16.03.2024, sábado - Há dias assim
Umas vezes parece que temos todo o tempo do mundo, outras vezes parece que o tempo não dá para nada. Hoje é daqueles dias que parece que nunca mais acabam. Nada previsto para hoje, nada a fazer a não ler, escrever e “matar” o tempo. Há ao menos tempo para descansar.
Lá em casa tudo está calmo e tranquilo. Lá fora o barulho das crianças que brincam, com qualquer coisa que as entretenham, nem que seja a queimar uma garrafa de plástico. Os “motores” que passam apitando, com os canos de escape ruidosamente roncando, quebram a monotonia de quem não sai de casa.
De vez em quando venho à varanda ver o que se passa, e logo as crianças que me avistam começam a Chamar: “Malae! Malae! Malae!...” (Estrangeiro, em tetum.) Claro que tive de lhes acenar e dizer “adeus!...”
16.03.204 - Uma voltinha em “motor”
Desde março do ano passado que não andava de mota. Depois da aquisição da pickup nunca mais permitiram que isso acontecesse, com medo das mazelas que me pudesse causar. Mas hoje teve de ser, pois o Eustáquio foi ontem de mota para Boebau, e não tinha condutor para a pickup.
A professora Cristina mandou ontem à noite uma mensagem para nos encontrarmos amanhã no Pateo. Como a mota da casa estava ausente, falei com a Adobe sobre o convite da professora Cristina e pedi-lhe para ir comigo na microlete até ao local do encontro.
Ela acedeu, mas adiantou logo: “Não, não vamos de microlete.(#) Vou pedir à tia Benedita que me empreste a mota dela, e vamos de motor.” E pronto, a Adobe que ainda não tem carta porque só tem 16 anos, mas que conduz muito bem e com muita segurança, mereceu logo o meu sim.
Mais ou menos à hora combinada, aparece com a mota e dois capacetes, e lá vamos nós até ao Pateo. Foi uma manhã bem passada, bem diferente de estar em casa fazendo não sei o quê, talvez escrevendo. Obrigado, Adobe!
Bem-haja, professora Cristina!
21.03.2024, quarta feira - Treino militar?...
“Que voz é esta que se está ouvindo através de grande amplificação sonora?” Perguntei eu a Adobe que chegava da escola.
“É a instrução militar no quartel de Hera”, respondeu a moça.
Com efeito, hoje durante todo o dia fomos agredidos com decibéis, que umas vezes eram vozes de comandos, outras eram o ribombar e o rufar de tambores, e outras até era a banda militar. Começou muito cedo com o toque do clarim, com o içar da bandeira que em Timor é algo moroso e espetacular, e continuou pelo dia a fora com as práticas afetas à instrução em causa.
Não sei é por que se faz amplificação do som, de tal modo que aqui, em Ailok Laran , se ouvia com nitidez as vozes e os sons que comandavam. E dou comigo a pensar na marcha “O Magala” que o saudoso Max popularizou.
“Toca a marchar, andar a fartar / Se és bom militar galopa! / Anda pra frente / E mostra que és gente / E sabes andar na tropa!”
22.03.2024, quinta feira - Contra os mosquitos marchar, marchar...
Luta inglória esta, de perseguir adversários que tanto nos incomodam. Alguns quase invisíveis, que só nos damos conta deles depois da picada; outros que anunciam a sua chegada através de sonido irritante, as famosas melgas que até dão o nome a pessoas que não param de nos chatear. “És uma melga!...”
Mas o pior ainda é quando, furiosos, nos lançamos a eles na certeza que, com uma palmada, os vamos esborraçar e, afinal, acabamos de nos agredir a nós próprios com uma valente bofetada. Até os mosquitos se riem!...
Claro que temos as armas químicas que dão cabo deles. Mas, luta por luta, dão-nos um baile do caraças. Ouço alguém a cantar: “Não és homem p’ra mim...” Creio que nem o Dom Quixote de la Mancha nem o seu aio Sancho Panza nos poderão valer qualquer coisa. Aqui não há moinhos de vento, mas há muitos mosquitos contra que lutar. Contra os mosquitos marchar, marchar!...
23.03.2024, sexta feira - O que foi que ele disse...! O que foi que ele disse...!
Hoje ao almoço, na troca de encontrar provérbios com a Adobe, apanhei este que diz tudo sobre o modo de ser timorense. Mais a mais são os chineses, que por cá andam, os“paizinhos” deste dito.
Então o que é que eles dizem?... Aqui vai: “ os timorenses trabalham mas não suam; os timorenses comem e estão sempre a suar”. Este dito revela algo dos timorenses que, quem está por cá, pode observar.
Mas não diz tudo. Qualquer ser humano em qualquer parte do mundo não está feito para trabalhar desalmadamente, de modo a não ver mais nada que o trabalho, custe o que custar. Por isso os timorenses, e não devem ser os únicos, preferem ir trabalhando, de modo a garantirem a sobrevivência, mesmo que seja com pouco. Quem estará certo?
Trabalhar para viver ou viver para trabalhar?
Para a maioria das pessoas o trabalho em excesso serve para acumular riqueza, para ser maior do que o outro. Gente rica é outra coisa! Nem que essa riqueza não seja usufruída nesta vida, que é efémera. “Ricos e pobres sempre os tereis connvosco”... E enquanto durar esta dicotomia teremos de conviver como podemos, suando a trabalhar e suando a comer.É assim a vida!... (...)
25.03.2024, domingo - A caminho de Boebau
Viagem programada, que nos leva de novo até às terras montanhosas do interior deste país. O caminho já é sobejamente conhecido, até por que agora só este dá acesso a Boebau. Depois do temporal que se abateu sobre estes montes, que derrubou árvores de grande porte sobre o caminho, levou telhados de casas e danificou os postes da luz, havia alguma apreensão sobre esta viagem.
Pelo sim e pelo não, o Eustáquio fez o reconhecimento da passagem, em “motor”, e trouxe-nos a certeza de que, com algumas dificuldades, já se podia passar. E aí vamos nós (Adobe, Monízia, Fátima, Eustáquio e eu), de manhã, até Liquiçá, aonde tivemos algumas diligências a fazer.
25.03,2024, domingo - Tum-tum pela 1ª vez
Quem conhece um pouco da vida de Timor sabe bem que os Tum-tum são um meio de transporte muito peculiares: motor silencioso, decorações e música “ad libitum”, sem portas nem janelas, com quatro assentos, mas com lotação inesgotada. Cada cidade tem os seus, exceto Dili, a capital, que tem serviço de táxis tradicionais e os carros da Uber.
Por diversas vezes senti vontade de viajar neles, e é agora a ocasião. Como tivemos de parar em Lahuata para apanhar o professor Alarico, tomamos a decisão: o Alarico, eu, a Adobe e a Monízia vamos no Tum-tum; o Eustáquio e a Fátima vão na pickup.
E que viagem agradável!... Sem pressas, sem stress, observando regaladamente a paisagem, o movimento, dando e recebendo os cumprimentos de “bom dia!” Poderei até dizer que, em Liquiçá, o movimento de tantos Tum-tum é um grande cartaz de visita. E, há sempre uma primeira vez...
Ao princípio da tarde foi a 2ª etapa da viagem, sempre a mais difícil, a mais dolorosa pelas dificuldades do caminho: o leito da ribeira, as curvas e contracurvas, o caminho estreito, a profundeza de buracos, os troncos das árvores, os precipícios, as paisagens vertiginosas.
Mas chegamos sãos e salvos. Ok! Agora há que descansar e preparar a reunião de amanhã.
26.03.2024, segunda feira - Reunião com os Pais e Encarregados
Hoje é dia que escolhemos para reunir as escolas São Francisco de Assis e a escola de Kilo, os professores, os encarregados de educação de ambas as escolas, chefes e ex-chefes do poder local, com o objetivo de apresentarmos uma proposta de colaboração, que depois de ser dada a conhecer a todos os presentes irá ser discutida e votada.
Seguidamente será entregue na Educação Distrital da Educação de Liquiçá, que a fará chegar ao Ministério da Educação de Timor-Leste, juntamente com a lista de presenças.
26.03.2024 - “Devagar que tenho pressa!”
Sempre a aprender... E nada adianta que temos de começar a horas, porque aqui é assim.
A reunião está marcada para as 9.00 horas, mas ninguém me sabe dizer a que horas vai verdadeiramente começar. As pessoas vêm para passar o tempo que for preciso, mesmo que seja o dia todo.
Mas para isso há que assegurar a comida. Por isso o primeiro ato é o “matabicho”. Depois vem a reunião. E, depois da reunião o “almoço”. Por isso não adianta marcar horas. A gente junta-se para a reunião, mas também para conviver. E está bem assim. Aqui, na montanha, temos todo o tempo do mundo. Talvez até porque há pouca gente com relógio. Os relógios roubam-nos o tempo porque o controlam.
26.03 - Proposta de colaboração aprovada
É com regozijo que verificamos o interesse e a vibração com que esta proposta foi acolhida. Ninguém se manifestou contra, e por isso foi aprovada por unanimidade.
Todos se manifestaram prontos a fazer o que lhes for possível para que ela se concretize, a saber: alargamento do ensino escolar com o pré escolar e o 1º ciclo na Escola São Francisco de Assis, e o 2º ciclo (5º e 6º anos) na Escola de Quilo.
Será um benefício grande para a região, para as crianças e encarregados de educação, evitando que os seus alunos tenham de se deslocar para longe para continuarem a estudar.
Se conseguirmos que esta proposta se concretize, já valeu a pena estarmos em Timor pela quinta vez.
26.03 - A anona mais saborosa
Não há nada que pague estes momentos. De tarde, frente à casa do Cesáreo, avisto uma árvore que, só pelo fruto, consigo identificar. No início quase impercetíveis, para logo aseguir descobrir anonas abundantes.
Foi então que o Alarico, qual chipanzé trepador, sobe pela árvore afora procurando a anona mais madura. Que sabor! Que delícia! Que néctar divino! Foi com certeza a melhor anona que até agora já comi.
26.03 - Milho e mais milho... (Batar, em tetum)
Ao longo do caminho que percorremos até Boebau, fomos observando que, ao redor das casas por ali existentes, havia manchas amarelas em abundância. Quis saber o que era aquilo, e perguntei ao Eustáquio que, de repente me respondeu: “ Tiu, é batar, é milho que está a secar.”
Alguma vez eu pensava que no mês de março se secava o milho!...
Com o fuso horário trocado, dou comigo a pensar que, em Portugal, estas tarefas dão-se no mês de setembro. Ficamos com os neurónios num oito. Isto pode lá ser!?...
O melhor de tudo é esquecer esta disparidade e saborear este alimento tão generalizado no mundo, e base da alimentação de alguns povos. Que venha a broa de Portugal, que venha o batardan (##) de Timor-Leste, que venha o .......... do México!
Amarelo, vermelho, branco, ou mesmo às cores. Milho verde, milho maduro, em grão ou em massaroca. Venha milho, e vira milho!...
27.03.2024, terça feira - Afazeres em Liquiçá
A manhã foi passada com os alunos da Escola São Francisco de Assis, com atividades musicais, como é costuma sempre que por aqui estou. Depois do almoço na casa do Cesáreo, descemos outra vez até Liquiçá, para a Direção da Educação Distrital, e fim de completarmos e entregarmos a candidatura a um programa de melhoramento dos espaços escolares. Pode ser que caia alguma coisinha para o nosso lado.
Depois foi rumar até Dili, até Ailok Laran e encontrar o sítio tão desejado para fazer a toba (sesta), porque o cansaço já era tanto, que a vontade de chegar a casa era o nosso maior desidério.
28.03.2024, quarta feira - Aqui, em Timor, é assim.
Quinta feira Santa, em Ailok Laran. Logo, bem cedo, me dei conta do movimento não habitual. Cá em casa, todos buliam na limpeza e arrumação dos espaços.
Perguntei à Adobe o porquê desta agitação, e la pronto me deu a resposta: “Amanhã é sexta feira Santa, e não podemos varrer, nem cantar, nem fazer barulho”.
E, por mais que eu tentasse fazer-lhe ver que isso não tem importância, que noutros países, noutras terras não era assim, ela manteve a sua postura e respondeu-me: "Ok! Eu compreendo e sei que os costumes e hábitos de outras terras são diferentes mas, aqui em Timor é assim".
Temos de respeitar e seguir a tradição”. E pronto! Não está cá mais quem falou.
“ Ó tempora, ó mores!...” (###)
29.03.2024, sexta feira santa - Meditando...
A vida e a morte. Independentemente de qualquer ideologia ou religião, temos a certeza de que tudo o que nasce há de morrer. Mas será que este destino é linear? Será que nascemos para morrer, só e nada mais? Será que o nascimento não será o princípio de tudo o mais que possa acontecer? Nascer somente para morrer para morrer parece-me demasiado trágico.
Prefiro dar um sentido à morte, como uma passagem para outro modo de ser, seja ele qual for. Nem que seja para uma existência cósmica, para além do pó da terra. “Nada se perde: tudo se transforma” dizia Pascal. “Se a semente que cai naterra não morrer e germinar, não poderá dar o seu fruto”.
“Por cada flor estrangulada há milhões de flores que florescem”.
Hoje, dia em que os cristãos celebram a morte deJesus Cristo, quero acreditar que a morte tem sentido, sempre que ela traz transformação, salvação. Cristo Alfa e Ómega é ponto de partida e de chegada, segundo o antropólogo e teólogo Teillard de Chardin.
Mesmo que não concordemos com muito do folclore religioso associado às celebrações religiosas destes dias, faz-nos bem pensar de que isto tudo não acaba por aqui.
Que uma vida nova, melhor até do que esta que nos é permitido viver, é possível e desejável. E só assim consigo entender a atitude de São Francisco de Assis que, chamando irmãs a todas as criaturas, não se esqueceu de chamar também irmã à morte corporal.
A fé é um dom que podemos ou não aceitar e cultivar. Quem puder acreditar, acredite.
31.03.2024, domingo - Páscoa de 2024
Hoje, dia de Páscoa de 2024, amanheceu com o sol radiante aqui em Dili. Toda a natureza exulta de alegria: as aves, sobretudo a passarada, as árvores que viçosas ostentam os seus ramos e as suas flores, as pessoas que, anafaiadas (####), percorrem as veredas e caminhos deste recanto. Tudo parece feliz, tudo canta...Tudo é vida!
Neste país maioritariamente de religião católica, é fácil compreender a razão de todo estecontentamento. Jesus Ressuscitou! Nova vida, nova esperança para todos. A Páscoa é a certeza de que esta vida não acaba, apenas se transforma. A própria natureza, transborda este anúncio.
“Na natureza tu podes ver / o sol acaba sem medo / para o dia de novo nascer”.
É este elã vital que habita em cada um de nós que nos transforma e nos faz querer ser homens novos, com capacidade de ajudarmos a transformar este mundo num mundo melhor. Feliz Páscoa!...
(Revisão / fixação de texto, para efeitos de publicação deste poste: LG)
____________
Notas de LG:
(#) Veículo privado de transporte colectivo de passageiros. Origem etimológica obscura
"microlete", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2024, https://dicionario.priberam.org/microlete.
(##) Prato tradicional timorense à base demilho (batar)
(###) Frase latina, atribuída a Cícero: Que época, que costumes!
(####) Julgo tratar-se de um regionalismo beirão (o autor é do Sabugal...), derivado de "anafaia", do árabe... (Os primeiros fios que faz o bicho-da-seda, antes de formar casulo).
"anafaia", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2024, https://dicionario.priberam.org/anafaia.Para os leitores que se queiram associar a este projeto, aqui fica a conta solidária da Associação dos Amigos Solidários com Timor Leste (ASTIL) (Página do Facebook)
IBAN: PT50 0035 0702 000297617308 4