1. Mensagem de Carlos Matos Gomes, Coronel Cavalaria Reformado
(ex-2.º CMDT Batalhão de Comandos da Guiné, 1972/74), escritor e
historiógrafo da guerra colonial, chegada até nós através do nosso confrade Mário Beja Santos:
Meus caros,
Tendo o prazer de fazer parte da vossa lista dos contactos e de receber através deles textos que me vão mantendo informado, cabe-me hoje enviar um da minha autoria.
Este texto tem duas causas, a primeira é a de que o tema do colonialismo, da descolonização esteve sempre presente com maior ou menor intensidade na minha obra como romancista.
O romance que acabei de publicar - deve estar a chegar às livrarias -
"A Última Viúva de África" - aborda-o e fá-lo, julgo, numa perspectiva de reflexão de fim de vida. De interrogação: e se afinal o que tenho dito e o que me têm dito não for e não tiver sido assim? Se o Movimento Descolonizador foi um imenso logro?
Por outro lado têm surgido na imprensa textos sobre o tema, da Fernanda Câncio no DN e de Pedro Schacht Pereira no Público que me parecem um digest de vulgaridades.
Este texto reflete o que escrevi no livro e investe contra o que julgo serem lugares comuns.
Junto segue também o convite para a apresentação do livro.
A descolonização é um absurdo
Por Carlos Matos Gomes
Este é um texto do romancista Carlos Vale Ferraz, porque foi através de um romance do Carlos Vale Ferraz, a
“Última Viúva de África” que desenvolvi a ideia do absurdo da descolonização, ou da descolonização como um conceito absurdo. Um absurdo não no sentido de “desagradável ao ouvido”, o seu primeiro significado, mas no sentido de contrário à razão.
O romance desenvolve a reflexão do absurdo como atributo inerente do fenómeno que é habitualmente designado por “movimento descolonizador” de África feita por várias personagens. No início do romance, o narrador, um jovem português, estudante de filosofia na universidade de Lovaina, na Bélgica, fotógrafo por desejo de aventura, confrontado com as notícias e as reportagens dos tumultos que se seguiram à independência do Congo Belga, em 1960, considera como primeira impressão que os europeus andavam por África a extrair o que necessitavam para viverem melhor nas suas terras de origem, aonde regressariam após a campanha, como os pescadores de bacalhau que cumpriam temporadas na Terra Nova. Ou cumpriam penas de degredo longe das suas pátrias. O narrador apoiava as independências porque considerava um anacronismo a exploração direta de África pelos europeus:
“Para mim, descolonizar constituía uma prova de inteligência. Não apoiava as independências das colónias por ser um direito dos povos colonizados. Não me converti ao anticolonialismo por ideologia, nem por moral, mas por pragmatismo. Quis conhecer os mercenários do Congo e Jean Scrame, em particular, para perceber porque lutava depois de administrar uma propriedade da qual já havia tirado o proveito que lhe permitia estabelecer-se noutro país, ou regressar à Bélgica.”
O narrador comete aqui a mais vulgar das confusões: refere-se, não à colonização, mas ao colonialismo. É de colonialismo que fala. O Congo Belga, como toda a África a sul do Sara, nunca foi colonizado, com excepção da Colónia do Cabo, onde os ingleses ensaiaram o que viria a ser o seu modelo de administração colonial (indirect rule). O Congo Belga (que começou por ser propriedade pessoal do rei dos belgas) foi sujeito ao fenómeno do colonialismo e o colonialismo foi um sistema de exercício violento de direitos de exploração de matérias-primas instituído e acordado na Conferência de Berlim, em 1885, entre potências europeias, para satisfazer as necessidades dos complexos industriais desenvolvidos com a energia da máquina a vapor. O colonialismo é um fruto da máquina a vapor e da revolução industrial.
Até à II Guerra Mundial foi indispensável as potências europeias assegurarem a exploração direta das matérias-primas, depois, passou a ser mais rentável delegar essa tarefa em agentes locais, as elites indígenas entretanto assimiladas e integradas na cultura e nos processos europeus.
Mas houve, entre os europeus que foram para África executar tarefas de exploração directa, um grupo que, por razões diversas, assumiu aquelas terras como o seu destino final – que afirmaram ser a África, fosse o Congo, Angola, a Rodésia, Moçambique ou o Quénia, a sua pátria! Em Portugal utiliza-se o termo de “cafrealização” para designar esse processo, na Bélgica ele foi designado por “zairização”. O comandante de mercenários designado no romance como Jean Scrame e a portuguesa Alice Vieira, a última viúva de áfrica, pertencem a esse grupo. O narrador descobrirá, contudo, que nem eles – mesmo assumindo a sua nova identidade de africanos brancos - se opõem ao processo de independência das colónias, a um governo de negros, porque percebem que o sistema de administração e exploração delas se mantem, apenas mudaram os executores diretos, que passaram a ser títeres locais nomeados pelos brancos, europeus e americanos. O colonialismo manteve-se enquanto sistema de exploração de riquezas. O “Movimento Descolonizador” foi apenas uma mudança de tripulação num navio que continuou a realizar as mesmas viagens, transportando os mesmos produtos entre os mesmos portos.
Não existiu qualquer movimento descolonizador, que foi e é apenas uma designação utilizada para referir o movimento de transição da administração das colónias dos funcionários das potências europeias para uma elite de funcionários e políticos negros aculturados – ditos “assimilados” ou evolués, que, no essencial, replicam os métodos dos europeus e servem os seus interesses. Em termos políticos não existe qualquer descolonização. Não existe também qualquer libertação.
Mas não existe também descolonização em termos civilizacionais. Colonizar é a instalação de um grupo de uma dada sociedade no território de outra e implica troca de experiências, saberes, valores, relações comerciais e humanas, de forma mais ou menos pacífica ou mais ou menos violenta. Colonizar é sempre uma exportação de bens civilizacionais, da língua à religião. Entre o colonizador e o colonizado estabelece-se uma relação como a de uma gota de tinta que cai num copo de água. A gota de água dissolve-se e não é possível reconstituí-la, retirá-la da água onde se dissolveu. É por isso impossível reverter a colonização, retirar dos povos colonizados o essencial do que os colonizadores levaram e lhes inculcaram.
Nós, os portugueses devíamos conhecer bem a impossibilidade de descolonizar. Fomos colonizados pelos romanos e pelos árabes, mantemos fortes marcas dessa colonização – não fomos descolonizados até hoje. Colonizámos alguns pontos do mundo, e deixámos lá as nossas marcas, como os romanos e os árabes nos tinham deixado. O Brasil, Angola, Moçambique, a Guiné, Cabo Verde, São Tomé, não foram descolonizados, tornaram-se entidades políticas independentes, estados-nação com bandeira, hino, gravatas de seda ao pescoço dos hierarcas, número de ordem nas Nações Unidas e embaixadores que falam inglês. Tanto o discurso comum da “malvada descolonização”, como da “descolonização possível” são absurdos. O discurso da “entrega” é patológico, com origem na exacerbação de sentimentos que bloqueiam o raciocínio.
As antigas colónias europeias de África não se descolonizaram, não reverteram as instituições de governo introduzidas pelas potências coloniais, retomando as suas tradições do tempo antes da chegada dos colonizadores europeus. Pelo contrário, os dirigentes dos movimentos independentistas, do movimento descolonizador do pós II Guerra, foram particularmente violentos na aniquilação das autoridades tradicionais e dos costumes ancestrais – quase sempre com o aplauso dos antigos colonizadores e das suas instituições, com relevo para a ONU e as suas agências, que os elogiaram pela luta anti-tribalista, tomada como uma acção de modernidade.
O movimento descolonizador dos pós-II guerra é um gigantesco embuste. A descolonização de África foi, de facto, a adopção pelos africanos da “ordem” do colonialismo – constituição de estados-nação com os mesmos princípios dos estados-nação que instituíram o colonialismo, imposição dos seus sistemas políticos e jurídicos, das suas línguas, até dos seus deuses e, principalmente, das suas armas, do canhangulo à AK, do jipe ao Mirage. Não existiu qualquer libertação de África, a África política e a África dos povos está sujeita às mesmas regras e normas dos países que enviaram os seus exploradores ao continente africano no século XIX e que o dividiram em Berlim.
O facto de não ter existido nem descolonização, nem libertação de África não é nem bom nem mau – não existiu Mal, nem Bem, nem desastrosa descolonização, nem criminosa entrega, nem falsa libertação, houve sim uma realidade: a imposição por parte das antigas e novas potências coloniais de uma nova grelha de domínio de África, de uma grelha que facilita a relação e a exploração, pois quer uma quer outra se realizam segundo a regra dominante. O resto, o que subsiste da antiga África antes do colonialismo, das danças às mezinhas dos feiticeiros é folclore que serve de atração turística.
Resta uma pergunta que Alice, A Última Viúva de África e Scrame, o último dos grandes comandantes de mercenários, colocam: Porque não podem e não puderam eles e os europeus manter-se em África como africanos brancos? Porque não pode ser a África uma pátria de brancos, como foram e são as Américas?
O romance ensaia uma resposta. A ficção é mais adequada a abordar questões difíceis que a análise política e histórica…
Carlos Vale Ferraz
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Nota do editor
Último poste da série de 12 de setembro de 2017 >
Guiné 61/74 - P17759: Agenda cultural (584): Lançamento do livro do José Saúde, "AVC - Recuperação do Guerreiro da Liberdade" (Chiado Editora, 2017, 184 pp. ), no passado domingo, em Lisboa