Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > Hospital de São Vicente, fundado em 1899, no reinado do Rei Dom Carlos I (1889-1908). Foto do álbum do expedicionário, 1º Cabo Luís Henriques, nº 188/41 (1º Pelotão, 3º Companhia, 1º Batalhão, RI 5, Caldas da Raínha). Natural da Lourinhã, onde nasceu em 19 de Agosto de 1920, Luís Henriques tem hoje 91 anos e memórias muito vivas dos difíceis tempos que passou no Mindelo (26 meses, entre julho de 1941 e setembro de 1943; nos últimos 4 meses esteve hospitalizado, por problemas pulmonares, entre maio e agosto de 1943).
Foto: © Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2010). Todos os direitos reservados
1. Comentário, de um camarada de armas e leitor do nosso blogue, com data de 21 do corrente, ao poste P5109:
Luís Graça:
Sou Adriano Miranda Lima, coronel reformado, residente em Tomar, e nascido em Cabo Verde, S. Vicente. Não estive na Guiné, apenas em Angola e Moçambique.
Tive acesso ao seu blogue e só tenho razões para o felicitar efusivamente por esta belíssima e interessante iniciativa.
Revisitar estas saudosas memórias é recolocar a história no seu devido lugar e com ela reencontrar-se num abraço fraterno em que o coração se dá inteiro.
Como servi longos anos no RI 15 [, Tomar], aliás, a minha unidade de colocação, após o termo das comissões no ex-Ultramar, acompanhei sempre o convívio dos antigos expedicionários mobilizados pelo Regimento.
Algumas vezes coube aos expedicionários do RI 15 a organização do convívio, com participação dos camaradas de outros regimentos e unidades mobilizadoras. Cada "regimento" organizava o convívio de todos os que serviram em S. Vicente, [Cabo Verde].
Com o meu apoio pessoal, sendo eu então major, por duas vezes o convívio realizou-se no meu Regimento, em Tomar, e numa das vezes ele foi integrado nas comemorações do Dia da Unidade. Noutra ocasião, foi num restaurante em Tomar, e também estive presente, por simpático convite do elemento organizador, Sr. Francisco Lopes (Chico Concertina), infelizmente falecido há cerca de 4 anos. Dava-me muito bem com ele, e era sogro de um amigo meu, advogado.
Se estiver interessado em saber alguma coisa sobre o Batalhão que saiu de Tomar, terei o maior gosto em prestar informações ao blogue. Por acaso, publiquei um artigo num jornal online, sobre a memória desse batalhão. (**)
Há um blogue chamado Praia de Bote (nome de um local de S. Vicente), em que tenciono publicar uns spots sobre as forças expedicionárias a Cabo Verde. Como tenho poucas fotos, queria pedir a sua autorização para me servir das que constam do seu blogue respeitantes ao BI 5, que eram do seu pai. Apenas como ilustração. Naturalmente que me refiro a fotos de carácter genérico, não pessoais.
Apraz-me também registar o afecto e a admiração com que cultiva a memória do seu pai neste Blogue. (***)
Um abraço
Adriano Lima
[, criador e editor do blogue Ademos, cujo objetivo é a defesa do património ambiental e construído da cidade do Mindelo, São Vicente, Cabo Verde]
Blogue de Joaquim Saial, Almada, Portugal:
"A Praia de Bote é o genuíno coração do Mindelo. Sítio de catraeiros, lojas de aprestos marítimos (em desaparição), vendedeiras de fruta e legumes, botequins com cheiro a grogue, mancarra e tabaco americano, pescadores e seus botes, plurim d'pêxe (mercado de peixe), contrabandos vários, patifes de navalha afiada e também gente boa... Começa na velha Alfândega (hoje Centro Cultural do Mindelo) e termina na Torre de Belém (ou ao contrário...). É dela, da cidade e também da ilha onda se encontra que o blogue PRAIA DE BOTE trata".
Joaquim Saial é Professor e investigador de Arte e História. O blogue tem mais de 20 mil visitantes, desde o seu início (7 de fevereiro de 2011).
2. Comentário de LG:
Adriano, muito obrigado pelo seu comentário, pelo seu elogio ao nosso blogue, mas também pelo seu pedido. Começando por este, disponha das fotos do meu pai, para os efeitos que julgar convenientes, citando sempre, naturalmente, o nosso blogue. (Temos, aliás, mais fotos de mais outros dois expedicionários, na série Meu pai, meu velho, meu camarada, nomeadamente do Ângelo Ferreira de Sousa e do Armando Lopes).
Todos temos o dever de memória, deixando às gerações seguintes notícias sobre a nossa passagem por este planeta que é único, o berço da humanidade, é a nossa casa, ou é a aldeia onde todos somos vizinhos... Cabo Verde e Portugal têm uma longa história em comum, além de uma língua. Eu tenho um especial afeto por São Vicente e, em particular, pelo Mindelo que um dia destes espero poder finalmente conhecer ao vivo. (Não conheço Cabo Verde, de todo: estive apenas uma escassa hora ou duas no Sal, em paragem técnica do avião da TAP que me trouxe de férias, de Bissau a Lisboa, em 1970).
Transmiti, este fim de semana, ao meu pai, Luís Henriques, (a caminho dos 92 anos) o seu interesse e o seu pedido. Até aos 80 anos, costumava ir ao convívios anuais da malta de Cabo Verde. Disse-me que nunca foi ao RI 15 (Tomar), a nenhum dos convívios dos antigos expedicionários, já que ele pertencia ao RI 5 (Caldas da Rainha). Em todo o caso, lembra-se bem das jogatanas de futebol, no Lazareto, entre uns e outros. Como também se lembra da epidemia de fome que assolou as ilhas, no tempo em que lá esteve (1941/43). O seu "impedido", o Joãozinho, que ele alimentava com as suas próprias sobras do rancho, também ele morreu, de fome e de doença, em meados de 1943. Comove-se ao dizer-me que deu à família do miúdo todo o dinheiro que tinha em seu poder (c. de 16$00) - na altura, estava hospitalizado -, para ajudá-la nas despesas do enterro.
Desejo-lhe, por fim, meu caro Adriano, a si e aos seus amigos, todo o sucesso na defesa do património daquela terra mágica, o Mindelo, berço de grandes poetas, músicos e cantores.
______________
Notas do editor:
(*) Vd. poste de 15 de outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5109: Meu pai, meu velho, meu camarada (18): Do Mindelo a... Bambadinca, com futebol pelo meio (Nelson Herbert / Luís Graça)
(**) Vd. excerto do artigo de Adriano Miranda Lima no jornal Liberal, "on line",
edição de 31 de Março de 2009:
Adriano Miranda Lima > Tropas expedicionárias a Cabo Verde durante o período da Segunda Guerra Mundial - Memória que perdura
(...) Como é sabido, Portugal não teve qualquer envolvimento na Segunda Guerra Mundial, tendo optado por uma posição de neutralidade que se manteve ao longo de todo o conflito. No entanto, sabedor da importância estratégica das suas ilhas atlânticas, nomeadamente os arquipélagos dos Açores e de Cabo Verde, alvos apetecidos por qualquer dos contendores, Portugal entendeu que seria curial guarnecer aqueles territórios com forças militares suficientes para dissuadir qualquer veleidade por parte dos beligerantes. O conflito assumira uma dimensão considerável no Atlântico e aqueles arquipélagos eram, com efeito, detentores de elevado potencial estratégico, sobretudo do ponto de vista aero-naval. Uma fraca presença militar de forças nacionais poderia indiciar um sintoma de desleixo, susceptível de encorajar uma ocupação estrangeira à revelia do direito internacional, em manifesto atropelo da soberania portuguesa.
O Regimento de Infantaria nº 15, de Tomar, foi das unidades do exército que enviaram forças expedicionárias a Cabo Verde. Conheço muito bem o historial deste Regimento por nele ter servido durante longos anos. E é assim que me capacito a divulgar a curiosa memória afectiva que os expedicionários deste Regimento de Infantaria desde sempre vêm cultivando e perpetuando. A par de outros Regimentos do Exército, competiu ao Regimento de Infantaria nº 15 organizar e mobilizar para Cabo Verde um Batalhão de Infantaria (cerca de 800 homens). As quatro companhias do Batalhão ficaram instaladas em S. Vicente e S. Antão, tendo partido de Portugal agrupadas em três contingentes. O primeiro embarcou em Portugal em 19 de Outubro de 1941, o segundo em 17 de Novembro do mesmo ano, e o terceiro em 8 de Janeiro de 1942.
Mas este acontecimento teria sido mais um episódio normal da história militar portuguesa não tivesse marcado indelevelmente o espírito dos antigos militares, sobretudo a classe de praças (soldados e cabos) e os oficiais e sargentos milicianos (serviço obrigatório). Os capitães já eram na altura homens maduros (quarentões) e habituados às andanças e contingências da vida militar, pelo que é natural que o impacto emocional das grandes “aventuras” tocasse mais a faixa etária dos vinte anos. O facto é que, desde a sua desactivação, os ex-militares que serviram no citado Batalhão vêm promovendo reuniões anuais em almoços-convívio para recordar a sua passagem por Cabo Verde, nomeadamente pelas ilhas de S. Vicente e de S. Antão, por onde se distribuíram as suas companhias.
Estive presente num desses convívios, pela primeira vez em 1986, pela circunstância de o mesmo ter sido realizado nas instalações do Regimento de Infantaria nº 15, por convite do seu Comandante. Competiu-me, na altura com o posto de major, ser o oficial a apoiar a organização desse evento, que se inseria nesse ano nas comemorações do aniversário do Regimento, condição que me permitiu assistir do princípio ao fim à confraternização dos ex-militares.
O leitor nem imagine a satisfação daqueles homens quando lhes disse que eu era cabo-verdiano de origem. E isto porquê? Porque, quando se juntam, a intenção é celebrar a memória de uma experiência militar vivida na intensidade anímica dos seus 20 anos, mas também recordar e celebrar a terra cabo-verdiana com eflúvios de uma saudade que eu não imaginava possível. (...).
Um deles, Francisco Lopes, na altura cabo, era um exímio acordeonista (ainda hoje anima as romagens de saudade com o mesmo instrumento), e, como tal, fazia parte de grupos de animação recreativa em S. Vicente, juntamente com outros músicos da terra, frequentando as festas e os bailes das colectividades. Tanto assim foi que aprendeu, e ainda se recorda bem de mornas então em voga que ele recupera e interpreta nestes convívios, acompanhado por outros intervenientes.
Mas achei digno de registo o facto de muitos deles fazerem questão de introduzir nas suas conversas expressões em crioulo, demonstrando que não foi em vão o seu convívio com as gentes cabo-verdianas. São inúmeras as histórias que se contam nestes convívios, citando-se amizades contraídas com cabo-verdianos, namoricos com raparigas da terra, nomes de ruas, praças, botequins, enfim, um reportório variado de emoções e aventuras que a sua memória regista como as mais indeléveis recordações das suas vidas (...).
(...) Mas há um nome cuja memória estes homens veneram. Trata-se do capitão Fernando de Magalhães Abreu Marques e Oliveira, [1903-1975,] comandante da 3ª Companhia do Batalhão, recordado como oficial de alta competência e dotado de grande espírito humanitário. E então recordam que, naqueles tempos difíceis, em que grassava a fome em Cabo Verde, vitimando muita gente entre a população (como bem sabemos), o capitão Oliveira, condoído com aquela dramática situação, ordenou a montagem de um conveniente serviço de distribuição de sobras de rancho (alimentação das praças) às pessoas que se acercavam da portão do quartel. A certa altura, reparando que o número de necessitados crescia a olhos vistos, disse ao Sargento do Rancho que tinham de maximizar as sobras de alimentação. Perante as dúvidas do subordinado, explicou-lhe que era preciso “inventar” todas as situações administrativas e recursos possíveis. O Sargento mostrou-se então com dúvidas, mas a pertinácia do seu capitão não permitia qualquer hesitação ou tibieza. Sublinho que este facto foi-me contado, emocionado, pelo próprio Sargento interveniente, que era na altura um jovem furriel miliciano, infelizmente hoje já falecido.
O capitão Oliveira era, de facto, de uma natureza humana invulgar, um homem de grande nobreza de carácter e estatura moral, às ordens de quem nunca servi, mas que sempre ouvi citado pelas suas altas qualidades humanas e profissionais. Faleceu de morte súbita em 1975, já general reformado, tendo no seu cortejo fúnebre um número infindável de antigos subordinados. Todos os anos, estes veteranos do ex-Batalhão Expedicionário aproveitam o convívio para cumprir uma romagem ao jazigo do cemitério de Tomar onde estão os restos mortais do seu “capitão”. Ele era filho desta cidade de Tomar. Escusado é dizer que me venho incorporando no séquito de homenagem, em intenção a um oficial de estirpe, mas, sobretudo, em nome de todos os meus conterrâneos a quem o oficial mitigou a fome com a sua atitude de grande compaixão e solidariedade humana.
Registe-se que o gesto humanitário do capitão Oliveira em prol dos necessitados em S. Vicente não tardou a ser seguido por outros comandantes das companhias destacadas na ilha de S. Vicente. Creio que por longos anos ficou gravada na memória dos pobres e desprotegidos do Mindelo a figura humana do valoroso capitão. Um homem que aparentava um ar sóbrio e mesmo severo, mas que tinha um coração de ouro, do tamanho do mundo. Havia uma rua em Mindelo que se chamava rua Infantaria 15, provavelmente uma homenagem da cidade por tudo quanto foi aqui referido. Ainda me recordo dessa rua, mesmo no centro da “morada”, que hoje terá certamente outra designação toponímica. Provavelmente, o nome de algum estrangeiro que nenhuma relação teve com Cabo Verde e a cidade do Mindelo.
Num breve apontamento, resta referir que o Batalhão de Infantaria 15 regressou a Portugal em Julho de 1943. Seria interessante citar outros factos do seu historial, em meu poder, mas não o faço para não saturar este texto. No entanto, não deixo de referir que o comandante do Batalhão, major Nicolau de Luizi, faleceu por doença em S. Vicente, em pleno exercício do seu comando. Realizou-se então um cerimonial militar fúnebre em S. Vicente, mas a sua urna foi transferida para Portugal, estando sepultado num jazigo no cemitério desta cidade de Tomar, de onde era também natural. (...)
O capitão Oliveira era, de facto, de uma natureza humana invulgar, um homem de grande nobreza de carácter e estatura moral, às ordens de quem nunca servi, mas que sempre ouvi citado pelas suas altas qualidades humanas e profissionais. Faleceu de morte súbita em 1975, já general reformado, tendo no seu cortejo fúnebre um número infindável de antigos subordinados. Todos os anos, estes veteranos do ex-Batalhão Expedicionário aproveitam o convívio para cumprir uma romagem ao jazigo do cemitério de Tomar onde estão os restos mortais do seu “capitão”. Ele era filho desta cidade de Tomar. Escusado é dizer que me venho incorporando no séquito de homenagem, em intenção a um oficial de estirpe, mas, sobretudo, em nome de todos os meus conterrâneos a quem o oficial mitigou a fome (...).
(***) Vd. último poste da série >22 de janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9386: O Nosso Livro de Visitas (123): Fernando Gomes Pinto da CCAÇ 4945/73 (Guiné, 1973/74)