sábado, 21 de novembro de 2009

Guiné 63/74 – P5313: Estórias do Fernando Chapouto (Fernando Silvério Chapouto) (14): As minhas memórias da Guiné 1965/67 – Rotinas perigosas IV


1. O nosso Camarada Fernando Chapouto, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCAÇ 1426, que entre 1965 e 1967, esteve em Geba, Camamudo, Banjara e Cantacunda, enviou-nos a 14ª fracção das suas memórias. Esta sua série foi iniciada em 29 de Agosto p.p., no poste P4877.

AS MINHAS MEMÓRIAS DA GUINÉ - 1965/67
Rotinas perigosas IV

Chegado a Cantacunda foi tempo de conhecer os cantos à casa, denotando, desde logo, que as instalações eram muito precárias. Pior só BANJARA, aonde me havia deslocado uma ou duas vezes para jogar futebol, após o que regressávamos a Camamudo.

Conhecidas as instalações, fomos visitar a Tabanca, contactar com os usos e costumes do pessoal na localidade (especialmente o das bajudas como é óbvio) e arranjar lavadeira.

Cantacunda era uma Tabanca muito estranha, notamos que a maior parte da população era muito desconfiada, de tal modo que não consegui, durante o mês e meio que lá estive, chegar a uma conclusão sobre as origens que motivavam essa desconfiança.

Detectamos a presença de várias pessoas estranhas à nossa tropa, que por ali circulavam, uns a apeados, outros de bicicleta, que habitualmente se juntavam sob os mangueiros a conversar, debandando quando nos aproximávamos. Perguntei aos soldados nativos, quem eram e donde vinham, mas ninguém me sabia, ou não queria, responder, em nítida posição de cumplicidade.

Assim, conhecidos os cantos da casa e da Tabanca, juntamos o pessoal necessário e procedemos ao reconhecimento da periferia, para nos certificarmos da vivência nos arredores da Tabanca, nomeadamente em algumas picadas. Numa delas verificamos sinais de movimentação humana, muito pouco vulgar, já para além da bolanha.

Regressados ao destacamento fui dar conhecimento ao Furriel Paio das minhas desconfianças, sugerindo-lhe que aquela picada mais movimentada fosse armadilhada. Ele concordou comigo e no dia seguinte, a seguir ao pequeno-almoço, falei com o Furriel Paio para que me cedesse nove ou dez soldados da companhia e um soldado nativo conhecedor desta ZO, equipados com o armamento usual, para efectuarmos um reconhecimento mais atento e pormenorizado à citada picada e montarmos então as tais armadilhas.

Muni-me de duas granadas defensivas e lá saímos. Passamos a bolanha e caminhamos mais um ou dois quilómetros. Escolhi um local que me parecia mais discreto, junto a uma pequena árvore com vegetação em volta, para colocar uma das armadilhas usando uma das granadas que eu transportava. Montei um círculo de segurança no perímetro, enquanto executava a montagem, acerca de um palmo do solo, dissimulada pelos arbustos que ali existiam dos dois lados do caminho (seguindo as instruções e conhecimentos que recebera nos “ranger’s”).

Para quem não sabe ou já esqueceu, estas colocações obrigavam a fazermos uma descrição da montagem da armadilha, com a sua localização exacta (indicando pelo menos um ponto de referência evidente e EXACTO do local), e, se necessário, elaborarmos um esboço ou esquema da colocação.

Tal se devia a que, posteriormente, serviria não só para comunicação a todo o pessoal da nossa Unidade, desta perigosa e mortífera existência, bem como em caso de nova decisão, se proceder à sua EXACTA desmontagem.

Cumprindo então as normas aprendidas, seleccionei uma árvore seca de grande porte com uma bifurcação enorme e utilizando a orientação possível e o medidor habitual (contagem de passos), elaborei o croqui (que aperfeiçoei quando cheguei ao destacamento), contendo todos os pormenores, para que, como foi dito, caso não fosse accionada a granada pelo IN, quem tivesse que executar a desinstalação não tivesse qualquer dúvida da sua exacta localização.

Escusado seria dizer aqui, que o mínimo erro na elaboração de um croqui desta natureza, poderia significar um drama humano fatal à NT.

Mais uns dias passaram, gastos em voltas pela Tabanca para conhecimento mais intestino dos movimentos de alguns elementos, que me pareciam esquisitos e na tentativa de compreender e assimilar o dialecto empregue pelos nativos, que foi coisa de que nunca consegui entender patavina (nem de fula, nem de mandinga), exceptuando apenas algumas palavras em crioulo, nada mais.

Digo que, também a minha, nossa, missão não era essa, mas sim defender e proteger a população, para que, com a nossa presença, se sentisse mais segura.

Aos fins de tarde, com o sol ameaça desaparecer, davam-se uns pontapés na bola, sem nunca conseguirmos onze “artistas” para cada lado, a que se seguiam os indispensáveis banhos, no belo “balneário” ali existente.

Foto do lavatório típico das péssimas condições existentes em Cantacunda

Mais uns dias de descanso se passaram, a que se seguiu um novo reconhecimento das picadas e, especialmente, a verificação do estado da armadilha que havíamos colocado, se tudo estava como deixáramos. Quando cheguei à árvore de referência, ordenei aos soldados que se dividissem em dois grupos e penetrassem para dentro do mato, ao longo da picada, até ao local da armadilha.

Toca a contar os passos seguindo o rumo da montagem, com cuidado, pois podia haver alguma surpresa até à armadilha e, para meu espanto, quando cheguei ao sítio da armadilha verifiquei que o fio estava partido, ou cortado. Analisei a armadilha e tudo estava normal, pelo que, pensei aqui há “gato”. Como levava a outra granada comigo, andei mais um quilómetro aproximadamente e montei-a num lugar muito estreito, com mato muito denso e com indícios de passagem de pessoas.

No regresso, ao passar pelo local onde se encontrava a primeira armadilha, introduzi uma cavilha em segurança na granada, mudei o fio de esticar, retirei a cavilha novamente e regressei ao destacamento, pois já estava na hora do almoço.

Aproximava-se o domingo de Páscoa e tínhamos agendado um jogo de futebol com a equipa de Capé, da parte da manhã. Era preciso ir à lenha para a cozinha e como o condutor estava atrasado, pediu-me que conduzisse eu a viatura. Lá fui eu num Unimog “dançarino”, até poucos quilómetros de Cantacunda, perto da bolanha, na direcção de Camamudo. Carregou-se a viatura e regressamos.

Eu carregava no acelerador e os nativos gritavam: - Força furriel!

E eu, extasiado, cada vez acelerava mais. O pior foi quando entrei num terreno arenoso e o Unimog, que já de si era muito instável e inseguro, guinou para um lado e para o outro e saiu da picada, obrigando-me a virar e a revirar o volante. Tive sorte, o veículo não saiu da picada e como não havia nada nas bermas, consegui dominar a direcção da viatura. Fiz uma tangente a uma árvore e retomei a picada. Milagrosamente chegamos todos inteiros ao destacamento, não ganhei para o susto mas ficou-me a experiência para o futuro. Aprendi a ter mais cuidado, pois com a carta de condução há apenas dois meses, não tinha qualquer noção de condução no mato.

Descarregada a lenha, subiram os jogadores da nossa equipa seleccionados para a viatura, pois o jogo era às dez horas. Capé distava cerca de 20 kms, cujo trajecto percorremos rapidamente, chegando antes da hora prevista. Como o pessoal já ia meio equipado, apenas tiramos o camuflado e começamos o jogo. Tudo correu bem excepto o resultado final do jogo. Fomos derrotados por 1-0.

Acabado o jogo regressamos a Cantacunda, tomamos banho e fomos almoçar com o restante pessoal da companhia, que já estava à nossa espera.

Foto da equipa de futebol de Capé capitaneada pelo bem conhecido Carlos Barbosa, filho do patrão da refinaria de cana de açúcar local. É o primeiro em pé, a contar da direita.

(Continua)

Um forte abraço do,
Fernando Chapouto
Fur Mil Op Esp/Ranger da CCAÇ 1426

Foto: Fernando Chapouto (2009). Direitos reservados.
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Nota de MR:

Vd. poste anterior desta série, do mesmo autor, em:

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