram de molde a provocar as baixas que ele cita e muito menos a barbárie que ele refere.
Para um Batalhão em Angola ter naquele tempo 150 baixas, (que número tão redondo), como ele refere na mesma ocasião, deve ter contado as baixas por matacanhas e as unhas encravadas!
Um dos meus irmãos mais velhos esteve no Norte de Angola de 63 a 65, sempre em zonas de combate, e disse-me peremptoriamente que essa história dos pontos é uma pura e simples invenção, o que aliás nós bem percebemos, porque se fosse prática em Angola porque não o seria na Guiné e em Moçambique?
Mas são sobretudo estas duas frases que me indignam, «E para podermos mudar, fazíamos de tudo, matar crianças, mulheres, homens. Tudo contava, e como quando estavam mortos valiam mais pontos, então não fazíamos prisioneiros», porque faz dos militares portugueses um bando de assassinos frios e sem piedade, o que nós sabemos nem de longe nem de perto corresponde à verdade.
Não nos esqueçamos que são frases proferidas por um médico, que já o era, e que
portanto estava, devia estar, arredado das acções directas de combate.
Coloca também em causa os seus camaradas de Batalhão, fazendo deles uma espécie sub-humana, sem sentimentos e a roçar o animalesco! (...)
Pode ser um grande escritor, pode ser um bom médico, pode ser um intelectual, mas não é com certeza um homem decente quando profere estas aleivosias e insulta os ex-combatentes e as Forças Armadas Portuguesas.
E, desculpem, mas não perco mais tempo com este gajo!!!
Abraço camarigo para todos.
Joaquim Mexia Alves
2. O Joaquim já tinha deixado um comentário no poste do Amílcar (*). Tomo a liberdade de reproduzir o seguinte excerto:
(...) Mas repara meu amigo, que já aqui por variadas razões se “terçaram armas”, por vezes bem mais “violentamente”, por outros ditos de militares, jornalistas, etc, e considero que não podemos invocar os talentos de Lobo Antunes para a escrita, ou as suas capacidades intelectuais, ou a sua bela definição de camarada de armas, para nos eximirmos de o criticar quando diz coisas que atentam contra a dignidade de todos os ex-combatentes, sobretudo os que estiveram em Angola, e isso toca-me como ex-combatente e toca-me na família.
Um homem grande, de honestidade intelectual, que eu apesar de tudo acredito que ele é, já devia ter “vindo a terreiro” explicar as suas palavras e se exagerou, (e quem de nós não o fez já em determinadas circunstâncias?), devia retratar-se e explicar que tudo não passou de “figuras de estilo”. (...)
3. Comentário de L.G.:
As infelizes frases ditas, no estrangeiro, por um escritor de que eu sou leitor, mas que só conheço de vista (autografou, ao meu filho, adolescente, um dos seus livros há já uns largos anos na Feira do Livro de Lisboa, ainda era vivo o seu grande amigo, o José Cardoso Pires que estava a seu lado, e que escreveu uma ternurenta dedicatória à minha filha no seu livro "Hóspede de Job"), essas infelizes frases, dizia eu, reportam-se à sua condição de médico militar durante a guerra colonial e, nessa qualidade, não nos podem deixar indiferentes, dizem-nos também respeito... Em todo caso, não podem ser usadas como título de caixa alta, postas entre parênteses, fora de contexto, muito menos como libelo de acusação para linchamento do homem e do escritor em praça pública...
Há que ler o livro e inserir essas e outras frases no contexto da experiência do autor que era, antes de mais, um oficial miliciano e só depois médico e só mais tarde escritor (em 1985, torna-se escritor profissional, abandonando a psiquiatria)... Deixo aqui outras frases do livro, o qual resulta - é bom não esquecê-lo! - de uma longa conversa com o Lobo Antunes, mantida pelo jornalista João Céu e Silva (que é, de facto e de jure, o AUTOR DO LIVRO!), entre Setembro de 2007 e Maio de 2009:
(...) [JCS] Dessa guerra há um dia que o tenha marcado mais do que todos os outros ?
[ALA] Há o dia 13 de Outubro de 1972, mas não posso dizer porquê. Foi uma violência, nunca vou equecer esse dia! (p. 111)...
(...) Eu nunca quis falar nem nunca escrevi sobre a guerra! (p. 110)... Há dias, tive uma conversa com um amigo... e recordei algumas coisas da tropa, o resultado foi que passei uma noite má. Acho que não há quem não tenha vindo de lá afectado (p. 111)...
Qual é esse terrível segredo que o escritor tem guardado, até hoje, só para si? E que não quis compartilhar com o João Céu e Silva (p. 391) ?... Aliás, essa "declaração inédita", esse terrível parágrafo que começa pelas terríveis palavras "Eu tinha talento para matar e para morrer"... podem ser "parte da solução do mistério sobre um certo episódio em África que se recusou a revelar-me" (sic) ... E, se for de facto assim, é um daqueles segredos que o homem leva para a cova , e não apenas uma manifestação da imaginação delirante do autor de "Memória de Elefante" (1979) ?
De resto, as declarações do veterano da guerra colonial de Angola podem levantar (levantam, seguramente) uma questão ética, que tem ver com ambiguidade, confusão e conflito de papéis a que o Lobo Antunes também não escapa, como ser social: onde acaba a consciência moral do homem, do militar e do médico e começa a liberdade criativa do escritor ?
Os lapsos de memória do ex-oficial miliciano médico ou até a sua falta de rigor em relação a questões técnico-militares (por ex., calibres de armamento) devem ser tidas em conta, mesmo que não sirvam de desculpa... Por ex., na página 239, leio algumas coisas que me espantam e que não tenho a certeza de serem correctas (pode ser que alguém mo confirme):
"E à volta de cada mina, [os guerrilheiros do MPLA] punham várias minas antipessoais, porque a mina anticarro rebentava com duzentos quilos e a mina antipessoal, com a pica, eram mais quarenta quilos e aquela merda estourava toda. Mas asim saía mais barata ao Estado , porque enquanto uma Berliet custava dois ou três mil contos, pela morte de um homem, por um rapazinho, paam quatrocentos contos à família. Ficava mais barato!"
Confesso que já não sabia a que pressão rebentavam as minas e, muito menos, que o Estado pagava, na época, 400 contos de indemnização à família pela perda de um vida, cinco ou sete vezes e meia menos do que o custo de uma Berliet do Tramagal...
Fico por aqui. Não sou advogado do escritor, muito menos do homem. E quero sobretudo reafirmar aqui um dos nossos princípios fundamentais, a (ix) liberdade de expressão (entre nós não há dogmas nem tabus), princípio esse que tem que ser compatível com o (i) respeito uns pelos outros, pelas vivências, valores, sentimentos, memórias e opiniões uns dos outros (hoje e ontem)...
Quadratura do círculo ? Às vezes as peças não encaixam mesmo...
[ Revisão / fixação de texto / bold a cores / título: L.G.]
___________
Nota de L.G.
(*) Vd. poste de 17 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5283: Carta aberta ao António Lobo Antunes: que p... é essa de ter talento para matar ? (Amílcar Mendes, 38ª Cmds, 1972/74)