quarta-feira, 25 de julho de 2012

Guiné 63/74 - P10195: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (12): O senhor Major Calixto

1. Mensagem do nosso camarada Hélder Sousa (ex-Fur Mil de TRMS TSF, Piche e Bissau, 1970/72), com data de 22 de Julho de 2012:

Caros Editor e Co-Editores
Como sei que a 'produção' afrouxa, aqui me atrevo a enviar um texto que, se entenderem, podem publicar.
Trata-se de algo de que senti o impulso de escrever pois tudo o que aí relato é verdade, com um ou outro pormenor que possa estar menos exacto, e que no fundo é para fazer a minha justiça a alguém que lá e naquelas circunstâncias pode não ter sido (ainda hoje) bem compreendido.

As fotos que vos envio têm créditos que devem ser atribuídos, a mim mesmo na foto a preto e branco em que estou com os Furriéis Centeno e Herlander, a João Moura na foto do conjunto do Quartel e a Eduardo T. Lopes, da CART 3332, as restantes. Na foto de conjunto, que é pouco antes da minha chegada a Piche pode-se ver a Porta de Armas com a árvore que nessa altura ainda não tinha a base cimentada, vê-se o edifício identificado com o 11 como sendo o do Comando, atrás desse local pode-se ver o edifício com a viatura do STM, o edifício com o 4 era a messe de sargentos e oficiais e o espaço assinalado entre o 6 e o 14 foi onde se construiu o novo Posto do STM.

Saudações.
Hélder Sousa


HISTÓRIAS EM TEMPOS DE GUERRA (12)
 

 O SR. MAJOR CALIXTO

Os antecedentes

Já vos macei várias vezes com os meus relatos mas, para um melhor enquadramento desta história, volto a referir que aparecendo na Guiné em rendição individual, sendo Furriel Miliciano de Transmissões e pertencendo ao STM, fui incumbido de ir até Piche com a missão de insistir com o comando da Unidade que à data, início de Dezembro de 1970, lá estava sediada desde Agosto desse ano, o BCAV 2922, para providenciarem a rápida construção dum edifício próprio para alojar o Posto de Transmissões do STM que até ao momento funcionava numa viatura que seria necessária para outras actividades, em Bissau ou onde viesse a ser aplicada.

Vista geral do Quartel de Piche

Foto: © João Pereira da Costa (2012). Direitos reservados.

Quando lá cheguei o Batalhão estava a ser comandado interinamente pelo 2.º comandante, o Sr. Major Cav António Calixto, já que o 1.º comandante, o Sr. Tenente-Coronel Cav Chaves Guimarães (que me dizem já ter falecido), tinha sido ‘retirado’ para a ‘Metrópole’, como então se dizia. Uma ‘história cabeluda’ conforme as ‘vozes da caserna’, as quais também me alertaram para ter cuidado com o “Major Calixto”, que ‘era uma fera’. Foi exactamente ao Sr. Major António Calixto que me apresentei informando que iria tomar conta do Posto do STM, sem me alongar em mais detalhes ou outras indicações sobre a missão principal.

Por essa época cantavam-se algumas canções, fados, coisas assim, lá por Piche, nos convívios do pessoal e uma delas, rezava assim:

Foisimbora o Guimarãããães 
foisimboooora o Guimarãããães  
Foisimbooora pra Lisboa 
Se levasse o Calixto e o Paulo 
Se levasse o Calixto e o Paulo 
Isso é que era coisa boa.

O tom era bastante lamentoso, choroso mesmo, e no início quando comecei a ouvir pensei que se tratava de uma homenagem a algum camarada que tivesse morrido (foi-se embora o Guimarães…) não sabia que Guimarães era o nome do Comandante ausente e inicialmente pensava que o ‘embora’ era mortal, mas depois o ‘ir para Lisboa’ levou-me a pensar que seria ferido. Quando a seguir vem as referências ao “Calixto” e ao “Paulo” é que me esclareceram tratarem-se dos Majores da Unidade, sendo o “Calixto” o 2.º comandante e que agora chefiava o Batalhão interinamente e o “Paulo”, o Sr. Major Mendes Paulo (também entretanto falecido), que era o Major de Operações.

Obviamente que se tratava daquele tipo de reacção do pessoal que ‘sente’ que as chefias é que determinam as situações e que ‘rebelando-se’ contra elas, o ‘mal’ fica exorcizado. Quem não se lembra daquela espécie de ‘grito de guerra’ que se ouvia muitas vezes de “tirem-me daqui!”, “estou farto deles’! a que se seguia muitas vezes também um coro de vozes a dizer “então corta-os”! Esses ‘eles’ eram todos os que hierarquicamente estavam acima da cadeia de comando de quem se sentia ‘encurralado’.

Ora bem, este tipo de indicações apenas dá para caracterizar muito superficialmente uma situação mas dá para entender que havia por li algum temor. Como pretendo apenas falar do Sr. Major Calixto vou ficar pelo que a ele diz respeito.

E quero fazê-lo porque acho que é devido e merecido.

Ainda recentemente (16 de Junho passado) estive em Estremoz no convívio organizado no RC3 para comemorar os 40 anos do regresso do referido BCAV 2922 e de que o nosso ‘tabanqueiro’ Francisco Palma fez relato para o Blogue, onde tive a oportunidade de conversar com o Sr. Major (hoje Coronel) António Calixto e lembrar-lhe alguns episódios que irei agora também relatar. E porque alguns dos que por lá estiveram ainda pareciam ter mais temor que respeito, quero aqui deixar o meu testemunho público do que me parece ser justo referir.

Perguntando eu porque diziam que “o Calixto” era ‘uma fera’ não me conseguiam adiantar nada que não fosse configurável com uma exigência de disciplina e rigor que o Major procurava incutir no pessoal. E, pergunto eu, isso não era fundamental para manter a ‘pele sem furos’? Tanto quanto sei acho que o Sr. Major não utilizou a pedagogia do ‘pontapé no cú’ já aqui revelada como método eficaz para fazer dum determinado pelotão, autodenominado “Foxtrote”, de que o nosso conhecido e amigo Zé Dinis tem vindo a relatar a história, uma força disciplinada, organizada, solidária e… intacta!

Diziam-me: “ah, ele às vezes passava por um e dizia – ‘ainda não apanhaste uma ‘porrada’? vamos ter que tratar disso!’ Francamente, não me parece grande coisa, e nunca fui testemunha de tal coisa.

Por isso, considero que a acção do Sr. Major Calixto foi, em geral, benéfica para o conjunto dos militares que integraram aquele aquartelamento e que a disciplina e o rigor nunca fizeram mal a ninguém. Bem pelo contrário. Se hoje houvesse mais atributos desses em muitos lugares de decisão, e para não politizar esta questão fico-me apenas pela referência a membros do Governo, andaríamos todos muito melhor. Se questionassem as posições políticas e as convicções do Sr. Major talvez se pudesse encontrar alguma base de entendimento, agora a disciplina, não! E com o Sr. Major Calixto aprendi alguma coisa, lições de vida, que partilho então seguidamente.


O primeiro ‘embate’

Na noite do primeiro dia em Piche fui para a messe comum, de sargentos e oficiais, sendo que os primeiros tinham duas 'mesas' em que a primeira delas era para a generalidade dos sargentos (furriéis incluídos, obviamente) e a segunda para os poucos que estavam de serviço ou tinham qualquer impedimento para estarem na primeira ‘mesa’ sendo que essa segunda ‘mesa’ coincidia com a dos oficiais. Como era novato na zona fui na primeira mesa acompanhar a maioria dos furriéis que tinham sido meus contemporâneos na recruta em Santarém, como por exemplo o nosso tertuliano Luís Borrega, fui conversando e ao mesmo tempo arquitectando o que pensava ser a melhor maneira de abordar o assunto da tal missão principal que me levava a Piche, tendo em conta o aviso que me tinham feito sobre a ‘fera’.

Antes de ir para lá tinha estado naturalmente com o pessoal que iria chefiar, inteirei-me da situação, de cada um deles, do trabalho, do Posto e do que se poderia saber sobre a localização da tal construção. Mostraram-me um local que se dizia estar reservado para tal, quase em frente à messe de oficiais, que já tinha a base escavada até cerca de 1 metro abaixo do solo e com enrocamento de 60 centímetros a toda a volta excepto num ponto que se dizia ir ser a entrada e cuja continuidade de construção tinha sido parada por falta de material ou por outras prioridades, que o meu pessoal não me soube dizer.

Munido dessa informação resolvi-me a ‘enfrentar a fera’ segundo o meu esquema mental, que me pareceu o mais adequado. Então fui-me deixando ficar na messe até perceber que o Major Calixto se preparava para se levantar. Antecipei-me, saí, e fiquei no alpendre como quem está (e estava de facto) a saborear a primeira noite de mato, a absorver cheiros, sons, e até cores. O Major saiu, viu-me e perguntou amavelmente que tal achava o Quartel, as instalações, o pessoal, etc.. É preciso que se diga que, tendo feito a recruta em Santarém, sabia bem como impressionar, pelo aprumo, pelo rigor e também por alguns ‘tiques’ próprios, os homens dessa Arma.

Aproveitando a ‘deixa’ das instalações fui directo ao assunto e disse-lhe:  
- Meu Major, há pouco quando me apresentei, não houve oportunidade para lhe dar conta da totalidade da minha missão e que é de que venho incumbido pelo meu comando do STM de Bissau para lhe pedir que avance rapidamente para a construção do edifício para o Posto pois a viatura está a fazer muita falta para outras missões.

Até aqui, tudo bem, tudo normal. Mas a seguir joguei forte, conforme tinha pensado durante o jantar e disse:
- Tenho a indicação para fazer reportes semanais para Bissau a dar conta do avanço dos trabalhos. O meu Major pode-me dizer como estamos quanto a isso?

Estão a ver a situação, estão? Um fedelho de 22 anos, um Furriel, a colocar um Major, a “fera”, na situação de lhe ‘dar satisfações’ para depois as reportar para Bissau? Nessa ocasião o Sr Major ‘fechou’ a cara, olhou-me de-alto-a-baixo e disse secamente:
- Pode informar que não está nada feito!.

Ora bem, sabendo eu o que já sabia e que acima vos dei conta, disse para os meus botões: “ou já ganhaste isto ou vais ter um amigo à perna”.

No dia 1 de Abril de 1971 tive o grato gosto de enviar o último reporte: “posto concluído”! E concluo também que da premissa que acima coloquei não só ‘ganhei isto’ como também ganhei um amigo, e não foi ‘à perna’, pois o Sr. Major deve ter gostado (nunca falámos disso mas foi o que me deu a entender na despedida) da minha atitude assertiva.


Aprendizagem

Há sempre quem teorize sobre as benfeitorias da vida militar e há também quem a diabolize. Neste caso que vos vou relatar, passado naturalmente entre mim e o Sr. Major, fiquei com a lição do que se espera de quem tem por missão mandar e/ou comandar. Foi assim.

Numa bela manhã, já no ano de 1971 mas que não sei precisar bem quando, embora a minha sensibilidade aponte para o mês de Fevereiro, o Sr. Major precisou de mim e mandou-me chamar pouco depois do café da manhã.

Acontece que por esses dias o Posto estava desfalcado de pessoal porque dos cinco operadores que o compunham tinha um de férias e dois manifestamente inoperacionais com fortes ataques de paludismo. Nessas circunstâncias decidi que eu próprio faria o turno mais penoso (não era mau de todo no trabalho com a chave de morse), pelas dificuldades das condições de captação, das interferências atmosféricas, do esforço resultante da solidão, ou seja o nocturno, que podia ser bastante pacífico em termos de necessidades de comunicação ou a exigir grande tensão por actividade que, naqueles momentos se traduziam quase sempre por mensagens tipo “zulu”. Nas circunstâncias fiquei com a responsabilidade de assegurar a operacionalidade do Posto desde as 20 horas até às 8 da manhã, ficando cada um dos outros dois operadores com 6 horas cada qual.

Como podem calcular, depois de uma noite ‘directa’, cerca das 10 horas, mais coisa menos coisa, quando fui chamado, estava no começo do primeiro sono e devia estar completamente ‘pedrado’. Deste modo, entre a chamada do Sr. Major, irem-me acordar, reagir, levantar-me e colocar-me em condições apresentáveis, demorou algum tempo, mais do que seria esperado por quem me chamou. E disso mesmo fui confrontado pelo Sr. Major Calixto que, aparentemente incomodado pelo que pensaria tratar-se de algum acto de desobediência ou resistência ao comando, lá tratou de me verberar fortemente para a necessidade da rápida e pronta resposta às solicitações do Comando. Quando lhe relatei o que se passava e a razão pela qual não me tinha apresentado mais prontamente, pois tinha estado a trabalhar com a chave de morse toda a noite, o Sr. Major Calixto disse-me:
- Você não está aqui para trabalhar, está aqui para dirigir e disciplinar os seus homens, não se esqueça disto!

E não esqueci!

Foi uma lição. Fiquei a saber que fossem quais fossem as circunstâncias, não deveria haver misturas entre comandantes e comandados. Percebo o que me queria transmitir e não deixo de entender a sua relativa validade mas, como em quase tudo na vida, segundo a minha perspectiva, é preciso ter sempre em conta cada circunstância e agir a partir dessa análise.


Piche, Março de 1971 > Centeno, Hélder e Herlander

Foto: © Hélder Sousa (2012). Direitos reservados.


Reconhecimento

Uma outra passagem com alguns aspectos interessantes dos meus contactos com o Sr. Major Calixto passou-se numa noite quente (qual não era?) nos finais de Março ou princípio de Abril de 71.

Nessa noite, já depois da hora de jantar, estava com outros furriéis amigos, o Centeno, o Herlander e o Sobreira, a conversar recostados numa base cimentada que envolvia uma grande árvore que ficava no meio da parada de entrada, frente ao Comando. Como de costume, a conversa versava vários temas e entre eles também às vezes se questionava a justeza da nossa presença ali, naquelas circunstâncias, a natureza da guerra, o nosso futuro como cidadãos, como País, etc.

Onde nós estávamos predominava a escuridão mas na zona do Comando as luzes interiores deixavam ver quem lá estava, bem assim como a porta aberta trazia-nos alguns sons do que por lá se ia passando. E parece que a inversa também.

Em dada altura o Alferes do Pel Art, cujo nome agora não me ocorre, irrompe pelo Comando e ouvimos o Sr. Major perguntar-lhe se havia algum problema, se as zonas de tiro para a batida à zona que se fazia logo de manhã para a área da construção da estrada que estava a ser feita pela Tecnil já estavam determinadas e foi aí que ele disse que andava à procura do Furriel Centeno para ultimar esses preparativos mas que não o consegui encontrar. Sem mais delongas também ouvimos o Sr. Major dizer “procure ali debaixo da árvore que deve estar lá com o pessoal da Oposição”.

Como podem calcular a expressão utilizada e o conceito que lhe estava subjacente deixou o pessoal preocupado sobre que e quais consequências isso poderia ter. Na verdade, não se passou nada, pelo menos que saiba, e quanto a isso acho que se pode admitir que o Sr. Major Calixto resolveu utilizar alguma dose de ‘paternalismo’, afinal nós tínhamos 22, 23 anos e é próprio da juventude ser irreverente.


Despedida

O outro, e último, momento significativo dos meus contactos com o Sr. Major Calixto, que só voltei a ver agora no Encontro do BCAV 2922, ou sejam 41 anos depois, foi exactamente quando lhe fui apresentar as minhas despedidas no meu regresso a Bissau com a missão cumprida, o Posto construído, equipado, com um outro Furriel Valério a substituir-me.

Foi uma conversa a dois, com a disciplina militar pelo meio, é certo, mas de uma elegância e nobreza que ainda hoje me faz vir aqui a terreiro honrar o trabalho que o Major Calixto fez em Piche. Não sei qual foi o seu percurso após o 25 de Abril, da sua ‘conversão’ ou não à ‘nova situação’, isso não é relevante para esta análise, que procura falar do ano de 1971. Apenas me interessa deixar aqui o testemunho de que apesar de tudo o que atrás relatei, nesse dia, nessa hora, olhámo-nos nos olhos, agradeci-lhe a hospitalidade, as ‘lições de vida’ e também a sua compreensão e ele também me disse que tinha tido grato gosto em me ter como colaborador, que lamentava que me fosse embora e que me desejava felicidades e sucesso na vida futura, não deixando também de me recomendar ‘prudência’.


Francisco Palma, Hélder Sousa e Coronel Aantónio Calixto

Hélder Sousa, Coronel António Calixto e Francisco Palma

Major António Calixto e Luís Borrega

Fotos: © Eduardo T. Lopes (2012). Direitos reservados.


Conclusão

Fica assim concluída a reportagem de alguns episódios da minha passagem/estadia por Piche, na perspectiva de que senti a necessidade de dizer a alguns dos amigos que por lá foram integrados no BCAV 2922 que não partilho a ideia do Sr. Major Calixto ser ‘uma fera’, mas sim um disciplinador, e provavelmente aquele que, dadas as circunstâncias da saída precoce do 1.º Comandante com baixa à psiquiatria após 3 meses de mato, a Unidade necessitaria para assim manter níveis elevados de concentração.

Um abraço, e boas férias para aqueles de vocês que as tiverem!
Hélder Sousa
Fur. Mil. Transmissões TSF
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 18 de Setembro de 2011 > > Guiné 63/74 - P8790: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (11): A primeira missão - parte II

Guiné 63/74 - P10194: Notas de leitura (384): "A Viagem do Tangomau, Memórias da Guerra Colonial que não se apagam" (José Brás)

1. Nota de leitura do nosso camarada José Brás (ex-Fur Mil, CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68) a propósito do último livro de Mário Beja Santos, "A Viagem do Tangomau, Memórias da Guerra Colonial que não se apagam":


Acabei de participar na visita que o senhor General te fez em Missirá(1).

E se digo participar em vez de assistir, é apenas porque também lá estava quando descobriste os dois pontinhos que haviam de resolver-se na figura de helis, cavalos de Tróia que haveriam de abrir-se para despejar o homem e essa gente/sombra do do monóculo decorativo.

Aliás, cortava "cibo" convosco porque os cibos que vos davam jeito no reforço dos abrigos de Missirá, eram os mesmos cibos que eu cortava a Sul de Medjo, muito perto de Quebo, uma Tabanca abandonada junto a um dos braços em que o Rio Cacine capricha a Norte, ainda antes de caprichar a Gadamael Porto, mesmíssimos cibos que também nos faltavam em Medjo para os mesmos fins.

Saindo um pouco da tua lavra, meto aqui enxada para de dizer do caricato que foi, nessa tarefa, ter eu atravessado uma água não muito funda e dessa água ter saído cravadinho de sanguessugas, perdendo algum tempo de cigarro aceso numa mão e pauzinho fino na outra, para me livrar das bichas, uma a uma.

Voltando a Missirá (adiantando que outra Missirá tínhamos na estrada Aldeia Formosa (outro Quebo-Buba), Missirá, esta, abandonada também e lugar pouco abençoado para tropa branca, voltando a Missirá, digo, ao teu e não ao do Sul, também eu me espantei com os maus modos do homem, retrato exacto nas perguntas e nas questões que te colocou, desse militar antigo, feito na Academia deles, cheio de empáfia e de mando, mestres duma infalibilidade alejada do real da guerra em que andávamos e que por mais comissões feitas não entenderiam nunca, provando-se dito não sei de quem que eu li um dia "a guerra é coisa demasiado complexa para ser dirigida por militares".

Acabara há pouco de viver a tua revolta contra as parvoíces dessas operações volumosas em que te meteram para atacar Madina, porque também em Medjo se meteram um dia duas Companhias a dormir pelo chão para atacarem Salancaur.

Salancaur ficava a tão curta distância de Medjo que quase os ouvíamos falar na bolanha de arroz que cultivavam com esmero. Por isso, Bissau imaginou que saindo de madrugada, atacaríamos ao nascer do Sol e quase almoçaríamos de novo em Medjo. Afinal, três dias não deram para vencer aquela mata densa, aberta à faca para se poder avançar fora da picada. A fome e a sede começaram a fazer efeito e as evacuações por esgotamento, fome e sede. Acabaram com o plano de Bissau.

Sei que estranharás que afirme lá estar contigo mas confirmo isso a pés juntos, porque a ler-te, sinto o cheiro do capim podre e aquele bafo que dele sai a cada passo; sinto as picadas dos mosquitos que nos atacam nos olhos, no nariz, nos ouvidos e na boca; sinto a magestade daquela mata sub-tropical que nos esmaga e desorienta o passo e a vontade; sinto o sabor do sangue dos amigos estraçalhados pelas minas e basucadas.

E se sinto tudo isso, e muito mais que a insipiência da minha palavra não explica e esta mensagem curta não justifica explicação, apenas porque o dizes tão bem que me repões de pés e de alma no Sul da Guiné e num tempo que talvez fosse melhor esquecer.

Continuarei a caminhar nos meus trilhos de Guileje pela palavra que me falta ainda ler-te, e nem sei se hei-de agradecer-te, se lamentar o tempo e o modo que reviverei recuperando-me aqui como se fosse lá.

Obrigado, Mário
José Brás


2. Nota do editor:

(1) - Da página 228 de "A Viagem do Tangomau":

[...] Pois bem, é no âmbito de todo este processo de crescimento, de inclusão no meio, que num princípio de tarde, estava o Tangomau nos palmares de Cancumba a acompanhar os derrubes de duas palmeiras para extrair rachas de cibe para reforço de dois abrigos, apareceram uns pontos a crescer no céu, ouviu-se o crescente zunir das pás dos helicópteros (eram dois), depois fizeram dança na pista improvisada em frente à porta de armas, lá se foi, prestes, ao encontro dos ilustres visitantes, era o comandante-chefe e versátil comitiva, incluía o comandante de Bafatá. [...]

Título: "A Viagem do Tangomau, Memórias da Guerra Colonial que não se apagam"
Autor: Mário Beja Santos
Edição: Temas e Debates/Círculo de Leitores
Páginas: 518
Imagem da capa: "Recordações de África", aguarela de José Antunes, 2010
1.ª edição: Junho de 2012
ISBN (temas e Debates): 978-989-644-198-2
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 11 de Fevereiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9471: Blogoterapia (198): À Tabanca Grande, em primeiro lugar e a todos os que se lembraram de mim e também aos outros que todos os dias se abraçam no blogue (José Brás)

Vd. último poste da série de 23 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10184: Notas de leitura (383): "No Percurso das Guerras Coloniais 1961-1969", de Mário Moutinho de Pádua (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P10193: As Nossas Tropas - Quem foi quem (9): Marcelino da Mata, 1º cabo, Gr Cmds Diabólicos (1965/66) (Virgínio Briote)

 

Guiné > Bissau > Brá > Setembro de 1965 > Grupo Comandos Diabólicos, completo,  em frente à camarata do Grupo. Ao centro, na 1ª fila, o 6º a contar da esquera, o comandante do grupo, alf mil Virgínio Briote. Na ponta direita, de pé, o srgt mil Mário Valente. Na 2ª fila, de fé, na extrema direita, o 1º cabo Marcelino da Mata.




Guiné > Bissau > Brá > Setembro de 1965 > "Foto de finais de Set 65, tirada em Brá, quando começaram os "ensaios" com as boinas vermelhas... Da esquerda para a direita: Marcelino da Mata, Azevedo, Virgínio Briote , Black e Valente"...


Duas das 200 fotos que o V.B. tem em arquivo e que partilha connosco e os demais camaradas do blogue. É um camarada e um amigo sempre atento e solidário, amigo do seu amigo, camarada do seu camarada... Está a gozar as suas merecidas, merecidíssimas, férias de 365 dias por ano (ele e a sua Irene, professora do ensino secundário)... O VB faz questão de nos dizer, por escrito, que "todas as fotos que eu enviar fazem parte do espólio do Blogue Luís Camaradas & Camaradas da Guiné, podendo delas ser feito o uso que os Editores entenderem. Tenho ainda cerca de 200 para enviar.".

Fotos (e legendas): © Virgínio Briote (2012). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Resposta do Virgínio Briote [, foto à direita], nosso co-editor, jubilado, ao
nosso pedido formulado no poste P10187:
Marcelino da Mata ingressou nos Cmds [, Comandos,] na altura da Op Tridente (Ilha do Como, Jan/Mar64), tendo feito parte do grupo de Cmds experimental (constituído por milicianos -3 alferes e vários furriéis-, alguns cabos e soldados recrutados no BCav 490 e ainda dois ou três voluntários naturais da Guiné, Marcelino da Mata e Adulai Jaló, morto anos depois em Morés quando fazia parte da CCmds do Ten Zacarias Saiegh, do BCmds Guiné, comandado por Almeida  Bruno).

No fim do 1º curso de Cmds, administrado em Brá (com o apoio de elementos dos Cmds de Angola, supervisionados pelo então ten mil Jaime Abreu Cardoso e apoiados operacionalmente pelo Gr Cmds Gatos, do alf mill Valente- morto em combate anos depois em Moçambique), Marcelino da Mata fez parte do Gr Cmds Panteras, que se manteve operacional entre fins de Set 64 e meados de 1965.

Em Setembro de 1965, o então 1º cabo Marcelino da Mata ingressou no Gr Cmds Diabólicos e manteve-se em actividade até princípios de 1966, altura em que regressou à unidade de origem, a CCS do QG [Quartel General].

Nesta foto, o 1º cabo Marcelino da Mata está em 2º plano. É o 1º da direita, atrás do sargento mil Mário Valente (em 2ª comissão na Guiné, em grande parte devido ao casamento com uma senhora libanesa,  filha de um comerciante com estabelecimentos em Bigene e Barro e familiar de Francisco Fadul, futuro 1º ministro da RGBissau).

O Marcelino, na altura, usava uma pequena pêra e já então usava óculos. O outro natural da Guiné que, na altura,  fazia parte do grupo, era o Soldado Bacar Mané, sentado na 1ª fila.




2. Em poste publicado, há mais de cinco anos e meio atrás, o Virgínio Briote descreveu assim o 1º cabo Marcelino da Mata, membro do seu Gr Cmds, Diabólicos:

(...) "Irene : Gostei de ler a sua mensagem. Conheci o seu Pai, Marcelino da Mata, então 1º cabo do Exército, em Maio ou Junho de 1965. Vi-o em Brá, um aquartelamento do Exército Português a meia dúzia de kms de Bissau na estrada para o aeroporto de Bissalanca.

"Era um jovem com bom aspecto, ar de reguila, aspecto enérgico. Ele tinha feito a opção pelo Estado Português e como militar teve que combater o PAIGC, o Partido que então encabeçava a luta armada contra o colonialismo português. Foi a decisão que tomou, tal como milhares de Guineenses e, por isso, passou a ser um inimigo do PAIGC.

"Fez parte dos primeiros comandos que existiram na Guiné. Participou em inúmeras batalhas em praticamente todo o território. Foi sempre um militar muito valente e, por isso, várias vezes condecorado, desde a Cruz de Guerra (várias) até à Torre e Espada (a mais alta condecoração nacional e só atribuída em casos excepcionais).

"Depois houve o 25 de Abril, ele estava na Guiné, a independência veio logo a seguir em Setembro de 1974 e o Marcelino, tal como vários militares que se distinguiram na luta ficou com a vida em perigo. Muitos dos que lá ficaram foram fuzilados e ele saiu da Guiné e fez muito bem porque se lá tivesse ficado já não era vivo há muito.
"Penso que hoje, com tanto tempo passado, se ele regressasse ao chão que o viu nascer, nada lhe aconteceria. Mas a Irene sabe, as previsões só são isso. Nunca se sabe o que poderia suceder.

"Quanto a essa história do forno, pode ser só isso, uma história apenas. E pronto Irene, podíamos estar aqui a falar do seu pai o dia todo e se calhar ainda nos esqueciamos de muita coisa". (VB)

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Nota do editor:

Último poste da série > 14 de fevereiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9483: As Nossas Tropas - Quem foi quem (8): António Sousa Teles (1922-2006), ten cor art, comandante do BCAÇ 4514/72 (Cadique, 1973/74)

Guiné 63/74 - P10192: Fauna & Flora (30): Cobra de papo, de veneno altamente tóxico, hemorrágico, comparável ao da cascavel da América..


Cobra-de-papo - Dispholidus typus Smith (Família Colubridae - Opisthoglypha)


Imagem à direita: Aguarela do pintor português Silva Lino (1911-1984)

Mais uma serpente que existia na Guiné, no nosso tempo, e que foi descrita pelo naturalista português  Fernando Frade e a sua equipa (*):



(i) Serpente robusta e alongada (comprimento: até 175 cm), coberta de escamas carenadas, com a cabeça relativamente curta e a cauda comprida;

(ii) Olhos grandes, com pupila redonda; coloração variando desde o verde ao castanho e ao negro, por cima, e do cinzento ao amarelo, por baixo, com as escamas rebordadas de preto;

(iii) Por vezes confundível com outra serpente verde, também arborícola mas inofensiva: Philothamnus irregularis.[, que também existe na Guiné]: 


(iv) Dentadura opistogllfodonte, constituída por dentes sulcados, situados na parte anterior do maxilar e precedidos de dentes normais;

(v) Sinais da mordedura: três pares de perfurações dilatadas, inoculadoras, precedidas de perfurações menores, o conjunto envolvendo duas séries de picadas finas que correspondem aos dentes palatino-pterlgóldes;

(vi) Veneno altamente tóxico, hemorrágico, comparável ao das «cobras cascavel» da América;

(vii) Costumes: Espécie arborícola, muito ágil e tímida; quando excitada insufla de ar os brônquios e os pulmões, aumentando consideràvelmente de volume, por vezes, em forma de papo, a parte anterior do corpo, reacção que deve servir de aviso, antes da agressão;

(viii) Reprodução de Outubro a Dezembro, por oviparidade (uma a duas dúzias de ovos).

(ix) Alimento: Principalmente camaleões, outros sáurios, aves e ovos, e mesmo indivíduos da sua própria espécie;

(x) Distribuição geográfica: África Tropical e Meridional; na África lusófona,  tem sido encontrada na Guiné, em Angola e Moçambique.

Fonte: Adapt. do portal Triplov > Serpentes do ultramar português

Referência bibliográfica: FRADE, Fernando - Serpentes do Ultramar Português. Garcia de Orta. Lisboa; 1955; III (4), pp. 547-553. Em colab. com Sara Manaças. Legendas e notas de aguarelas de Silva Lino.

[Reproduzido com a devida vénia]

 Vd. Google > Imagens > Dispholidus typus Smith (em inglês, também conhecida como "boomslang"; 

não parece ser uma espécie ameaçada)

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Nota do editor:

Ver poste anterior da série > 18 de julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10166: Fauna & Flora (28): A Mamba-verde, particulamente temida pelos recolectores de chabéu ...



terça-feira, 24 de julho de 2012

Guiné 63/74 - P10191: Memória dos lugares (189): Jolmete, quotidiano da tabanca e aquartelamento (Manuel Carvalho)

1. Mensagem do nosso camarada Manuel Carvalho (ex-Fur Mil Armas Pesadas Inf, CCAÇ 2366/BCAÇ 2845, Jolmete, 1968/70), com data de 22 de Julho de 2012:

Caro amigo Vinhal
Ao ler as estórias e ver as fotos do Augusto Santos de Jolmete do ano de 72, lembrei que tenho fotos de Jolmete do inicio de 68 quando nós CCaç 2366 lá chegamos, sei que pelo menos o Augusto Santos o Manuel Resende e o Firmino vão gostar de ver algumas diferenças.
Vou enviar também algumas fotos da famosa piscina de Quinhamel, da qual o meu irmão falou em comentário e na qual só estive uma vez quando tirei estas fotos.
O Alf. artilheiro João Martins num post que publicou também fala numa Piscina em Quinhamel por alturas de 69/70 que julgo que só pode ser esta. Coisa que não faltava na Guiné eram piscinas como a de Quinhamel, era um fartar pelo menos para os operacionais. A grande diferença (e era mesmo muito grande) era que em Quinhamel entravamos sem arma e nas outras era com tudo.
Como podem ver em Jolmete até bailes fazíamos foi a recepção aos periquitos da 2585 a dançar da esq. um fur. das viaturas, o Crista de costas e eu.
A minha lavadeira já me tinha posto os palitos.

Caro amigo Vinhal faz disto o que muito bem entenderes, no sentido de melhorar o texto, tudo e desde já o meu muito obrigado.

Um grande abraço e muita saúde.
Manuel Carvalho



Jolmete > Com o Dandy e o Martins na chegada da operação em que apanhamos o RPG2 e três armas.

Jolmete > Baile de recepção aos periquitos da 2585. A dançar, a partir da esquerda: um furriel mecânico, o Crista de costas e eu. A minha lavadeira já me tinha posto os palitos.







Jolmete > Aspectos do aquartelamento e tabanca

Jolmete > Com a lavadeira Mélinha

Fotos: © Manuel Carvalho (2012) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 17 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10161: Memória dos lugares (188): Lisboa, Belém, os vivos e os mortos, o passado e o futuro... (Luís Graça)

Guiné 63/74 - P10190: Do Ninho D'Águia até África (2): Montando o Centro de Cripto (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripo, Cmd Agrup 16, Mansoa, 1964/66)

1. Continuação da publicação de "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Op. Cripto, Cmd Agrup 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177.


Do Ninho D'Águia até África (2)

Montando o Centro de Cripto em Mansoa

O Unimog, pois é assim que chamam à viatura onde viaja o Cifra, que vai sentado num dos bancos corridos que foram colocados em cima desta viatura, que é uma espécie de uma camioneta pequena, com as rodas muito altas, e toda aberta, incluindo a cabine.

O Cifra, leva vestido um camuflado novo. Na cabeça, leva um boné, também de pano camuflado, a que chamam “quico”, é uma espécie de boné com duas palas, uma na frente e outra atrás, mas com dois bicos, o que o Cifra, nunca compreendeu porquê, estes dois bicos. Devia levar um capacete de ferro, mas durante os dois anos em que esteve na província, nunca lho distribuíram, e o Cifra, também não o pediu.

Leva a G3 entre as pernas, segura com ambas as mãos, com o carregador cheio e pronta a disparar, um cinto com dois carregadores extras. Um pouco à frente, na viatura, vai um pequeno monte de malas e sacos, pertencentes aos militares que viajam com o Cifra. São os seus haveres.

Saíram do acampamento, já passava das nove horas da manhã.
Iam a caminho duma vila no interior da província, onde iriam ser colocados. A estrada era estreita, mas quase toda de alcatrão, e em alguns locais, estava coberta com alguma água.

O Cifra ia com algum receio, pois era voz corrente, de que depois de saírem da capital da província, não se podia andar um metro, que havia logo, um guerrilheiro, “armado até aos dentes”, coberto de armas e munições, com catana e tudo, atrás de cada árvore ou arbusto, que encontrassem pelo caminho!

Enfim, sempre que algum colega falava mais alto, ou sempre que ouvia algum barulho fora do normal, o Cifra ficava quase em pânico, e agarrava-se à G3, com quanta força tinha!.

Começa a chover. Tanto ele como os outros militares ficaram encharcados, diziam que era o começo da época das chuvas. O Cifra não sabia o que era a época das chuvas, só sabia que estava molhado até aos ossos, mas mesmo assim não tirava os olhos da sua mala e do saco, principalmente do saco, onde ia a sua roupa, parte dela suja e cheia de lama, usada no acampamento, onde tinha estado por três semanas, e onde não havia condições nem meios para a lavar.

E o Cifra, para ver se perdia um pouco de receio, que o atormentava, começa a falar sozinho:
- Agora, com esta chuva é que a roupa suja de lama, que vai dentro do saco, vai ficar numa lástima, e é capaz de contaminar e sujar toda a restante, e para mais com aquela goma, que a ganga de que é feita tem, quando é nova!

Com estes pensamentos, chegaram ao local de destino.

O furriel miliciano diz, com a água da chuva a escorrer-lhe pela face e a entrar pela boca:
- Tirem as vossas coisas, e acomodem-se o melhor que poderem naquele local, onde há algumas paredes, e o resto do telhado.

Quando o furriel miliciano, se referia às paredes e ao resto de telhado, estava a referir-se às ruínas do que diziam ter sido um convento de padres de uma ordem religiosa francesa.

E continuando, a falar, diz:
- E tu, oh Cifra, quando puderes vem buscar esta mala e este saco, que são meus, e ajeita-me lá um espaço, ao pé de vocês, pois eu ainda tenho muito que fazer.

Cada um procurou, o melhor possível, acomodar-se, e logo se improvisaram camas no chão, com o saco molhado, a servir de travesseiro. Todos barafustavam, mas iam arrumando as suas coisas.

Lá mais para o final do dia, o Setúbal, que foi baptizado com este nome, porque o principal era Jeremias, e não dava muito jeito a pronunciar, diz para o Cifra:
- Tenho fome!

E dito isto, começa a subir para uma enorme árvore, o que mais tarde, souberam que era uma “Mangueira”, e começa lá de cima, a abanar os ramos de onde caíram bastantes “mangos”, que era uma fruta deliciosa!

O furriel miliciano, vendo isto, grita-lhe:
- Aí em cima, estás mesmo a jeito, para levar um tiro dos guerrilheiros! Vem já para o chão, e vem com cuidado, porque podes cair, e se não morres do tiro, morres da queda!

Alguns, riram-se, outros ficaram ainda com mais receio, como foi o caso do Cifra.
A partir daí aquela árvore, passou a chamar-se a “Mangueira do Setúbal”!

Havia, mais ou menos no centro das ruínas, uma fonte, com uma bica que deitava alguma água, o Cifra perguntou a um militar, que já se encontrava há algum tempo, naquela área:
- Esta água, é boa para beber? - Ao que ele respondeu, tirando um cigarro da boca, mostrando uns restos de dentes quase pretos. Era um homem novo, com cara de velho:
- Eu não sei, eu não sou de cá!

E o Cifra pensou, que não fazia muita diferença beber ou não, pois se bebesse, era capaz de morrer, mas se não bebesse, também era capaz de morrer, mas à sede!

Nesta altura, passa o capitão, que era o comandante da companhia, que já lá se encontrava, e o militar, depois do capitão passar, diz, mostrando de novo o resto dos dentes quase pretos:
- Tem cuidado com este gajo, pois ele parte tudo à bofetada! Tanto faz ser soldados como furriéis!

Com estas boas referências, o Cifra, fica colocado em possível cenário de guerra, no interior da província.

Faz parte do comando de uma unidade militar, que irá controlar todos os movimentos de tropas na região. Pelo menos de dia, pois de noite ninguém tinha autorização de sair da área do aquartelamento que entretanto se estava a construir, ao lado das ruínas, assim como em qualquer parte de toda a província. Era proibido andar fora das áreas aquarteladas, de noite.

Há tudo a fazer, desde instalações militares, pista de aterragem para avionetas e helicópteros, paiol, enfermaria, dormitórios, cozinhas, lugares cobertos para refeições, e mais um sem número de outras coisas, que fazem um comando funcionar.

Claro, protecção, ou seja, abrigos subterrâneos e à face da terra, gradeamentos, com arame farpado, em toda a volta do aquartelamento, com especial protecção, em certos pontos estratégicos. Para isso havia sob o comando desta unidade militar, um batalhão de cavalaria, que veio mais tarde, parte de uma companhia de engenharia, um pelotão de morteiros e demais pessoal, que não importa agora mencionar.

Este aquartelamento estava a construir-se num local com alguma estratégia. A este havia uma grande aldeia, com casas cobertas de colmo, onde viviam naturais da província, de uma certa etnia, que pelo menos, se mostrava fiel aos militares.

A norte e oeste, era a vila, típica colonial, com algumas casas de adobe, e cobertas a folhas de zinco, e dos lados algumas bananeiras, que se viam da rua.

Na vila, sobressaiam o posto dos correios [, foto à direita de César Dias, 1970], o mercado, com as suas bancas, onde se vendia de tudo um pouco, e onde não faltavam alguns cães vadios, que não deveriam de ter dono, pois estavam lá todo o dia e alimentavam-se do resto da carne e ossos, embrulhados em folhas de bananeira, que se vendiam em determinada área do mercado, a sede de um clube de futebol local, que abria à tarde, e vendia cerveja à temperatura ambiente, e gasosa muito doce, a saber a cana-de-açúcar, uma pequena igreja, pintada de branco, onde havia missa, sempre que era possível vir um padre da capital da província, um estabelecimento comercial, propriedade da Companhia Ultramarina, que recolhia alguns produtos que os naturais vendiam, a troco, muitas vezes, de bugigangas, sem qualquer valor, ou uns panos de chita, algumas casas pintadas mais a preceito, onde viviam alguns negociantes de madeira, uma casa, que era uma espécie de taberna, de uma senhora de origem cabo-verdiana, que juntamente com as suas filhas, vendia comida e cerveja mais ou menos fresca, que tirava de um frigorífico, que diziam que funcionava a petróleo, cerveja esta que os militares lhe traziam da capital da província, um posto de enfermaria, o edifício público onde funcionava, uma espécie de câmara municipal, que emitia documentos de identificação aos naturais, que queriam viajar de umas povoações para outras, sem serem incomodados pelos militares, entre outras coisas.

As ruas eram direitas, com algumas árvores, em especial Mangueiras, que estavam pintadas de branco, na sua base, pelo menos dois metros de altura. O Cifra, nunca compreendeu porquê, essa pintura. Do lado sul, havia matas, que diziam, mais tarde seria um campo de aviação. Mas creio que isso nunca sucedeu, pois usava-se uma zona ao norte, ao lado da tal aldeia, com casas cobertas de colmo, que era plana e onde aterravam as avionetas, e helicópteros.

Mais a oeste, quase à entrada da vila, passava um rio, com uma ponte em cimento, com um arco, e diziam que era a ponte mais importante da província. Embora, a vila se encontrasse a muitos quilómetros do mar, a maré subia alguns metros, o que fazia ficar grandes áreas submersas, e quando a maré era baixa, deixava a descoberto essas mesmas áreas, que era só lama, e passava a ser o paraíso de algumas aves e crocodilos, enterrados nessa mesma lama.

Mansoa > Ponte sobre o Rio Mansoa

Foto: © Joaquim Mexia Alves (2008). Todo os direitos reservados

O Cifra, tal como o nome indica, tem por missão ajudar a organizar e montar um centro cripto onde funcionará um sistema de cifra que ajuda a comunicação, em código, entre todas as forças militares que estão estacionadas na região, em diferentes zonas de guerra. Monta-se um centro cripto com o mínimo de segurança e organiza-se turnos de modo a funcionar vinte e quatro horas por dia. O centro de transmissões, recebe a mensagem em código, entrega-a por mão no centro cripto, este por sua vez decifra o conteúdo da mensagem e entrega-a no comando, também por mão.

Como já compreenderam, o Cifra, esse puto, que acordava, na sua aldeia do Ninho d’ Águia, ao som do comboio das seis e meia, tem a guerra na mão! Sabe de tudo o que se passa nas zonas de combate, primeiro que os comandos. Como entrega a mensagem, já decifrada, no comando e por mão, por vezes, vê na expressão do rosto do comandante e seus pares, sabendo ele o conteúdo da mensagem, se o comando vai agir, se se cala ou se movimenta tropas. [Foto à direita,  de Paulo Raposo: placa toponímica, Mansoa, 1968].

Enfim, era como aqueles párocos das aldeias, no interior de Portugal, que sabiam a vida de todos os paroquianos, através das confissões.Não diziam nada. Mas sabiam.

Todos os meses mudava o código no sistema de cifra. O Cifra tinha por missão, tal como os seus companheiros no centro cripto, todos os meses ir entregar, também por mão, o novo código ao comando de todas as forças militares que operavam sob o comando da sua unidade. Mais tarde, quem tinha essa missão eram os camaradas criptos, do comando do Batalhão de Cavalaria, que se veio instalar no novo aquartelamento, ainda em construção, mas numa fase já mais adiantada, pelo menos já havia local coberto, para se dormir, embora ainda não houvesse paredes.

As forças militares deste Batalhão de Cavalaria ficaram instaladas  no novo aquartelamento, mas o comando, depois de reconstruir parte das ruínas, ficou aí a funcionar, e construiu uma “Porta de Armas”, com o emblema do Batalhão, bastante bonita, e que era o orgulho dos militares.

Diziam que o comando do Batalhão não gostava de trabalhar em colaboração com o comando das forças militares a que o Cifra pertencia, que funcionava no novo aquartelamento, em algumas habitações, entretanto acabadas. Rivalidades, talvez. Mas os militares de acção, e não só, davam-se bem e eram amigos, pois dormiam e sofriam juntos as agruras e tristezas desta maldita guerra.

Mas voltando ao assunto, os documentos que se transportavam em envelopes fechados, com o carimbo de “muito secreto”, como era de prever, eram entregues por mão a todas as forças militares que se encontravam estacionadas em cenário de guerra.

Tanto o Cifra, como os seus camaradas, usava os mais diferentes meios de transporte. Desde a avioneta do correio, uma coluna militar de movimentação de tropas, o carro dos doentes, que normalmente era protegido por uma secção de combate, ou um helicóptero que cruzasse a zona. Enfim, no final de cada mês andava à boleia na guerra!

Isto, era o que se dizia entre os cifras.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. primeiro poste da série de 21 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10177: Do Ninho d' Águia até África (1): Mobilização e partida para um Comando de Agrupamento (Tony Borié, ex-1º cabo cripo, Cmd Agrup 16, Mansoa, 1964/66)

Guiné 63/74 - P10189: Os nossos últimos seis meses (de 25abr74 a 15out74) (14): Dos planos de evacuação do território aos graves acontecimentos de Bissorã, em junho de 1974 (Paulo Reis, jornalista, freelancer / Luís Gonçalves Vaz)



A. Mensagem do nosso grã-tabanqueiro Luís Vaz [, foto à direita]:

Data: 28 de Junho de 2012 23:19
Assunto: Sobre os "Planos de Evacuação da Guiné" (Abril/Outubro de 1974)



Caros camarigos.


Para vosso conhecimento:


In: http://guineidade.blogs.sapo.pt/8234.html;


Luís Vaz

B. Reprodução, com a devida vénia, do poste publicado no blogue do nosso camigo e grã-tabanqueiro Leopoldo Amado, Guineidade (que, embora disponível na Web, já não é atualizado desde setembro de 2006):

Quarta-feira, 7 de Junho de 2006 > Ainda sobre a descolonização da Guiné-Bissau: uma esclarecedora carta de Paulo Reis

Caro professor Leopoldo Amado:

Li a sua exposição com muito interesse. E aproveito para salientar alguns aspectos curiosos.

1 - Os acordos de Argel são assinados em 26 de Agosto de 1974, certo? Ora nos documentos que encontrei no AHM [, Arquivo Histórico-Militar,] há referências concretas a um 'Planeamento de redução de efectivos' já em curso em Julho de 1974, que incluiu a desocupação das localidades de Pirada, Bajocunda, Piche e Paunca;

2 - O documento mais completo que encontrei, até agora, é também anterior a 26 de Agosto e nele se utiliza a expressão 'Plano de Evacuação'(4AGO74);

Portanto, a ideia que tenho, neste momento, e baseado nos dados que coligi é a de que o processo de retracção do dispositivo militar português se iniciou e processou, numa primeira fase, completamente à revelia das negociações/instruções resultantes dos encontros de Lisboa, entre o Governo Português e o PAIGC.

Pelos dados que me adianta – nomeadamente os encontros de Cantanhez – julgo que isso terá servido para enquadrar o tal plano de evacuação. Ou seja, tanto a iniciativa política como militar, da parte portuguesa, parece não ter existido e ter andado a reboque das exigências do PAIGC.

Encontrei documentação da 2ª Rep interessante, onde se fala dos problemas de disciplina das unidades do exército português e das dificuldades em fazer a simples rotação de efectivos, já prevista há muito tempo. A partir de certo momento, a própria cadeia de comando estaria em risco, uma vez que os soldados portugueses só queriam ir para Bissau e embarcar para a Metrópole.

A ponto de em Junho de 1974, tropas do PAIGC terem entrado em Bissorã, a propósito de confraternizar. Depois de algumas cervejas, com os soldados portugueses, espalharam-se pela vila e capturaram o Cabá Santiago, um chefe de milícia muito conhecido, desertor do PAIGC, o Bajeba e o Sitafa Camará (ou Quebá), ambos chefes de milícia. Levaram-nos e fuzilaram-nos sem que as forças portuguesas reagissem, de acordo com o testemunho de habitantes locais e soldados portugueses.

Como lhe disse, ainda estou a 'arranhar' a documentação do AHM e pretendo ir mais longe – porque tenho a certeza que haverá outros arquivos (no própria Estado Maior do Exército e talvez na CECA) (*) de documentação do QG do CTIG. Não é possível que a documentação do Quartel General do Comando Independente da Guiné Bissau se resuma à que está nos arquivos do AHM.

Resumindo: é óbvio que a retirada militar foi feita como o PAIGC quis – ou melhor 'sugeriu' – em Cantanhez, que essa retirada já estava em curso em Julho de 74 e que o Governo português se limitou a dar o seu sim a uma situação que já existia, de facto. E que já não tinha capacidade militar para alterar, o que era do conhecimento de ambos os lados.

Por outro lado, já na altura no poder em Portugal se dividia, com Mário Soares e Almeida Santos a serem ultrapassados pelas estruturas do MFA, com Spínola em confronto directo com os sectores mais radicais e Fabião e Spínola em rota de colisão. Enfim...

Procurarei fazer uma listagem mais detalhada e descritiva da documentação com que me tenho cruzado. Uma vez que tenciono pedir cópias de muita dessa documentação, poderemos combinar um encontro, mais tarde, e terei todo o prazer em fornecer-lhe cópias daquilo que for útil.

Para já, na segunda-feira irei pedir cópias do tal 'Plano de Evacuação' e da listagem intitulada 'Desocupação de localidades' . São os documentos mais explícitos que encontrei, reveladores de um plano de retracção das forças militares portuguesas, mas que não fazem uma única referência ao PAIGC, aos encontros de Cantanhez, ou a qualquer outro aspecto político. Se estiver interessado em ter cópia desta documentação, para já, diga-me. Não sei quanto tempo eles demoram a fazê-lo, no AHM, mas logo que os tiver basta combinarmos e entregar-lhe-ei uma cópia.

Agradeço-lhe a gentileza sobre os contactos do lado do PAIGC. O único que consegui até agora, foi o do comandante Lúcio Soares, de que tenho o nº de telefone na Guiné. Mas nesta primeira fase, a hipótese de uma deslocação minha à Guiné ainda é apenas uma hipótese. Este trabalho de investigação está a ser feito à minha custa, sem qualquer financiamento. Só depois de concluída a fase da recolha de depoimentos e documentação disponíveis em Portugal é que me poderei abalançar a tentar obter financiamentos para uma deslocação à Guiné-Bissau, a fim de fechar o círculo desta História.

Com os meus melhores cumprimentos,

Paulo Reis

(Jornalista/investigador português)

2. Comentário de L.G.:

O autor da mensagem, dirigida ao Leopoldo Amada, era (é) membro da nossa Tabanca Grande desde meados de 2006. Aliás, ele continua a receber a correspondência (interna) da Tabanca Grande, embora não  nos  dê quaisquer notícias. Em junho de 2006, o Paulo Reis quando nos contactou andava a fazer um trabalho de investigação sobre os comandos africanos. O que levou, naturalmente, ao Arquivo Histórico-Militar. Nessa altura colaborou no nosso blogue com um texto sobre a retração das nossas tropas, a seguir ao 25 de abril de 1974.

Desse texto só se publicou uma primeira parte (**). Possivelmente, por alteração do respetivo endereço de email, perdemos o seu contacto. Não sei se ele chegou a terminar o seu trabalho sobre os comandos africanos.  Possivelmente não, por falta de financiamento. Encontrei o seu rasto na rede LinkedIn, com morada em Macau [.vd.. foto acima].

Tem um "site" em inglês, com o título Madeleine McCann Disappearence. Gostavamos que ele nos voltasse a contactar, até para saber do seu prometido livro sobre os comandos africanos. Também gostaríamos de saber pormenores sobre os graves  acontecimentos ocorridos em Bissorã, em junho de 1974, em que elementos do PAIGC, iludindo a boa fé dos militares portugueses, terão raptado e depois fuzilado chefes das milícias locais. Tem um novo endereço de email.
__________________


Notas do editor:

(*) CECA = Comissão para o Estudo das Campanhas de África. Direcção de História e Cultura Militar.  Repartição de Documentação e Bibliotecas. Estado Maior do Exército.

(**) 9 de junho de 2006 > Guiné 63/74 - P858: Plano de Evacuação da Guiné (Abril/Outubro de 1974) - I Parte (Paulo Reis)

Texto do Paulo Reis, jornalista freelancer que está a fazer um trabalho de investigação sobre os comandos africanos, e membro da nossa tertúlia:

Caros tertulianos:

Tenho andado a analisar documentação diversa sobre a guerra da Guiné, no Arquivo Histórico Militar. Enconteri alguma informação que poderá ser do interesse de muitos de vocês, embora não esteja relacionada directamente com o tema que estou a investigar - os Comandos Africanos. Enviei este conjunto de info's ao Luís Graça, caso ele considere de interesse, a sua publicação no blogue. Aproveito para vos enviar o mesmo texto, pode ser que tenha também algum interesse para vocês. Com os meus melhores cumprimentos. Paulo Reis, jornalista. Telemóvel > 918627929

Plano de Evacuação da Guiné (Abril/Outubro de 1974) - I

O material disponível, no Arquivo Histórico Militar, é escasso e a sua classificação ainda não está completa. No entanto, consegui encontrar algumas informações sobre a maneira como se processou a retirada das tropas portuguesas e o desmantelamento nas unidades de recrutamento local, nos arquivos do CTIG (Comando Territorial Independente da Guiné). A documentação é, como disse, escassa e dispersa, com muitas lacunas. Assim, num despacho (nº5054/B/74) de 4AGO74, assinado pelo Comdt Militar e Adjunto-Operacional, Brigadeiro Octávio de Carvalho Galvão de Figueiredo, escreve-se:

“Por determinação do Brig. Comdt. Chefe:

"a. Serão extintos todos os Pel Caç Nat [Pelotões de Caçadores Nativos] com excepção daqueles que por serem as únicas forças que guarneçam uma determinada localidade não seja aconselhável extinguir.

"b. As praças da PU (#) dos Pel extintos reverterão para a CCAC da PU mais próxima.

"c. Os graduados e as praças europeias dos Pel Caç Nat extintos serão aproveitados para recompletamentos".


Uma circular (nº 2012/C) da 3ª Repartição do QG, datada de 5AGO74 e assinada pelo Chefe de Estado Maior Interino, António Hermínio de Sousa Monteny (Ten Cor do CEM), remete para ordens do Brig Comdt Chefe, segundo as quais deveriam ser “desde já desactivados os seguintes Pel Art [Pelotões de Artilharia], sendo a situação do pessoal e do material definidos por determinação administrativo-logística a emanar pelas repartições competentes”.

A lista dos Pel Art a desactivar é a seguinte:

1º Pel Art - Cacine
5º Pel Art - Bissau
15º Pel Art - Bissau
25º Pel Art - S. Domingos
28º Pel Art - Piche
31º Pel Art - Bajocunda
33º Pel Art - Ingoré
Pel Art Ev - Binta

Em documentos dispersos, sem sequência, encontrei algumas referências a CCAÇ [Companhias de Caçadores] a desmantelar ou desmanteladas. Assim, num documento intitulado “Planeamento de redução de efectivos – alteração nº 1 (23 Julho de 74 – assinado pelo chefe da 3ª Rep, Mário Martins Pinto de Almeida, Tem Cor CEM, doc. Nº 558/INF/C) refere-se a “desocupação das localidades de Pirada, Bajocunda, Piche e Paunca (?). A CCAÇ 11 será desactivada em virtude da passagem à disponibilidade de grande parte dos efectivos”.

O documento mais completo data de 20 de Agosto (de recordar que o Acordo de Argel foi assinado a 26 de Agosto de 1974) e consiste numa acta de reunião das chefias militares e do Brig Comdt Chefe, onde é definido o "Plano de Evacuação". O oficial relator é identificado apenas como Fernando José Pinto Simões. A reunião terá sido realizada alguns dias antes, no dia 15 de Agosto. A data de 20 de Agosto é a data de registo de saída do documento, com carimbo da Repartição de Operações.

No texto refere-se, entre outras coisas, que “todas as tropas africanas têm que estar pagas até 31AGO, incluindo as que estão em Bissau”. Esse pagamento, como se refere mais adiante abrange os meses até 31DEZ74.

Outra nota diz respeito às CCAÇ Africanas: “O pessoal europeu pertencente às CACÇ Africanas vai para o Depósito de Adidos até à liquidação das contas”. Nessa mesma reunião é nomeada uma Comissão de Transportes, para coordenar a retirada e transporte para Portugal, presidida pelo Cor Tir CEM Santos Pinto.

Noutro documento, sem data, que surge aparentemente anexo a este “Plano de Evacuação” são listadas um total de 77 unidades. O extenso documento inclui várias páginas com uma grelha onde estão listadas, da esquerda para a direita o nome da unidade, o trajecto (localidade onde está, percurso e destino, Bissau), e outros pormenores, como data de saída da localidade, chegada a Bissau, aquartelamento, partida para Lisboa, etc. etc. Este segundo documento tem, no final, o nome do Comdt Militar, Brigadeiro Galvão de Figueiredo, mas não está assinado por este. Está, sim, autenticado pelo Chefe de Estado Maior Henrique M. Gonçalves Vaz, Ten Cor CEM.

Paulo Reis, Jornalista (Cart Prof nº 734),
Telemóvel > 918 62 79 29

Nota de P.R.:

(#) Ignoro o que PU, neste contexto, possa significar. Elementos do AHM adiantaram-me duas hipóteses: Polícia de Unidade (pouco provável, dizem) ou Província Ultramarina (mais provável...)

(***) Útimo poste da série > maio de 2012 > 13 de maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9892: Os nossos últimos seis meses (de 25abr74 a 15out74) (10): Em Bambadinca, em agosto de 1974, eu (e outros camaradas) fui sequestrado, feito refém e ameaçado de fuzilamento por militares guineenses das NT... Cerca de 40 horas depois, o brig Carlos Fabião veio de helicóptero com duas malas cheias de dinheiro, e acabou com o nosso pesadelo (Fernando Gaspar, ex-Fur Mil Mec Arm, CCS/BCAÇ 4518, 1973/74)

Guiné 63/74 - P10188: Cartas do meu avô (14): Décima primeira (Parte II): De regresso a Lisboa, para o contencioso, nos serviços centrais da CGD... (J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil, CCAÇ 728, Bissau, Cachil e Catió, 1964/66)

A. Continuação da publicação da série Cartas do meu avô, da autoria de J.L. Mendes Gomes, membro do nosso blogue, jurista, reformado da Caixa Geral de Depósitos, ex-Alf Mil da CART 728, que esteve na região de Tombali (Cachil e Catió) e em Bissau, nos anos de 1964/66. [, Foto à direita, com os netos]. As cartas, num total de 13, foram escritas em Berlim, onde vivem os netos, entre 5 de março e 5 de abril de 2012. (*)

B. DÉCIMA PRIMEIRA CARTA >  De Novo Para Lisboa (Parte II)


II – O Contencioso

As perspectivas eram óptimas. O director quando lhe revelei, por telefone, a desistência do CEJ [Centro de Estudos Judiciários] (*() e o meu desejo de ir trabalhar no contencioso central deu logo o seu assentimento. Porque estava mesmo a precisar. E porque esperava muito de mim.

Por mim, também me era apetecível. Voltaria de novo para Lisboa, umas dezenas de anos depois da grande crise. Tudo tinha serenado. Lisboa é Lisboa. A minha mulher também o desejava há muito tempo. Da parte dela, era necessário que o director também lhe aceitasse o pedido de transferência. Eu teria que esperar todo o processo burocrático da substituição e preenchimento do meu lugar. Também deu para comprar um apartamento em Almada, com empréstimo da Caixa.

Só uns bons meses depois é que tudo se deu. Vim para o contencioso. E para a nova casa.. Trouxe o filho mais novo comigo e passei a levá-lo todos os dias para o colégio de São João de Brito, dos jesuítas. Minha mulher ficou à espera da autorização, em Aveiro, acompanhada da filha mais nova. Finalista de Engenharia Química. Se tudo corresse bem, seriam mais uns seis anos de trabalho. Com o suplemento militar, podia pedir a reforma antecipada, aos cinquenta e sete.

No dia marcado, apresentei-me no contencioso. A secretária anunciou-me. Trouxe o recado de que me receberia à hora X… Entretanto fui conversar com os colegas conhecidos. Até que fui chamado para ir ter com o Sr. Director. A secretária entreabriu a porta. Vi-o sentado no topo duma mesa muito comprida.
- Ah, é o Sr. Dr. Mendes Gomes? Seja benvindo. - Disse enquanto vinha ao meu encontro - Sente-se aqui nesta cadeira, se faz favor. Então? Finalmente!...

Sorrimos.
- É verdade. O tempo de tudo acaba por chegar …- respondi.
- Mas custou, desta vez. As coisas não são tão simples. Por minha vontade o Dr. Mendes Gomes vinha logo. E a filial? E arranjar outro?
- Pois é verdade.

Daí para a frente, contei tudo sobre o CEJ e sobre o que esperava. Foi uma conversa longa e muito interessada. Até que chegou a hora de ele ir ter com a Administração. – manifestou-mo.
Saímos os dois e continuamos a conversa pelos corredores.





Lisboa > Edifício-sede da Caixa Geral de Depósitos > 28 de abril de 2012 > Um dos corredores exteriores, laterais, do lado da Culturgest.  Inaugurado em 1993. Autoria do arquiteto Arsénio Cordeiro, autor também do edifício da Torre do Tombo. Duas obras que têm fãs e críticos...

Fotos: © Luís Graça (2012) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.


O megalómano edifício novo da Caixa era-me totalmente desconhecido. Não sabia onde ficava nada. Muito menos a Administração. Fui-o acompanhando enquanto, dele, não recebi instruções em contrário. Até que flectimos à direita. Reparei que o ambiente envolvente ficara mais sofisticado. Tudo bem. Pelo menos para mim. Para ele, não.
- Onde é que o Senhor vem?... - desfechou com ar muito altivo e distante.

... Fiquei parvo. Pensei que estivesse a brincar.
– Que é que deu ao fulano? Passou-se…- pensei cá para comigo. -Não deve ser comigo.
- Não sabe que para aqui é a Administração?...

Fiquei mais espantado que um burro…
- Eu sei lá onde é a Administração. É a primeira vez que aqui venho…

Não sei como nos despedimos. Só sei que tinha acabado de apanhar com um balde de água gelada pela cabeça abaixo. Nunca imaginei me viesse acontecer. Muito menos vinda de que sempre me falara com toda a cerimónia. Ele era mais novo do que eu, em todos os parâmetros. Em idade, como advogado, como servidor da Caixa. Soube depois que tinha sido convidado pela Administração para a Caixa e que era membro activo da, para mim, tenebrosa Opus Dei. Dava catequese…Estava tudo explicado.

A partir daqueles instantes, o meu futuro ali estaria definitivamente comprometido. Não consigo admitir tamanho, desabrido e disparatado desaforo. Cerrei-lhe os dentes.
- Vou procurar dar o meu melhor, mas, aquele dr. H..., amistoso, próximo e natural, que pensava conhecer, acabou de falecer… morreu.

Todas as reservas seriam poucas O futuro haveria de confirmar tim-tim-por-tim, o que supus naquele instante.

O contencioso era servido por exército de advogados, altamente especializados naquelas coisas de acções e execuções, a maior parte oriundos do quadro geral como eu. Cada um deles tinha uns três ou quatro funcionários de carteira, a trabalhar nos processos que lhe estavam adstritos. Todos eles respeitavam a créditos em contencioso. De empresas e particulares. As secretárias ficavam tapadas de montes de processos logo pela manhã. Para serem tratados ontem…

Um turbilhão de requerimentos, petições e contestações, sobre a hora, pareceres para tudo a submeter ao subdirector, tudo dentro duma absurda imposta submissão e controlo hierárquicos, desrespeitosa da mais lídima e consagrada autonomia técnica que a nossa condição de advogado exige e impõe…

As reuniões com o director aconteciam com uma intensidade inaudita. Só ele nelas pontificava e se fazia ouvir. Gostava libidinosamente de se ouvir falar…Ai de quem ousasse expor o que pensava…vinha logo muito bem camuflado o peso da hierarquia…
- Que logro!...Isto é para se ir levando da melhor forma possível e aguentar até à reforma.- pensei eu

Tanta vez me lembrei de como fora tratado no meu reino de Aveiro…Minhas orelhas sangrariam de torcidas… Atingido o tempo suficiente para a pré-reforma, seria a libertação. Mal sabia o calvário que aí vinha para lá chegar. Estiveram-se nas tintas para a compensação do serviço militar…Tive de trabalhar mais um ano e meio do que devia. Porque não me fora concedida autorização. O serviço não permitia…
Só que eu sabia que, antes, todos os que quiseram usar essa faculdade o conseguiram, na hora…e ainda receberam a indemnização legal correspondente à categoria. Uns bons milhares de contos.

Tão estranha e injusta atitude aconteceu só comigo. E, para cúmulo, quando finalmente, foi concedida, porque coincidiu com o ingresso dum subido gestor encartado, um especialista arrasa-montanhas, que arribava nas altas esferas das administrações financeiras, o célebre Almerindo Marques, para administrador, este determinou, abruptamente, o corte geral das indemnizações por antecipação de reforma… saí sem nada…(seriam só uns três mil e quinhentos contos, Na cotação dos anos 1999…) .

Por isso, foi um cáustico tempo de expiação o que, por crasso erro meu, fui passar ao contencioso central. Mas, não há mal que sempre dure… a seguir vinha aí a bonança da aposentação.

(Continuação)

___________________

Nota do editor:

(*) Vd. último poste da s+erie > 17 de julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10162: Cartas do meu avô (13): Décima primeira (Parte I): A toga de juiz que não cheguei a envergar... (J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil, CCAÇ 728, Bissau, Cachil e Catió, 1964/66)

Guiné 63/74 - P10187: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (7): Fotos do Marcelino da Mata, ten cor ref, precisam-se para projeto editorial da Oficina do Livro / Grupo Leya


Comandos a caminho de Bafatá, junto ao Dakota para operações na região do Xitole.

O 1º Cabo Marcelino da Mata (hoje ten cor na reforma, e com cerca de 75 anos de idade) é o primeiro da esquerda, na segunda fila (assinalado a vermelho). Dois dos atuais membros da nossa Tabanca Grande também constam desta histórica foto: O Alf Mil Briote, o segundo, a contar da esquerda, da primeira fila (assinalado a verde); e o então Capitão Rubim (hoje cor art ref ), o 6º da primeira fila, também a contar da esquerda (assinalado a amarelo).

Foto: © (2005). Todos os direitos reservados.


1. Mensagem de Carla Matias, da editora Oficina do Livro, Grupo Leya:

Carla Matias [Carla.Matias@oficinadolivro.leya.com]
Enviado: quinta-feira, 12 de Julho de 2012 11:15
Assunto: pedido de ajuda

Exmo. Senhor,

O meu nome é Carla Matias e trabalho na editora Oficina do Livro. Neste momento estamos a preparar um livro sobre alguns dos combatentes na Guerra do Ultramar. Um dos visados no texto é o Tenente-Coronel Marcelino da Mata, e, na impossibilidade de termos imagens deste senhor, recorremos ao seu blogue na esperança de que nos pudesse ajudar a conseguir fotografias do Tenente-Coronel. No arquivo do Diário de Notícias existe apenas uma que não serve para o efeito. Terá o Sr. Luís Graça o contacto de alguém que nos dissesse como podemos obter mais imagens?

Despeço-me pedindo desculpa pelo incómodo.
Antecipadamente gratos pela sua atenção,


Carla Matias
Departamento Editorial
Oficina do Livro
Rua Cidade de Córdova, n.º 2
2610-038 Alfragide
Tel. (+)351 21 041 74 48
www.oficinadolivro.pt~


2. Resposta, de 13 do corrente, ao pedido supra:

Carla: O ten cor ref Marcelino da Mata não pertence formalmente ao coletivo deste blogue (que tem 565 camaradas e amigos da Guinéd registados). Mas é, para todos os efeitos, um camarada da Guiné. Isto significa que não temos quaisquer depoimentos e/ou fotos da sua autoria. Temos no entanto cerca de duas dezenas de referências a este combatente, bem como diversas fotos.

Os créditos fotográficos pertencem pertencem ao blogue e aos respetivos autores. Tenho que ter o seu acordo. Faz parte das nossas regras bloguísticas. É na base desta confiança mútua que temos já um fabuloso arquivo sobre a guerra colonila na Guiné. Preciso que me dê mais informações sobre o plano da obra, o índice, os autores, etc. Um sinopse, se quiser. Teremos muito gosto em colaborar com a Oficina do Livro.

Boa saúde, bom trabalho. Luis Graça

3. Resposta da editora,. com data de 23 do corrnte:

(...) Muito obrigada pelo seu email.

A Oficina do Livro vai publicar um livro sobre a acção de vários combatentes na guerra colonial. No total serão 9 histórias. Contam-se as histórias de Marcelino da Mata, Alípio Tomé, Heróis de Mucaba, António Júlio Rosa (prisioneiro do PAIGC), entre outros.

Ao longo da feitura deste trabalho temo-nos deparado com dificuldades em obter algumas imagens, dai termos pedido a sua ajuda.

Hoje voltei ao seu (vosso) blogue e encontrei imagens de Mubaca (http://ultramar.terraweb.biz/06livros_PPires_MOliveira_Orbelino_Imagens_11Mucaba.htm).

O senhor poderia dizer-me se conseguiríamos obter estas imagens? E como?

Agradeço, mais uma vez, a sua atenção. Com os meus melhores cumprimentos, Carla Matias (...)

4. Pedido de colaboração a todos os nossos amigos & camaradas da Guiné, quer façam ou não formalmente parte da nossa Tabanca Grande:

Quem quer e pode "ajudar" a satisfazer este pedido da Carla Matias ? O ten cor ref Marcelino da Mata não faz parte do nossa Tabanca Grande mas foi um camarada nosso, e temos aqui algumas referências sobre ele... Pelo menos cerca de duas dezenas de referências, inckluindo algumas imagens, antigas ou atuais:

http://blogueforanadaevaotres.
blogspot.pt/search/label/Marcelino%20da%20Mata

http://blogueforanadaevaotres.
blogspot.pt/2009/02/guine-6374-p3839-fap-4-drama-humor-e.html

http://blogueforanadaevaotres.
blogspot.pt/2009/03/guine-6374-p4024-fap-16-o-reencontro-22.html

http://blogueforanadaevaotres.
blogspot.pt/2009/06/guine-
6374-p4466-o-grupo-especial-
do.html

http://blogueforanadaevaotres.
blogspot.pt/2006/12/guin-6374-p1354-testemunhos-sobre.html

http://www.ensp.unl.pt/lgraca/
guine_guerracolonial12_comandos.html

http://blogueforanadaevaotres.
blogspot.pt/2006/12/guin-6374-p1355-o-combatente-destemido.html

http://blogueforanadaevaotres.
blogspot.pt/2010/03/guine-6374-p6033-estorias-avulsas-78-o.html

Já em tempos recolhemos, em 2006, a pedida de uma das suas filhas, que vivia em Londres, uma série de depoimentos, por ocasião do seu 70º aniversário:

http://blogueforanadaevaotres.
blogspot.pt/2006/12/guin-6374-p1385-testemunhos-sobre-o.html

Veja-se, entre outros, o testemunho do nosso co-editor Virgínio Briote, ex-alf comando, sob as ordens de quem serviu, em 1965/66, o então 1º cabo Marcelino da Mata:

http://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/2006/12/guin-6374-p1354-testemunhos-sobre.html

Mais recentemente, o nosso camarada Marcelino da Mata visitou a (e foi homenageado pela) Tabanca do Centro,  por iniciativa conjunta do Joaquim Mexia Alves e do Miguel Pessoa.

Quem tiver fotos do Marcelino da Mata e as queira partilhar, façam-nas chegar ao blogue, com a respetiva autorização, por escrito, do direito de reprodução, a conceder à editora Oficina do Livro /Grupo Leya.
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Nota do editor:

Último poste da série > 28 de maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9955: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (6): Instituto Politécnico do Cávado e do Ave desenvolve um estudo relacionado com próteses dos membros inferiores e pede a colaboração do nosso Blogue para a recolha de informações

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Guiné 63/74 - P10186: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (29): O Floriano "Florita" e o tio que pescava

1. Mensagem do nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), com data de 22 de Junho de 2012:

Caro Vinhal
Aí vai mais uma história das “Memórias boas da minha guerra”.
Mais uma vez, pretendo registar momentos interessantes e divertidos que me acompanharam naquele tempo de combatente.
Peço-vos que compreendam o tipo de linguagem utilizado, uma vez que ela reflecte a autenticidade dos seus intervenientes. Todavia, conto com a vossa colaboração para a correcção dos respectivos exageros.

Com os meus agradecimentos e
Um grande abraço
Do Silva da Cart 1689


Memórias boas da minha guerra (29)

O Floriano “Florita” e o tio que pescava…

O Floriano foi um bébé fora do normal. Ainda criança de colo, usava e abusava da alimentação maternal e de todos os peitos a que pudesse deitar as mãozitas. Logo que começou a andar, agarrava-se às pernas das mulheres e, cheio de curiosidade, punha-se a espreitar lá para cima. Teve que ser forçado a deixar de mamar, mesmo que compensado por um excessivo carinho do colo, que pedia a todas as mulheres. E como tinha os genitais muito desenvolvidos para a idade, era constante motivo de brincadeiras por parte das raparigas.

Antes de ir para a Escola já tinha decidido sobre o seu futuro profissional: queria ser médico, para poder manusear as configurações femininas. (É claro que, com a idade, não conhecia a deontologia profissional…).

Na Escola Primária teve a sorte de ter uma linda professora, de Aveiro, que era bastante meiga e muito tolerante. Apaixonou-se por ela. Fazia tudo e mais alguma coisa para lhe agradar e, ao mesmo tempo, não desperdiçava uma oportunidade para tentar espreitar-lhe as pernas ou outras partes…

Quando o pai faleceu (ele era o mais novo dos 6 irmãos - 4 raparigas e 2 rapazes) não teria mais que 8 anos. Então, ele passava o tempo livre pela casa do tio Zeca, de quem recebia muita atenção.

O Zeca da Macieira era um homem invulgar para a época. Vivia só, numa enorme casa, onde recebia muitas pessoas que lhe solicitavam serviços de apoio tipo médico, uma vez que tinha sido enfermeiro. Teria 1,75 de altura, olhos claros e o cabelo liso, quase loiro. Tinha ainda boa figura. Nunca quis casar nem perdia muito tempo com namoros. Pouco falador, apaixonado pela pesca e pela cozinha. Preparava excelentes petiscos.

O Zeca atraía as mulheres. - Não lhe falta “feno”. - dizia o sobrinho Florita, pois que cedo as espreitou lá por casa. Porém, lá na terra, só foi pai de uma linda miúda, cuja mãe era de família muito distinta. Dizia-se que, pelas margens dos rios por onde pescava, deixou mais 8 filhos de 7 mulheres diferentes. Apesar disso, há que reconhecer que o Zeca se norteava por um certo comportamento social.

O Florita cresceu, continuou magricela e pouco desenvolvido. Teve que ir trabalhar para a cortiça no Grupo Amorim. Foi aí que o baptizaram de “Gaiolas”. Trabalhava sentado numa das bancas feitas de madeira, onde se cortava manualmente a cortiça aos quadradinhos. Essas bancas eram abastecidas por mulheres que despejavam gigas de traços.

Pum, pum, pum - ouvia-se um bater na madeira - e logo uma das mulheres se dirigia para a banca da sua zona de apoio.

Quem servia na zona do Florita era a Mamuda de Canedo, uma rapariga de peitos avantajados que, ao despejar a giga na banca, lhe roçava na cara, que ele não desviava, com uma das mamas. Por isso, o Florita, amiudadas vezes, excitado, batia com o pénis debaixo da banca, de forma bem sonora – pum, pum, pum - para que a Mamuda lhe trouxesse mais cortiça, para trabalhar. De seguida lá ia ele para o WC aliviar-se.

Fumava muito e, sempre que podia, desenfiava-se do trabalho e ia para às prostitutas. Assim e porque tinha que ajudar a família, tinha grandes dificuldades em gerir as despesas. Aproveitava as boleias para o Porto e para Espinho, sempre que podia. Porém, já no Porto, deixava os colegas, à espera, no Café Derby, em Cimo de Vila, enquanto ia arranjar dinheiro prestando serviços aos homossexuais da Sé.

Porto > Zona da Sé

Foto: http://conhecerportugal.com/rotas/rota-catedrais-norte, com a devida vénia

Passava o tempo todo a falar de “fuzaico”, o que, para ele, queria dizer tesão ou f_ _ _r. E, obcecado como andava sempre pelo “fuzaico”, não demorou muito a desflorar uma jovem de 16 anos, com quem viria a casar.


Por essa altura, (1963/64), houve substituição na chefia da Repartição de Finanças. O novo Chefe foi muito bem recebido lá terra, não só porque era um homem de trato agradável, mas também, e acima de tudo (penso eu), porque se fazia acompanhar por uma mulher divinal. Teria ele 43 anos e ela uns 23 ou 24. Eram pais de um menino de 6 anos. O marido, que era uma excelente pessoa, engravidara-a e cumpriu a sua obrigação, segundo os usos e costumes daqueles tempos e da sua terra minhota.

Não havia mulher mais bela, mais charmosa e mais sexy para os olhares da malta dos anos 60. E ela, com consciência dos seus atributos, aproveitava todos os momentos para se exibir e provocar o grupinho dos jovens mais apetecíveis da terra. De roupas escassas, leves e insinuantes, fazia-os olhar, de boca aberta, sempre que aparecia na esplanada do Café Central. Ao mesmo tempo provocava os olhares aterradores às moças do grupo, no qual se destacava a figura atraente do jovem Nelito (Dr. Nelito) que, com apenas 26 anos, já se evidenciava no mundo empresarial. O seu excelente aspecto físico, os carros e as roupas (modernas e caras), fazia-o ser o homem desejado por todas as mulheres. Perante este quadro, tudo levava a crer que a boazona iria cair nas suas malhas. Poucos dias depois da chegada, já o Nelito passava grande parte do seu tempo livre a conversar com o casal, especialmente com... o marido.

Também não levou muito tempo para que a fama do Zeca “a dar injecções”, chegasse ao conhecimento da dita sereia. E, quando menos se esperava, lá surgiu o boato: a “toura” do Chefe foi ao Zeca, para que lhe desse umas injecções. Porém, contrariando todas as aparências, nada aconteceu. Quem o confirmou foi o Florita que ainda não perdera o hábito de ir espreitar o tio. E foi dele que ouviu a frase fatal:
- Lamento muito, minha senhora. Não dou injecções a mulheres casadas.

Bronca na terra, vergonha para o conquistador Dr. Nelito e admiração pelo Zeca que nunca quis contribuir para desfazer lares.

Guiné > Praça do Império

Foto: http://ultramar.terraweb.biz/CTIG/Imagens_CTIG_JoseSobra_ImagensGuine.htm, com a devida vénia

No Natal de 1968, estando eu de Sargento de Ronda, acabava de chegar da baixa de Bissau. À entrada do Quartel General ouvi, do lado direito, na cadeia, alguém aos gritos:
- Filhos de uma grande p_ _a, tirai-me daqui, seus cabrões. Cambada de paneleiros…

Pela voz, constatei: - Parece o meu vizinho Florita.
Fui junto do Oficial Dia, disse-lhe que o rapaz era meu vizinho e que gostaria de falar com ele. O Oficial que já estava cheio de o ouvir berrar, aconselhou-me a visitá-lo de manhã, porque ainda estava muito bêbado. Assim aconteceu.

- Então, Florita, como vai a vida? – perguntei.
- Ando fodidinho. Saí do Guileje para ir ter com a tua Companhia, que nos foi ajudar em Gandembel e não te encontrei. Vim para baixo, com estilhaços e inchado das abelhas e para aproveitar ser tratado aos pulmões. Continuo na mesma e estes filhos da p_ _a só me enterram cada vez mais.
- Mas, porque estás na cadeia?
- Quando cheguei lá ao “600”, onde faço serviços, com uns copitos a mais, f_ _eram-me. Tinha tido numa jantarada com o meu primo Lito para esquecer o meu velhote que morreu pelo Natal, abusei e acabei a insultar os chicos. Estive quase à “batatada” com um Furriel. Agarraram-me e mandaram-me para aqui. Safei-me de Gandembel mas aqui também não estou bem.

E, voltou ele:
- Arranja-me aí um cigarrito porque estou desesperado e sem tostão.
- Então, como é que te safas?
- Ando a “comer” um Sargentola, já entradote, que me vai dando algum.
- Como???!!!
- Lá em baixo, junto à Casa Gouveia, no Café Bento, meteu-se comigo e...
- Tafoda morcom, continuas na mesma merda e nunca mais endireitas. – foi a minha conclusão.

Porto > Cinema Batalha

Foto: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Porto_Cinema_Batalha.JPG, com a devida vénia

Uns oito anos mais tarde (1975), em frente ao Teatro S. João, quando vinha do Governo Civil do Porto, vejo o Florita a sair do Cinema Batalha e perguntei:
- Não me digas que vens de ver um filme pornográfico?
- Bruxo. É só fuzaico! - respondeu ele.

E continuou:
- Tens de me arranjar um dos teus calendários de gajas nuas. Preciso de substituir o que está por cima da minha cama.

Perguntei:
- E a tua mulher, deixa-te lá por isso?
- Claro, se ela quer pôr lá o Cristo, eu também tenho direito a pendurar uma gaja boa!

Silva da Cart 1689
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 8 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9331: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (28): A guerra em Dunane