1. Mensagem do nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), com data de 25 de Julho de 2010:
Olá Camaradas
Para registo nas "Memórias boas da minha guerra", junto a história da "Cabra
do Berguinhas".
Em anexo vão algumas fotos para aproveitarem. O protagonista é o furriel
Faria, identificável de pé, "animado", com o António Rijo (grande figura do voleibol) à sua esquerda.
Um abraço e desejo de boas férias do
Silva da Cart 1689
Memórias boas da minha guerra (4)
A cabra do Berguinhas
A nossa Cart 1689 - Os Ciganos - era uma Companhia de Intervenção. E como tal, passou a maior parte do tempo de serviço em Operações Militares ao longo da Guiné.
Em muitas dessas operações atacávamos acampamentos e muitas vezes trazíamos cabritos e galinhas, usando de “truques especiais” para que uns não fizessem “mé-mé” e outras não cacarejassem. Numa operação, lá para os lados de Gubia (Empada), o Furriel Enfermeiro Faria, mais conhecido por Berguinhas ou por Pastilhas ou, ainda, por Doutor ( assim chamado na zona de Canquelifá, devido às “curas milagrosas” que conseguia), trouxe, ao colo, uma cabra ainda muito nova.
Tratava a cabra como se fosse um filho. Lavava-a amiúde, medicava-a e a comida nunca lhe faltava. Além disso, deu-lhe tanto carinho que se tornaram inseparáveis. Era a sua Princesa.
Estávamos em Catió, a comida não abundava e o apetite era grande. A gestão da messe pertencia, normalmente, àqueles sargentos que tudo fazem para amealhar mais uns cobres, tal como no rancho geral e quase sempre com a cobertura do respectivo oficial. Foi ali que conheci a Sopa 365, à qual num dia se acrescentava água, no outro arroz, estrelinha, etc. e, assim, dava para todo o ano. Conheci também um prato, assiduamente servido - Arroz com Arroz e Arroz e… algumas rodelas de salsicha.
O que nos valia, muitas vezes, eram os peixinhos da Bolanha em escabeche, pescados por nós (Silva, Valente, Faria…) as rolas do Valente, “domesticadas” com a G3 e os cabritos e galinhas, embora nem sempre se apanhassem nas operações e que, em Catió, não se conseguia comprar.
A Princesa cresceu, ganhou formas e pôs-se bonita. Era aloirada, de olhos claros com pestanas escuras e algumas madeixas na cabeça. A sua silhueta era esbelta onde se destacavam o longo pescoço bem como as pernas e ancas bem proporcionadas. Andava sempre junto do Berguinhas e ele acariciava-a tanto que o Valente exclamou: - Ó Berguinhas não me digas que és tu que lhe vais tirar o cabaço? - Solta a gaja para fora do quartel e deixa-a arranjar macho – disse eu. Mas o Cepa, com o habitual sentido racional , observou: - Ela já dá uma boa cabritada. - Ó Filhos da puta! – gritou logo o Berguinhas – Ai de quem lhe toque, que eu mato-o.
Mal ele a soltou, ela começou a aparecer muito bem acompanhada. E porquê? Porque, para além da sua beleza, o Berguinhas passou a investir fortemente no sabonete Cadum. Ele lavava a cabra, punha-a cheirosa, escovava-a. Depois levava-a à entrada do quartel (Porta de Armas), dava-lhe umas palmadas no traseiro, empurrando-a para fora e dizia “Vai minha puta. Vai, vai e trás um que seja jeitoso”.
Passaram a ser tempos abastados. Ela passava junto à messe com os mais variados pretendentes. Então, um do grupo dos Furriéis dizia para o Berguinhas, de forma a ser ouvido pelos outros militares alheios ao grupo: - Podes abater o castanho, que é meu. E logo outro acrescentava: - E para a próxima, pode ser o meu, o malhado.
Auxiliado pelo pessoal da cozinha, o Berguinhas, pendurava pelas patas traseiras, os apaixonados da cabra jeitosa. E foi assim que muitos cabritos foram bem aviados.
Mas houve um que nos fez tremer. Foi o caso do cabrito do Administrador. Por ser tão grande, nem parecia um cabrito. Mais parecia um touro. Era conhecido por toda a população e como era o Cabrito do Administrador, ele passeava o seu corpanzil e o seu apetite (sexual incluído) por onde queria. Entrava nas casas dos nativos e estes até tinham medo de o enxotar.
Ora este, quando descobriu a Princesa bem cheirosa, não a largou mais e os outros cabritos inibiram-se ou amedrontaram-se, deixando o caminho livre para o corpulento conquistador. Por coincidência, a nossa Companhia estava para, mais uma vez, para ser transferida, agora para Cabedu. E o Berguinhas não resistiu à tentação. Quando viu a cheirosa chegar, acompanhada pelo matulão, chamou-a para a zona do limoeiro onde, bem ajudado, rapidamente o agarrou e pendurou o referido meloso. Ficou com a cabeça inclinada, por estar a tocar no chão. Foram feitas fotografias, mostrando essa posição.
Parecia que tudo tinha corrido bem, mas, o sururu que os trabalhadores negros da construção da nova messe fizeram, quando viram a morte do gigante, deve ter passado as paredes do quartel.
Passava das treze horas quando o nosso grupo já havia rejeitado o prato (alternativo…) do almoço que, desta vez, era Esparguete com Esparguete e Esparguete e… algumas rodelas de salsicha. O assado estava propositadamente atrasado a fim de se evitarem quaisquer reacções hostis, enquanto os outros comiam. E quando estávamos na mesa, junto da porta, já de ferramenta nas mãos, ficámos boquiabertos ao vermos aproximarem-se o nosso Comandante de Batalhão e o Administrador de Catió.
E ouvíamos o nosso Comandante: - Oh Senhor Administrador, olhe que até lhe fica mal, uma coisa destas. Então o Senhor não sabe que a Companhia de Intervenção traz cabritos e galinhas das Operações?
- Mas, oh Senhor Comandante, toda a gente conhece aquele cabritão e os empregados viram matá-lo lá atrás da messe, respondia o Administrador.
- Por favor, Senhor Administrador, não caia no ridículo, tenha calma. A essa Companhia não faltam cabritos. Coitados, é uma pequena compensação de tanta porrada que têm tido- insistia o comandante, que agora lhe colocava a mão sobre um ombro e procurava desviá-lo. – Vamos beber um whisky.
Foram rodando e baixando o tom do diálogo. Então o Machado, que era dos que sofria mais do “frio nos dentes”, ordenou em voz alta: - Saia cabrito!
O Administrador ainda deu uma olhadela para trás e terá visto que já ninguém tinha as mãos vazias e que ninguém usava as ferramentas. Grande petisco!
Alguns dias depois, já em Cabedu, fomos surpreendidos com a descida de uma avioneta. Estava de passagem e trazia o correio de Bissau. E como viram nela um acompanhante, logo se ouviu o Miranda a gritar: - Foge Berguinhas que vem aí o Administrador.
Mas foi alarme falso.
A Princesa acompanhou-nos, além de Catió, por Fá, Cabedu, Canquelifá, Bambadinca e Bissau. Sim, em Bissau, no Quartel General! O Furriel Faria, devidamente fardado, levou a Cabra amarrada por um cordel, desde o cais da Amura, pela Avenida, até ao QG – Quartel General das Forças Armadas da Guiné, para onde a nossa Companhia foi transferida no final da comissão.
Nesta foto: da esquerda para a direita - Dias, Valente, Silva, Faria (Berguinhas) e Machado.
O Berguinhas andava triste. Aproximava-se o dia do nosso regresso e ele não sabia que fazer com a cabra, que ali vivia em instalações secretas, embora de primeira classe. Pedia conselhos mas também ninguém sabia dá-los. Trazer uma cabra da Guiné era impossível. Vendê-la, seria uma traição para quem tanto nos tinha ajudado.
Dá-la, não havia quem a merecesse. Ninguém queria ser injusto com aquela querida Princesa mas, veio ao de cima a racionalidade daquele grupo, que tantas privações e desgostos havia sofrido. Tal como acontecera em dia de morte de colegas, lá teríamos que beber mais uns copos para esquecer. E, embora desta vez o luto não fosse assim tão grave, é certo que a tristeza também nos invadiu. Ao contrário do barulho das outras patuscadas, esta foi em silêncio, como se tratasse de uma cerimónia religiosa.
Não foi o Berguinhas que a imolou, mas quando estava a (tentar) comer, as lágrimas escorriam-lhe pelas faces. E todos nós, que até nem bebíamos mal, tivemos que beber muito mais para que o ambiente geral melhorasse.
(Silva da Cart 1689)
__________
Nota de CV:
Vd. poste de 23 de Julho de 2010 >
Guiné 63/74 - P6777: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (3): Os sonhos do Farinha