1. Mensagem de Hélder Sousa, ex-Fur Mil de Transmissões TSF (Bissau e Piche, 1970/72), com data de 15 de Novembro de 2009:
HISTÓRIAS EM TEMPO DE GUERRA
MASCOTES E ANIMAIS DE ESTIMAÇÃO E/OU COMPANHIA
OS GATOS…
Como de costume, quando escrevo algo sobre os tempos vividos na Guiné, é motivado por vários elementos que vão aparecendo e que depois de os remoer, um pouco, acabam por me fazer lembrar das situações ou acontecimentos. Vem isto ao caso dos ‘postes’ relativamente recentes em que se falou de aves, pássaros vários, morcegos, ‘ui uis’ e quejandos e da quantidade e variedade de comentários que suscitou.
A propósito deles ficámos a saber de ‘pardais amestrados’, de convívios com morcegos, da admiração pelos jagudis (quase sempre confundidos com perus pelos periquitos…). Também já se tinham referido a cães que, por todas as tabancas, quartéis e aquartelamentos, eram muitas vezes a grande companhia para as solidões.
O Caçador
Até se fez referência a uma tresloucada acção de ‘matança’ de cães que, algures no mato (longe de Bissau, portanto) incomodavam quem não deviam… Igualmente sabemos de periquitos e outras aves que ajudavam a passar o tempo das ‘horas mortas’. Aqui e ali são também conhecidas as proximidades com aqueles animais que, na generalidade, referimos como macacos. E por aí fora.
Eu e o Caçador
Não me apercebi de coisas estranhas, mas possíveis, como ter como mascote ou companhia crocodilos, osgas, iguanas, grilos ou cobras (de várias espécies) mas não posso jurar que não os houvesse… Agora, o que mais me intriga, é a falta de referências aos gatos.
É que esses animais, sempre com o seu estilo particular, lá como cá e noutras partes por onde existem, estiveram presentes durante as nossas ‘comissões de serviço’.
A Morcona
Eu sei que falar de gatos é um pouco ‘abichanado’ mas mesmo assim, se me permitirem, eu vou referir-me a eles.
E, para começar, apresento um poema que o nosso camarada Marques Lopes fez publicar na “Tabanca de Matosinhos”, no início de Agosto passado, em homenagem a um seu amigo entretanto falecido fazia 6 meses, sendo esse o autor do poema e de seu nome Fernando Vale.
O GATO
O gato é um felino
Aristocrata
Sempre usou laço
Nunca quis gravata
O gato é um felino
Snob
De trato fino
Até vaidoso
O seu andar?
Suave, silencioso
Independente
Misterioso
Nunca submisso
Mostra unhas
Também os dentes
Se em duelo
Tanto for preciso
Usa bigode
Destemido, soberbo
Sempre snobe
Não conhece o medo
O seu porte
A muitos humanos
Não agrada
Mas este felino
É um nobre
Capaz de ronronar
Ao exigir uma carícia
É snobe
Mantém sempre
A cabeça levantada
É nobre
Até mesmo quando caga
O gato é um felino
Aristocrata
Sempre usou laço
Nunca quis gravata
(Fernando Vale, 28.02.2008)
Ora acontece então que durante a minha permanência no “Centro de Escuta” os gatos foram a minha companhia, principalmente durante as longas noites de serviço e disso não posso, nem quero, esquecer-me.
Disse durante a noite porque tanto a “Morcona” como o “Kiki” só nesse período se deixavam ver. Não sei porquê, nunca me disseram nem consegui descobrir, durante o dia desapareciam completamente das vistas e só depois do sol-posto apareciam. Houve também um outro, o “Caçador”, que era completamente diferente.
Esse dava-se a ver durante o dia e deixava-se agarrar. Chamei-lhe assim porque era um caçador nato, apanhava tudo o que podia, ratos, sapos, lagartos ‘paga-dez’, até cobras e víboras e depois muito vaidoso carregava as presas e vinha oferecer-me, numa espécie de deferência.
Tudo começou pela “Morcona” que era a gata-mãe dos outros dois, em ninhadas diferentes. Quando cheguei á “Escuta” essa gata estava no forro da casa, tendo entrado para lá por essa ocasião por um buraquito, mas pelo qual já não podia sair.
Pensámos em deixá-la por lá, mas sempre havia o perigo de alguma incomodidade pelo cheiro e não só, e eu, aos poucos, fui tentando cativar a sua confiança, através da comida que lhe levava pelo alçapão de acesso existente na “Escuta”, o que acabei por conseguir. Traindo a sua confiança conquistada com tanto trabalho, consegui agarrá-la e fazê-la passar por esse alçapão, recuperando igualmente três pequenos gatitos.
Inicialmente ficou ‘louca da vida’ mas acabou por não rejeitar as crias, as quais foram acondicionadas no que seria a chaminé da casa onde vivia que era contígua ao “Centro de Escuta”, de modo bem disfarçado e que lhe deu bastante privacidade.
Esta ninhada esteve na origem de um episódio bem caricato passado com o meu amigo Nélson Batalha, de quem aqui já falei no Blogue.
Nessa ocasião era hábito, aos sábados, o Sr. Comandante do que viria a ser o Agrupamento de Transmissões, Sr. Ten-Coronel Ramos, passar revista às instalações, incluindo-se aqui os alojamentos dos Sargentos, que muito se incomodavam com esse aparente atestado de menoridade (o Sr. Comandante ia ver se os quartos estavam bem arrumados e limpos…).
Nesse sábado o Nélson saiu de serviço às 7 da manhã e foi dormir para o quarto, preocupado com a existência da ninhada de gatos e com o que sairia da ‘vistoria’ rotineira.
Como fui eu que o substitui no serviço, estava na “Escuta” quando o Sr. Comandante e comitiva passaram por lá e procurando-me antecipar à continuação da visita à casa ao lado, onde era o nosso quarto e também a improvisada ‘maternidade’, fui lá ver se estava tudo bem camuflado (e estava!) e quis avisar o Nélson da iminente presença das chefias, só que a sua preocupação fez com que ele, estremunhado, gritasse bem alto:
- Eh pá, tira-me daí esses cabrões! - (é claro que ele se referia aos gatos, que achava serem da minha responsabilidade…)
Só que não houve tempo de intervalo entre o meu aviso e a presença dos ‘superiores’ que, como devem calcular, não tendo conhecimento da existência dos gatos, ‘não tiveram dúvidas’ a quem aquele impropério se dirigia!
Como o meu amigo Nélson estava nas ‘boas graças’ do Sr. Comandante por ter sido ferido e evacuado de Catió, em resultado de ferimentos ocorridos num ataque àquele aquartelamento e era um ‘bom cartaz’ demonstrando assim que o pessoal do STM também corria riscos, a coisa passou ‘à pala’ de o Nélson ainda estar um bocado ‘apanhado’ e com sobressaltos resultantes dos ferimentos…
Pelas fotos que anexo podem ver o porte altivo da “Morcona” e as expressões argutas do “Caçador”. Do “Kiki” não encontrei, ainda, qualquer foto.
Peço desculpa por vos tomar tempo com estas coisas menores mas acho que também devem fazer parte do ‘levantamento’ que aqui, dia a dia, fazemos das nossas memórias, e a questão dos animais de companhia ou mascotes não são despiciendas, pois muitas vezes serviram para nos fazer sentir que ainda éramos humanos.
No meu caso, e tratando-se de gatos, não posso dizer que eram as minhas mascotes ou animais de companhia, já que foi muito mais eles a escolherem-me do que eu a eles. Volto a utilizar (com a devida vénia) as palavras do Marques Lopes que cita Manuel António Pina em artigo do “Jornal de Notícias”, de que “nunca viu um gato a fazer habilidades num circo...”, para ilustrar bem o que se entende da ‘personalidade’ felina.
Um abraço para toda a Tabanca!
Hélder Sousa
Fur Mil Trms TSF
Fotos: © Hélder Sousa (2009). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:
Vd. último poste desta série em:
2 comentários:
AMIGO HELDER,
QUANTO MAIS LEIO RELATOS COMO O TEU MAIS FICO FELIZ POR TER VIVIDO NO MATO SEM OS CRUZAMENTOS PERIGOSOS COM ESSE TIPO DE GENTE QUE VOS PASSAVA,DE FACTO,UM ATESTADO DE MENORIDADE AO VASCULHAR A CAMARATA PARA VER AS CAMAS...
DECIDIDAMENTE NÃO ME DARIA NESSE AMBIENTE...
RELATIVAMENTE AOS GATOS,LÁ NÃO OS TIVE MAS SIM UM "CÃO A MEIAS"COM O MOURA OUTRO DOS FURRIEIS DA MINHA GUERRA. E FOI A MEIAS PORQUE A CADELA DA TABANCA PARIU SÓ TRÊS CRIAS E NÓS ÉRAMOS QUATRO GRADUADOS...
O DITO CUJO ESPIÃO DAS CAMAS PRECISAVA DE UMA BOA ARRANHADELA DA MORCONA,PARA PERDER MANIAS...
PENA FOI NÃO A TEREM TREINADO PARA ISSO...
UM ABRAÇO
MANUEL MAIA
Caro Helder Sousa
Apesar de não gostar de "bichos" em casa, gostei do poema do Fernando Vale sobre O GATO e acho o episódio que contas sobre os mesmos bem adequado às histórias do tempo das nossas guerras. Afinal foi uma forma que vocês ou pelo menos tu, arranjaram de dedicar algum tempo e um certo afecto a algo vivo que fazia esquecer certas agruras daquela vida.
Mas neste caso, o motivo que mais me levou a colocar-te este comentário foi fazer-te uma pergunta sobre alguém do STM (?).
É que, andando nas minhas viagens ao passado, tenho por certo que um dos camaradas que embarcou comigo no Alfredo da Silva, no dia 09FEV70 a caminho da Guiné foi um Cap Eng Tm, que ia em rendição individual para o CTm (julgo que era assim a unidade) e de que não me recordo o nome. Nessa viagem dos militares que seguiam quase que garanto que éramos os dois mais graduados, sendo ele naturalmente o mais antigo, mas não mais velho, e partilhámos o mesmo camarote.
Uma vez chegados ao QG em Santa Luzia para nos apresentarmos, nunca mais voltei a encontrá-lo.
Não terás por ventura elementos para saberes o seu nome?
Abraço
Jorge Picado
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