sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Guiné 63/74 - P5304: As minhas memórias da guerra (Arménio Estorninho) (1): Todos temos uma hora de sorte e uma hora para morrer

1. Mensagem de Arménio Estorninho*, ex-1.º Cabo Mec Auto Rodas, CCAÇ 2381, Ingoré, Aldeia Formosa, Buba e Empada, 1968/70, com data de 15 de Novembro de 2009:

Camarada e amigo Luís Graça,

As estórias que vou contar interligam-se, relacionam-se com a desdita sina já descrita em parte por outros camaradas, relativamente a um dos dois militares falecidos, em Aldeia Formosa, ao anoitecer do dia 22/01/69, devido ao acidente com a detonação de uma granada de mão, sobre um telheiro da messe dos Sargentos e por outra situação vivida por mim, aquando um forte ataque in ao Quartel de Buba, na madrugada de 14/02/69, na sorte que me bafejou e a muitos camaradas, se bem me lembro a CCaç 2317 “Os Mártires de Gandembel” também lá estavam de passagem.
[...]


Antecedentes dos acontecimentos

Estando o comando da minha Unidade CCaç 2381, colocado em Aldeia Formosa (Quebo), Dezezembro de 1968/Janneiro de 1969, fui convidado pelo Fur Mil Auto Rodas, Bertino Cardoso, para ir a Bissau, com a finalidade de frequentar um curso sobre reparação e funcionamento de motores-geradores eléctricos, que iria decorrer no Quartel da Engenharia em Brá. Também do quartel de Aldeia Formosa e com o mesmo fim, deslocou-se um soldado que fazia parte da CCaç 1792, Os Lenços Azuis, o qual identifico por aquele que tinha as funções de electricista e de cantineiro no bar das praças. Diga-se que quanto à viagem ela foi efectuada em Dakota e que maravilha de passeata. Foi o melhor que se pôde arranjar para sair do mato. Hoje qual seria o estado de espírito para viajar naquele meio aéreo velhinho e já monte de latas?

Chegados ao Quartel da Engenharia, em Brá, Janeiro de 1969, na primeira vez em que eu pisava terras de Bissau, foram efectuadas as devidas apresentações. No dia seguinte iniciou-se o curso que iria decorrer sem período determinado de aulas, tendo logo sido a minha intenção fazer render o peixe, isto é prolongar o tempo ao máximo, dado que por parte dos instrutores não havia qualquer inconveniente, de modo que retardasse o regresso à Unidade, e fazer um mês de justas e baratas férias.

Só que o bom do soldado que me acompanhou não esteve de meias modas, oito dias depois já pretendia regressar, porque na vida civil tinha a profissão de electromecânico, por isso já usufruía de boa prática e de conhecimentos teóricos. Pensou este que na Unidade não se deslocava para fora do arame farpado, julgando que fazia falta no aquartelamento e que era necessário ao Capitão. Contudo, deduzi que a sua pretensão seria mais por falta de dinheiro, dado que a cidade de Bissau era convidativa a gastar-se muito mais do que no interior, e ele como cantineiro era de poucos gastos.
Para o demover, fiz-lhe uma proposta, se houvesse saídas, e conforme os meus gastos, ele dispunha de importância de igual valor, não tendo o mesmo aceite, por isso de nada mais errado podia haver.

Diga-se que eu e o ex-1.º Cabo Escriturário, António Soares, da minha Companhia, tínhamos um mini-laboratório de fotografia, instalado no aquartelamento, do qual obtínhamos alguns proventos e podia por isso também despender de mais algum dinheiro. Conquanto contrariado tive que anuir, para evitar chegar posteriormente à Unidade e ter sanções disciplinares, o que não era conveniente.
Para o efeito, organizei o regresso via Aeroporto de Bissalanca, fizemos o devido embarque em Dakota, e seguimos para as respectivas Unidades.

Foto 8 > Bissau > Brá > Janeiro de 1969 > Quartéis e estrada do Aeroporto.

Foto 9 > Bissau > Janeiro de 1969 > Junto ao Parque Teixeira Pinto (Praça dos Combatentes da Liberdade), de passeio pela cidade, estando à esquerda um ex-1.º Cabo Mec Auto Rodas que também estava a frequentar o curso sobre geradores eléctricos. Penso que a sua Unidade fosse das áreas de Jumbembem, Cuntima ou Cajambari, não tenho de memória qualquer identificação concreta.

Foto 12 > Bissau > Março de 1970 > uma avenida, estando eu e o ex-1.º Cabo Escriturário, António Soares, de Vinha da Rainha - Soure.

Aldeia Formosa (Quebo), em data posterior a 04 de Janeiro de 1969, quando regressei a este aquartelamento, o Comando e Serviços, da minha Unidade CCaç 2381, já se tinha deslocado para Buba, por ter-lhe sido atribuída a missão de dar segurança ao início dos trabalhos de abertura da nova estrada entre Buba e Aldeia Formosa. Do mesmo somente ficaram o Fur Mec Auto Rodas, Bertino Cardoso e o Condutor Auto O Caldas, incumbidos de efectuar a entrega das viaturas que estavam a cargo da nossa Companhia, para outra que as ia receber (penso de que era a CArt 2414), só que o Furriel Tac Tac entregou-me a pasta e embrulha. Desenrascou-se embarcando numa avioneta para Buba.

Feito o protocolo de entrega das viaturas a um Alferes Miliciano, o qual teve algumas hesitações de aceitação, mas ponderou, porque dialogando concluímos que as nossas habilitações literárias eram idênticas. Após (e logo por sorte), aterrou ali o tal velhinho Dakota, que também ia fazer escala em Buba. Para evitar, como era de todo inconveniente efectuar o percurso em coluna auto (veja-se foto 7), que estava marcada para 21/01/69, solicitei verbalmente o pedido de embarque ao Comandante do meio aéreo, o que foi aceite, mas só com guia de marcha. Depois, requeri as ditas guias num ápice e ala que se faz tarde!. Lá nos fomos juntar ao Comando da Companhia.
Relativamente à dita Aldeia Formosa (que de nada tinha), foi mais um obstáculo ultrapassado, dizendo-lhe até à vista, e não levando boas recordações.

Foto 7 > Guiné > Região de Tombali > Aldeia Formosa (Quebo) > Julho de 1968 > Com a viatura destruída por mina a/c. Era a do Rádio de Transmissões, tendo ocasionado a morte do Operador. A coluna que saíra de Buba, em 25/07/68, onde seguiam os três obuses de 14cm. Na traseira da carroçaria, vi que o Capitão Ricardo Rei, o homem do bigode, da CCaç 1792, Os Lenços Azuis, ia atrás sentado e com as pernas suspensas. Teve a sorte pelo seu lado, caso o rebentamento fosse na roda de trás, era ele que morria. Militar de valor e amigo, conta-se que só teve promoções até Tenente Coronel e que já não está entre nós.


Seguiram-se os acontecimentos com sortes diferentes

Aldeia Formosa (Quebo), ao anoitecer do dia 22/01/69
No que concerne a este acidente, serão narrados factos do meu conhecimento e os que me foram contados por fonte que considerei fiel, pois o já mencionado soldado electricista e cantineiro da CCaç 1792, Os Lenços Azuis, presumo que se chamava José Pereira da Costa, natural de Castelo Branco ou Manuel da Silva Carrola, natural da Covilhã, era do seu hábito ir ligar o gerador eléctrico e só depois é que jantava. De seguida, dava dois dedos de conversa no átrio da messe dos sargentos para passar o tempo e fazer a hora de abrir o bar da cantina, que se situava nas proximidades. Contudo, estava no lugar errado há hora errada, tudo calmo e de repente algo muda com uma detonação. Uns ficam feridos, outros fogem para se abrigarem, pensando que se tratava de um ataque IN. Quanto ao presumível soldado, correra para se proteger no abrigo da cantina e teve um fim trágico.

Conquanto, no quartel de Buba, pela noite, eu ouvia as inusitadas passagens de meios aéreos, o que era anormal e por isso interrogávamo-nos sobre o que sucedera para os lados de Aldeia Formosa.

Viemos posteriormente a saber do acidente e que no mesmo houve a lamentar dez feridos e duas mortes, um deles fora encontrado na cantina já sem vida, motivado por um estilhaço da granada alojado no tórax, com derramamento interno.

Houve um suspeito pelo acidente, segundo constou tratou-se de um soldado que posteriormente andava pelo aquartelamento dando mostras de desvairo e a chorar, por isso e a fim de ser interrogado, fora enviado para Bissau. Nada mais se soube.

Buba, 14/02/69, pelas 5h,15m da manhã
Grupo IN desencadeou forte ataque ao aquartelamento. Estando eu deitado, de imediato levanto-me e corro para a porta da caserna, com a intenção de dirigir-me para a vala, como era normal. Quando ia a meio do percurso, houve a detonação de uma granada de canhão s/r, penetrando na parede da caserna e vergando a estrutura de um beliche. Estando prestes a sair, entre várias explosões, dá-se em particular a de uma granada, no depósito de água, o que me fez retroceder e proteger-me entre caixas que se encontravam debaixo de camas.

Foto 10 > Guiné > Região de Quinara > Buba > Aquartelamento > Fevereiro de 1969 > Tendo em fundo o depósito de água, uma caserna e a árvore poilão, onde havia um posto de sentinela (nota-se a guarita) e, até lá ter falecido um camarada aquando ataque IN.

Provavelmente, se já tivesse ultrapassado o vão da porta, pelo fogo de artifício que se apresentou no exterior, os estilhaços teriam feito muita mossa na minha roupinha de baptismo.
Foram dois momentos de sorte para mim e para outros camaradas, estando, entre eles, dois que pertenciam à CCaç 2317. Por incrível que pareça, foram acordados após o ataque terminar. Pensaram eles que estavam nos buracos das toupeiras em Gandembel. Tal era o hábito, mesmo com tanto fogacho já não ligavam.
Havendo a excepção de um cozinheiro, que quando preparava os pequenos-almoços no refeitório das praças que, devido à detonação de uma granada IN, ficou ferido e veio a falecer.

Porque fui buscar as memórias ao Baú, e por vezes elas prega-nos partidas, se lhes parecer algum pormenor menos certo aproveito para pedir desculpa.

Penso que assim foi colocada mais uma peça no puzzle, sobre aquela fatídica noite e da desdita sina que estava traçada para um militar, que precipitara o encontro com a morte prematura e estúpida. Solicito a quem souber que identifique a qual me referi, sendo ele bom camarada, responsável, zeloso, voluntário e considerar-se imprescindível no quartel. Mas não se recordou de quando da instrução militar, dos constantes ensinamentos que na tropa não se deve ser voluntário, também não foi o único infelizmente, pois acontecera com tantos outros militares em situações diferentes. Aquela viagem inoportuna poderia ter-me sido também fatal, mas fiquei ileso fisicamente. Recordo-me dos tempos idos com o célebre grito exclamando: - “Tirem-me daqui… estou farto disto..!,” que sem excepção afectara psiquicamente a todos.

Por hoje é tudo, dando-te um forte aplauso de incentivo, que é de louvar a tua
disponibilidade, assim como dos co-editores, de tanto quanto possível poderem apresentar o blogue de forma organizada, para que possamos manter viva a nossa mística de ex-combatentes, sobre tempos idos tão difíceis e que nos valorizaram como homens.

Alonguei-me demais no escrever pois, como bom algarvio, tenho dificuldade em terminar o texto, isto é como o comer e o guerrear, o mal é começar!
De acordo com o solicitado vou enviar as fotos da praxe, assim como de outras e identificadas tanto quanto possível.

Cordiais saudações, e, recordando com o complicado vocabulário e pontuação de, “djubi, amim mist parti manga di mantenhas pra abó, bai suma pra manga dêl escamaradas di tertúlia, járame ánãni.” (i.e., do crioulo: olha, eu quero dar muitos cumprimentos para ti, vai igual para todos os camaradas da tertúlia, obrigado está bem).
__________

Nota de CV:

(*) Vd. poste de 18 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5293: Tabanca Grande (187): Arménio Estorninho, ex-1.º Cabo Mec Auto Rodas da CCAÇ 2381 (Guiné, 1968/70)

3 comentários:

Anónimo disse...

Camarada Arménio quem foram os teus instrutores no curso no Beng 447?
Na altura o Oficial e chefe da secção eléctrica era o Alf. Eng.
Electrotécnico,José Alberto de Barros Ferreira,e o 1ºSarg.Sousa um acoriano do Faial.
Nessa altura eu já estava no Quartel General na Central Elétrica
As melhores Saudações e Bem-Vindo a esta nossa Tabanca.
José Nunes
1º Cabo Mec.Elect.de Centrais
Beng.447 Brá
68/70

Unknown disse...

Relativamente à foto nº 7 que eu transcrevo: "Foto 7 > Guiné > Região de Tombali > Aldeia Formosa (Quebo) > Julho de 1968 > Com a viatura destruída por mina a/c. Era a do Rádio de Transmissões,..."
Quero acrescentar que o condutor desse carro é o meu pai. Ele sobreviveu apenas porque pressentiu o que se avizinhava. O PAIGC não ia deixar barato o transporte dessas armas para a Formosa. A existir um ataque sério e articulado a uma coluna, o primeiro alvo teria que ser as transmissões, neste caso o veiculo das transmissões. Ele desmontou o banco do condutor e encheu três sacos de areia e conduziu o carro sentado em cima dos sacos de areia. Ainda assim foi projectado para a frente do Unimog segundo se consta cerca de 30 metros. O veiculo circulava no meio da coluna mas uma mina "programada" esperava-o.
Dá para ver pelo estado do veiculo a potência da explosão mas os sacos de areia salvaram-no praticamente ileso.

Anónimo disse...

Olá amigo identificado por "Falcus", saudações para ti e para teu pai meu camarigo (camarada amigo).

Porque o teu pai era o Condutor Auto da viatura sinistrada por mina, será de todo conveniente que fizesses uma visita no Blogue Tabanca Grande nos Postes P5845 e P5857 Arménio Estorninho, P7433 Condutor Auto Raul Brás e em Guiné 63/74-CDXI o meu Diário (1º Cabo Enfº José Teixeira, foi quem deu os primeiros socorros ao teu pai. Buba - Aldeia Formosa,24-26 de Julho de 1968).

Para engrandecimento do Blogue, os nossos Editores receberiam com muito agrado as vossas identificações civis e militares, e como uma provável aderência conforme instruções na margem do Poste.

Com um Abraço
Arménio Estorninho