Caros Editor e Co-Editores
Como sei que a 'produção' afrouxa, aqui me atrevo a enviar um texto que, se entenderem, podem publicar.
Trata-se de algo de que senti o impulso de escrever pois tudo o que aí relato é verdade, com um ou outro pormenor que possa estar menos exacto, e que no fundo é para fazer a minha justiça a alguém que lá e naquelas circunstâncias pode não ter sido (ainda hoje) bem compreendido.
As fotos que vos envio têm créditos que devem ser atribuídos, a mim mesmo na foto a preto e branco em que estou com os Furriéis Centeno e Herlander, a João Moura na foto do conjunto do Quartel e a Eduardo T. Lopes, da CART 3332, as restantes. Na foto de conjunto, que é pouco antes da minha chegada a Piche pode-se ver a Porta de Armas com a árvore que nessa altura ainda não tinha a base cimentada, vê-se o edifício identificado com o 11 como sendo o do Comando, atrás desse local pode-se ver o edifício com a viatura do STM, o edifício com o 4 era a messe de sargentos e oficiais e o espaço assinalado entre o 6 e o 14 foi onde se construiu o novo Posto do STM.
Saudações.
Hélder Sousa
HISTÓRIAS EM TEMPOS DE GUERRA (12)
O SR. MAJOR CALIXTO
Os antecedentes
Já vos macei várias vezes com os meus relatos mas, para um melhor enquadramento desta história, volto a referir que aparecendo na Guiné em rendição individual, sendo Furriel Miliciano de Transmissões e pertencendo ao STM, fui incumbido de ir até Piche com a missão de insistir com o comando da Unidade que à data, início de Dezembro de 1970, lá estava sediada desde Agosto desse ano, o BCAV 2922, para providenciarem a rápida construção dum edifício próprio para alojar o Posto de Transmissões do STM que até ao momento funcionava numa viatura que seria necessária para outras actividades, em Bissau ou onde viesse a ser aplicada.
Vista geral do Quartel de Piche
Foto: © João Pereira da Costa (2012). Direitos reservados.
Quando lá cheguei o Batalhão estava a ser comandado interinamente pelo 2.º comandante, o Sr. Major Cav António Calixto, já que o 1.º comandante, o Sr. Tenente-Coronel Cav Chaves Guimarães (que me dizem já ter falecido), tinha sido ‘retirado’ para a ‘Metrópole’, como então se dizia. Uma ‘história cabeluda’ conforme as ‘vozes da caserna’, as quais também me alertaram para ter cuidado com o “Major Calixto”, que ‘era uma fera’. Foi exactamente ao Sr. Major António Calixto que me apresentei informando que iria tomar conta do Posto do STM, sem me alongar em mais detalhes ou outras indicações sobre a missão principal.
Por essa época cantavam-se algumas canções, fados, coisas assim, lá por Piche, nos convívios do pessoal e uma delas, rezava assim:
Foisimbora o Guimarãããães
foisimboooora o Guimarãããães
Foisimbooora pra Lisboa
Se levasse o Calixto e o Paulo
Se levasse o Calixto e o Paulo
Isso é que era coisa boa.
O tom era bastante lamentoso, choroso mesmo, e no início quando comecei a ouvir pensei que se tratava de uma homenagem a algum camarada que tivesse morrido (foi-se embora o Guimarães…) não sabia que Guimarães era o nome do Comandante ausente e inicialmente pensava que o ‘embora’ era mortal, mas depois o ‘ir para Lisboa’ levou-me a pensar que seria ferido. Quando a seguir vem as referências ao “Calixto” e ao “Paulo” é que me esclareceram tratarem-se dos Majores da Unidade, sendo o “Calixto” o 2.º comandante e que agora chefiava o Batalhão interinamente e o “Paulo”, o Sr. Major Mendes Paulo (também entretanto falecido), que era o Major de Operações.
Obviamente que se tratava daquele tipo de reacção do pessoal que ‘sente’ que as chefias é que determinam as situações e que ‘rebelando-se’ contra elas, o ‘mal’ fica exorcizado. Quem não se lembra daquela espécie de ‘grito de guerra’ que se ouvia muitas vezes de “tirem-me daqui!”, “estou farto deles’! a que se seguia muitas vezes também um coro de vozes a dizer “então corta-os”! Esses ‘eles’ eram todos os que hierarquicamente estavam acima da cadeia de comando de quem se sentia ‘encurralado’.
Ora bem, este tipo de indicações apenas dá para caracterizar muito superficialmente uma situação mas dá para entender que havia por li algum temor. Como pretendo apenas falar do Sr. Major Calixto vou ficar pelo que a ele diz respeito.
E quero fazê-lo porque acho que é devido e merecido.
Ainda recentemente (16 de Junho passado) estive em Estremoz no convívio organizado no RC3 para comemorar os 40 anos do regresso do referido BCAV 2922 e de que o nosso ‘tabanqueiro’ Francisco Palma fez relato para o Blogue, onde tive a oportunidade de conversar com o Sr. Major (hoje Coronel) António Calixto e lembrar-lhe alguns episódios que irei agora também relatar. E porque alguns dos que por lá estiveram ainda pareciam ter mais temor que respeito, quero aqui deixar o meu testemunho público do que me parece ser justo referir.
Perguntando eu porque diziam que “o Calixto” era ‘uma fera’ não me conseguiam adiantar nada que não fosse configurável com uma exigência de disciplina e rigor que o Major procurava incutir no pessoal. E, pergunto eu, isso não era fundamental para manter a ‘pele sem furos’? Tanto quanto sei acho que o Sr. Major não utilizou a pedagogia do ‘pontapé no cú’ já aqui revelada como método eficaz para fazer dum determinado pelotão, autodenominado “Foxtrote”, de que o nosso conhecido e amigo Zé Dinis tem vindo a relatar a história, uma força disciplinada, organizada, solidária e… intacta!
Diziam-me: “ah, ele às vezes passava por um e dizia – ‘ainda não apanhaste uma ‘porrada’? vamos ter que tratar disso!’ Francamente, não me parece grande coisa, e nunca fui testemunha de tal coisa.
Por isso, considero que a acção do Sr. Major Calixto foi, em geral, benéfica para o conjunto dos militares que integraram aquele aquartelamento e que a disciplina e o rigor nunca fizeram mal a ninguém. Bem pelo contrário. Se hoje houvesse mais atributos desses em muitos lugares de decisão, e para não politizar esta questão fico-me apenas pela referência a membros do Governo, andaríamos todos muito melhor. Se questionassem as posições políticas e as convicções do Sr. Major talvez se pudesse encontrar alguma base de entendimento, agora a disciplina, não! E com o Sr. Major Calixto aprendi alguma coisa, lições de vida, que partilho então seguidamente.
O primeiro ‘embate’
Na noite do primeiro dia em Piche fui para a messe comum, de sargentos e oficiais, sendo que os primeiros tinham duas 'mesas' em que a primeira delas era para a generalidade dos sargentos (furriéis incluídos, obviamente) e a segunda para os poucos que estavam de serviço ou tinham qualquer impedimento para estarem na primeira ‘mesa’ sendo que essa segunda ‘mesa’ coincidia com a dos oficiais. Como era novato na zona fui na primeira mesa acompanhar a maioria dos furriéis que tinham sido meus contemporâneos na recruta em Santarém, como por exemplo o nosso tertuliano Luís Borrega, fui conversando e ao mesmo tempo arquitectando o que pensava ser a melhor maneira de abordar o assunto da tal missão principal que me levava a Piche, tendo em conta o aviso que me tinham feito sobre a ‘fera’.
Antes de ir para lá tinha estado naturalmente com o pessoal que iria chefiar, inteirei-me da situação, de cada um deles, do trabalho, do Posto e do que se poderia saber sobre a localização da tal construção. Mostraram-me um local que se dizia estar reservado para tal, quase em frente à messe de oficiais, que já tinha a base escavada até cerca de 1 metro abaixo do solo e com enrocamento de 60 centímetros a toda a volta excepto num ponto que se dizia ir ser a entrada e cuja continuidade de construção tinha sido parada por falta de material ou por outras prioridades, que o meu pessoal não me soube dizer.
Munido dessa informação resolvi-me a ‘enfrentar a fera’ segundo o meu esquema mental, que me pareceu o mais adequado. Então fui-me deixando ficar na messe até perceber que o Major Calixto se preparava para se levantar. Antecipei-me, saí, e fiquei no alpendre como quem está (e estava de facto) a saborear a primeira noite de mato, a absorver cheiros, sons, e até cores. O Major saiu, viu-me e perguntou amavelmente que tal achava o Quartel, as instalações, o pessoal, etc.. É preciso que se diga que, tendo feito a recruta em Santarém, sabia bem como impressionar, pelo aprumo, pelo rigor e também por alguns ‘tiques’ próprios, os homens dessa Arma.
Aproveitando a ‘deixa’ das instalações fui directo ao assunto e disse-lhe:
- Meu Major, há pouco quando me apresentei, não houve oportunidade para lhe dar conta da totalidade da minha missão e que é de que venho incumbido pelo meu comando do STM de Bissau para lhe pedir que avance rapidamente para a construção do edifício para o Posto pois a viatura está a fazer muita falta para outras missões.
Até aqui, tudo bem, tudo normal. Mas a seguir joguei forte, conforme tinha pensado durante o jantar e disse:
- Tenho a indicação para fazer reportes semanais para Bissau a dar conta do avanço dos trabalhos. O meu Major pode-me dizer como estamos quanto a isso?
Estão a ver a situação, estão? Um fedelho de 22 anos, um Furriel, a colocar um Major, a “fera”, na situação de lhe ‘dar satisfações’ para depois as reportar para Bissau? Nessa ocasião o Sr Major ‘fechou’ a cara, olhou-me de-alto-a-baixo e disse secamente:
- Pode informar que não está nada feito!.
Ora bem, sabendo eu o que já sabia e que acima vos dei conta, disse para os meus botões: “ou já ganhaste isto ou vais ter um amigo à perna”.
No dia 1 de Abril de 1971 tive o grato gosto de enviar o último reporte: “posto concluído”! E concluo também que da premissa que acima coloquei não só ‘ganhei isto’ como também ganhei um amigo, e não foi ‘à perna’, pois o Sr. Major deve ter gostado (nunca falámos disso mas foi o que me deu a entender na despedida) da minha atitude assertiva.
Aprendizagem
Há sempre quem teorize sobre as benfeitorias da vida militar e há também quem a diabolize. Neste caso que vos vou relatar, passado naturalmente entre mim e o Sr. Major, fiquei com a lição do que se espera de quem tem por missão mandar e/ou comandar. Foi assim.
Numa bela manhã, já no ano de 1971 mas que não sei precisar bem quando, embora a minha sensibilidade aponte para o mês de Fevereiro, o Sr. Major precisou de mim e mandou-me chamar pouco depois do café da manhã.
Acontece que por esses dias o Posto estava desfalcado de pessoal porque dos cinco operadores que o compunham tinha um de férias e dois manifestamente inoperacionais com fortes ataques de paludismo. Nessas circunstâncias decidi que eu próprio faria o turno mais penoso (não era mau de todo no trabalho com a chave de morse), pelas dificuldades das condições de captação, das interferências atmosféricas, do esforço resultante da solidão, ou seja o nocturno, que podia ser bastante pacífico em termos de necessidades de comunicação ou a exigir grande tensão por actividade que, naqueles momentos se traduziam quase sempre por mensagens tipo “zulu”. Nas circunstâncias fiquei com a responsabilidade de assegurar a operacionalidade do Posto desde as 20 horas até às 8 da manhã, ficando cada um dos outros dois operadores com 6 horas cada qual.
Como podem calcular, depois de uma noite ‘directa’, cerca das 10 horas, mais coisa menos coisa, quando fui chamado, estava no começo do primeiro sono e devia estar completamente ‘pedrado’. Deste modo, entre a chamada do Sr. Major, irem-me acordar, reagir, levantar-me e colocar-me em condições apresentáveis, demorou algum tempo, mais do que seria esperado por quem me chamou. E disso mesmo fui confrontado pelo Sr. Major Calixto que, aparentemente incomodado pelo que pensaria tratar-se de algum acto de desobediência ou resistência ao comando, lá tratou de me verberar fortemente para a necessidade da rápida e pronta resposta às solicitações do Comando. Quando lhe relatei o que se passava e a razão pela qual não me tinha apresentado mais prontamente, pois tinha estado a trabalhar com a chave de morse toda a noite, o Sr. Major Calixto disse-me:
- Você não está aqui para trabalhar, está aqui para dirigir e disciplinar os seus homens, não se esqueça disto!
E não esqueci!
Foi uma lição. Fiquei a saber que fossem quais fossem as circunstâncias, não deveria haver misturas entre comandantes e comandados. Percebo o que me queria transmitir e não deixo de entender a sua relativa validade mas, como em quase tudo na vida, segundo a minha perspectiva, é preciso ter sempre em conta cada circunstância e agir a partir dessa análise.
Piche, Março de 1971 > Centeno, Hélder e Herlander
Foto: © Hélder Sousa (2012). Direitos reservados.
Reconhecimento
Uma outra passagem com alguns aspectos interessantes dos meus contactos com o Sr. Major Calixto passou-se numa noite quente (qual não era?) nos finais de Março ou princípio de Abril de 71.
Nessa noite, já depois da hora de jantar, estava com outros furriéis amigos, o Centeno, o Herlander e o Sobreira, a conversar recostados numa base cimentada que envolvia uma grande árvore que ficava no meio da parada de entrada, frente ao Comando. Como de costume, a conversa versava vários temas e entre eles também às vezes se questionava a justeza da nossa presença ali, naquelas circunstâncias, a natureza da guerra, o nosso futuro como cidadãos, como País, etc.
Onde nós estávamos predominava a escuridão mas na zona do Comando as luzes interiores deixavam ver quem lá estava, bem assim como a porta aberta trazia-nos alguns sons do que por lá se ia passando. E parece que a inversa também.
Em dada altura o Alferes do Pel Art, cujo nome agora não me ocorre, irrompe pelo Comando e ouvimos o Sr. Major perguntar-lhe se havia algum problema, se as zonas de tiro para a batida à zona que se fazia logo de manhã para a área da construção da estrada que estava a ser feita pela Tecnil já estavam determinadas e foi aí que ele disse que andava à procura do Furriel Centeno para ultimar esses preparativos mas que não o consegui encontrar. Sem mais delongas também ouvimos o Sr. Major dizer “procure ali debaixo da árvore que deve estar lá com o pessoal da Oposição”.
Como podem calcular a expressão utilizada e o conceito que lhe estava subjacente deixou o pessoal preocupado sobre que e quais consequências isso poderia ter. Na verdade, não se passou nada, pelo menos que saiba, e quanto a isso acho que se pode admitir que o Sr. Major Calixto resolveu utilizar alguma dose de ‘paternalismo’, afinal nós tínhamos 22, 23 anos e é próprio da juventude ser irreverente.
Despedida
O outro, e último, momento significativo dos meus contactos com o Sr. Major Calixto, que só voltei a ver agora no Encontro do BCAV 2922, ou sejam 41 anos depois, foi exactamente quando lhe fui apresentar as minhas despedidas no meu regresso a Bissau com a missão cumprida, o Posto construído, equipado, com um outro Furriel Valério a substituir-me.
Foi uma conversa a dois, com a disciplina militar pelo meio, é certo, mas de uma elegância e nobreza que ainda hoje me faz vir aqui a terreiro honrar o trabalho que o Major Calixto fez em Piche. Não sei qual foi o seu percurso após o 25 de Abril, da sua ‘conversão’ ou não à ‘nova situação’, isso não é relevante para esta análise, que procura falar do ano de 1971. Apenas me interessa deixar aqui o testemunho de que apesar de tudo o que atrás relatei, nesse dia, nessa hora, olhámo-nos nos olhos, agradeci-lhe a hospitalidade, as ‘lições de vida’ e também a sua compreensão e ele também me disse que tinha tido grato gosto em me ter como colaborador, que lamentava que me fosse embora e que me desejava felicidades e sucesso na vida futura, não deixando também de me recomendar ‘prudência’.
Francisco Palma, Hélder Sousa e Coronel Aantónio Calixto
Hélder Sousa, Coronel António Calixto e Francisco Palma
Major António Calixto e Luís Borrega
Fotos: © Eduardo T. Lopes (2012). Direitos reservados.
Conclusão
Fica assim concluída a reportagem de alguns episódios da minha passagem/estadia por Piche, na perspectiva de que senti a necessidade de dizer a alguns dos amigos que por lá foram integrados no BCAV 2922 que não partilho a ideia do Sr. Major Calixto ser ‘uma fera’, mas sim um disciplinador, e provavelmente aquele que, dadas as circunstâncias da saída precoce do 1.º Comandante com baixa à psiquiatria após 3 meses de mato, a Unidade necessitaria para assim manter níveis elevados de concentração.
Um abraço, e boas férias para aqueles de vocês que as tiverem!
Hélder Sousa
Fur. Mil. Transmissões TSF
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 18 de Setembro de 2011 > > Guiné 63/74 - P8790: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (11): A primeira missão - parte II