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sábado, 22 de março de 2025

Guiné 61/74 – P26607: (Ex)citações (530): Guiné, da escravatura à carne para canhão. (José Saúde)


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.

Guiné, da escravatura à carne para canhão 


Camaradas,

Os tempos, que por ora atravessamos, remete-nos para outras eras em que a escravatura eram “dotes” de senhores cuja presunção os remetia para a escravidão de seres humanos, sobretudo de gentes de linhagem negra.

Camaradas, sabeis que essas jactancias pressuponham poder absoluto sobre o mundo que certamente os rodeava, logo, o homem e as mulheres negras eram simplesmente matéria que rendiam dinheiro, por isso cada qual valia bastardos cruzados e os “magnatas” não olhavam a meios para atingir os seus fins.

Mais tarde, em pleno século XX, nós não fomos escravos como aqueles de antigamente, mas sim jovens militares atirados para as frentes de uma guerra colonial que fora demasiado cruel.

Deixo um pequeno texto do meu livro – UM RANGER NA GUERRA COLONIAL – GUINÉ-BISSAU 1973/1974 – Edições Colibri, Lisboa

Guiné, da escravatura à carne para canhão

Escravos e combatentes


Imagem retirada da internet

Numa apurada caminhada sobre a problemática dos antigos escravos na Guiné, seres humanos que sofreram as amarguras da crueldade de uma atroz escravidão por parte de genuínos patrões de “carne para virtuais fregueses”, pessoas sem escrúpulos, maliciosos, miseravelmente déspotas e que usufruíam da sua condição senhorial para atingir infinitos objetivos, servindo-se, simultaneamente, das obsequiosas mulheres para os prazeres sexuais, eis o retrato de uma sociedade onde os poderosos de outrora ditavam lei.

Investiguei o tema escravos numa Guiné que todos conhecemos. Andei por trilhos, agora desarmadilhados, e deparei-me com a fundação de uma tal Companhia do Cacheu que no século XVII terá sido determinante para a comercialização de escravos. Naquele local controlava-se, olho por olho, o negócio. As caravelas portuguesas levavam tecidos, barras de ferro, muitas bugigangas, álcool, de entre outras mordomias, e aí executavam a troca direta, recebendo escravos, pimenta de entre outros objetos de valor.

Para se efetuar o respetivo comércio havia os intermediários que eram, naturalmente, os armadores e os régulos. Existiam, também, os lançados, homens brancos, sendo que alguns deles tinham a origem judia que interferiam, à socapa, no tráfico e que atuavam no negócio à revelia das autoridades ali existentes.

A curiosidade desta demanda remete-nos para as queixas que tanto os capitães-mores como os comerciantes mais fortes, que partilhavam os dividendos do comércio de escravos, lançavam àqueles que, para eles, atuavam à margem das regras legais impostas pelas autoridades oficiais.

Este pequeno introito sobre o comércio inicial de escravos no Cacheu, transporta-nos para séculos posteriores, ou seja, para a guerra na Guiné, século XX, na qual fomos atores forçados. A 23 de janeiro de 1963, na região de Tite, iniciaram-se as ações da guerrilha, estendendo-se depois a todo o território, sendo que a luta armada só terminou em 1974, mercê da Revolução dos Cravos, o 25 de Abril.

E se o PAIGC se revelou como o partido da revolução no solo guineense, na Metrópole, Lisboa, a capital do Império, os senhores da guerra enviavam um outro tipo de escravos para o cenário da peleja, os chamados carne para canhão.

Creio, conscientemente, que o termo carne para canhão não é um ímpeto deselegante, e nem tão-pouco o deverá ser. Pelo contrário, ele reflete uma realidade conhecida por todos os camaradas. Isto porque enviar jovens para as frentes de combate com uma arma na mão cujo estatuto era matar para não morrer, significava que os nossos soldados, muitas das vezes, davam o corpo às balas numa pura e simples veracidade que eles, meninos e moços, se apresentavam para os teores da ferocidade da guerra como “miúdos” indomáveis que literalmente resvalavam para a meteórica expressão denominada como carne para canhão.

Se os escravos, vendidos aos lotes para patrões de outros continentes, o europeu nomeadamente, sendo o lote das mulheres melhor taxado, a condição física dos homens passava por monotonizar minuciosas visualizações, isto é, o conhecer da força, a doutrina da composição de toda a massa muscular, as doenças africanas, a saúde dos dentes, vistorias às partes íntimas, de entre outras malazengas, nós, eternos camaradas e antigos combatentes, éramos a tal carne para canhão, onde os aspetos físicos que cada um apresentava pouca ou nenhuma importância teria para uma missão deveras agressiva.

Falamos, e é verdade, de sistemas e de conteúdos completamente diferentes, melhor, de sistemas sob uma ancestral matéria humana conhecida nos séculos XVII e XX, contudo, os elos que unem os antigos combatentes resvalam para restos de uma escravatura que se propagou no tempo num agreste terreno de batalha chamado Guiné.

Este entrosar de realidades observadas, em séculos diametralmente diferentes, volto a referir, é somente o reavivar de histórias passadas, sendo o conflito da Guiné um dado real por todos nós conhecido.

Escravos além de combatentes? Admitamos um pouco que sim! Não fomos “vendidos” em lotes, nem tão-pouco sujeitos a humilhações humanas, ou motivo para notórias vistorias corporais, mas sim atirados sem dó nem piedade para Batalhões, Companhias ou Pelotões onde o fator da morte estava sempre iminente.

Em Gabu fui, tal como muitos dos milhares de camaradas que por lá passaram, mais um elemento onde o fenómeno da escravatura se enraizou em combatentes que tudo fizeram para salvar a pele. Restava o pacato aguardar pelo fim da comissão militar, mas isentos de eventuais marcas de guerra e sobretudo bem vivo.

Factualidades de um tempo sem tempo!



Mulheres seu papel de escravas  
    
Abraços, camaradas
José Saúde
Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523
___________
Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em: 

19 de dezembro de 2024 » Guiné 61/74 – P26291: In Memoriam (529): Comandante Almada Contreiras (1941-2024), um antigo camarada que conheceu as terras da Guiné, e um dos militares do 25 de Abr (José Saúde)

 

Guiné 61/74 - P26606: Desaparecido do nosso radar (2): Silvério Dias, o "senhor PIFAS!



A mascote do Programa [de Informação]  das Forças Armadas (PIFAS), da responsabilidade da Repartição de Assuntos Civis e Acção Psicológica. Autor (até à data) desconhecido.  Imagem cedida  pelo nosso camarada Miguel Pessoa, cor pilav ref (ten pilav, Bissalanca, BA 12, 1972/74). 



1. Publicou há dias o Manuel Resende na página do facebook da Magnífica Tabanca da Linha > 6 de março às 17:34 

Caros Magníficos, já procurei em tudo onde podia estar o nosso Magnífico, e não o encontro. 

Alguém sabe dele? 

Mora(va) em Oeiras, o telefone está desligado, já contactei alguém da Biblioteca de Vila Velha de Ródão, onde ele era colaborador e natural, e ninguém sabe dele. 

Silvério Dias

Tinha um blog "Poeta Todos os Dias", desactivado desde finais de 2023. Disse-me ele, "Manel,  publico todos os dias alguma coisa em verso até morrer".

O seu nome é Silvério Pires Dias.

Se alguém souber algo sobre ele, diga.



2. Comentário do editor LG:

O nosso camarada o Silvério Dias, 1º srgt ref, ex-radialista do PIFAS, grão-tabanqueiro nº 651 (*),  é um cso extraordinário de "resistência e resiliência" contra os "males da idade"...

Mas também deixei, infelizmente, de ter notícias dele (**), depois do último convívio da  malta do Pifas no "Páteo Alfacinha", em Lisba, em 9/9/2023, com a presença do general Ramalho Eanes (***).

Tinha então 89 anos completados em 18 de agosto. Ainda me desafiou para aparecer, o que não me foi possível por estar fora de Lisboa. Um das últimas vezes que o vi, erá sido em Oeiras, em 2017.



Oeiras > Galeria-Livraria Municipal Verney > 4 de março de 2017 > 15h00 - 16h30> A antiga equipa que deu voz e alma ao PIFAS: o primeiro sargento Silvério Dias (nosso grã-tabanqueiro nº 651) e a famosa "senhora tenente", sua esposa.

Foto (e legenda): © Luís Graça (2017). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Recorde-se aqui, muito sumariamente,  o  percurso de vida do nosso camarada Silvério Dias: 

(i) nasceu em 19/8/1934,  em Sarnadinha, Vila Velha de Ródão  

(ii) como militar passou pela Índia, Moçambique e Guiné (ex-2º srgt art, CART 1802, Nova Sintra, 1967/69):

(iii) 1º srgt art, locutor do PFA - Programa das Forças Armadas, 'Pifas', Bissau QG/CTIG, 1969/74, onde trabalhou com Ramalho Eanes e Otelo, entre outros; 

(iv) civil, foi delegado de propaganda médica, 1974/76, em Bissau; 

(v) 1º srgt art ref, casado com a "senhora tenente", também do 'Pifas',  vivia em Oeiras até finais de 2023;

(vi) editou, até 26/11/2023,  o  blogue "Poeta Todos Dias"  (criado em 2011 e onde todos os dias, publicava um, dois, três, quatro , cinco ou seis apontamentos poéticos, em geral, quadras populares, sobre temas do quotidiano, e suas memórias de militar);

(vii) teve, até então, cerca de 526,5   mil vizualizações de páginas;

(viii)  apresentou  na Biblioteca Municipal de Vila Velha de Ródão em 23 de março de 2017 o seu livro  de poesia "Neste lugar onde nasci" (2017); 017, o seu livro  de poesia "Neste lugar onde nasci" (2017) (,

(ix) é membro da Tabanca Grande desde 24/3/2014; tem cerca de 3 dezenas de referências no nosso blogue.

Se alguém tiver notícias do Silvéro Dias, que partilhe connosco.

________________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 24 de março de 2014 > Guiné 63/74 - P12894: Tabanca Grande (430): Silvério Dias, 1º srgt art ref, o senhor PIFAS, e "poeta todos os dias!...Nove anos de permanência em terras guineenses, incluindo uma comissão na CART 1802 (Nova Sintra, 1967/69)... É agora o grão-tabanqueiro nº 651

(**) Último poste da série > 3 de maio de 2021 > Guiné 61/74 - P22168: Desaparecido do nosso radar (1): António Duarte de Paiva, ex-sold cond ambulâncias, HM 241, Bissau, 1968/70

(***) Vd. poste de 9 de setembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24636: Convívios (972): Almoço/Convívio do pessoal do Programa das Forças Armadas da Guiné (PIFAS), hoje, 9 de Setembro de 2023, com a presença do senhor General Ramalho Eanes (João Paulo Diniz)

Guiné 61/74 - P26605: Os nossos seres, saberes e lazeres (674): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (197): Bruscamente, no Natal passado, uma viagem relâmpago a Ponta Delgada – 1 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Dezembro de 2024:

Queridos amigos,
Nem me passava pela cabeça, já numa certa efervescência da quadra de Natal, aterrar em Ponta Delgada para me integrar nas comemorações de uma associação de consumidores que ajudei a impulsionar e tenho acompanhado a florescência, com a ternura de ver tal filhote já na maioridade, e tratado com respeito pelo trabalho desenvolvido; pois assim aconteceu, tinha que vir lesto e pronto a perorar, o que para mim não tem problema, reformado vai para 12 anos continuo a estudar o que se passa na política de consumidores um pouco por toda a parte, o que me facilitou a vida quando a Fundação Francisco Manuel dos Santos me convidou para escrever um livro sobre a sociedade de consumo e os consumidores em Portugal. Foram 48 horas, mas deu para o deslumbramento, tudo acabou em apoteose quando, era a última etapa da minha intervenção, fui à RDP Açores, quem me entrevistou foi o jornalista Sidónio Bettencourt que conheci nos estúdios da antiga Emissora Nacional (na rua de São Marçal, não muito longe do Palácio de S. Bento), era ele estagiário, gravou um programa da minha responsabilidade, trabalho que eu gabei, vim a sugerir que ficasse como funcionário naquela estação emissora, ele quis voltar à sua terra, e passadas estas décadas foi a grande alegria do reencontro.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (197):
Bruscamente, no Natal passado, uma viagem relâmpago a Ponta Delgada – 1


Mário Beja Santos

Recebo um telefonema do meu amigo Mário Reis, secretário-geral da ACRA – Associação dos Consumidores da Região dos Açores, invoca a nossa estima recíproca de longa data para vir a S. Miguel às comemorações dos 35 anos desta associação que ajudei a fundar, e que com tanto carinho acompanho. Por razões orçamentais, alega, tem de ser quase já, marca-me datas, sinto-me compelido a não poder recusar, enquanto falamos lembro-me daquela tarde em que estive na conferência inaugural, corria o ano de 1989, para minha surpresa, o então Presidente do Governo Regional, Dr. Mota Amaral, proferiu uma alocução de impressionante abrangência, qualidade e sentido premonitório. Outro motivo que me impelia a não recusar é que finalmente entrara em funcionamento o Centro de Arbitragem de Mediação de Conflitos de Consumo dos Açores, a ACRA via-se agora na obrigação de mudar os azimutes, queria ouvir opiniões. Fiz a mala, onde meti umas dezenas de livros de consumidores e pus-me ao caminho. Entrara-se na quadra de Natal. O Mário vai-me buscar ao aeroporto, despeja-me à porta de um hotel, tenho o anoitecer e o resto do dia por minha conta. É um espaço que me é muito familiar aquele que vou agora percorrer pelos meus próprios pés, rever tudo, estou certo e seguro, é uma lavagem para a alma. E assim vai começar a primeira deambulação, o anoitecer está mesmo próximo.
Quando aqui cheguei, em outubro de 1967, este espaço da avenida já existia, o panorama ao fundo nas colinas verdejantes é quase o mesmo, salvo o crescimento do casario. O molhe do porto era um semicírculo, ainda estou a avistar a sua ponta em direção àquele cruzeiro gigante, dizia-se que este porto era obra dos alemães, 1937, talvez na previsão de que esta região atlântica ficaria sob custódia germânica. Indo por aqui fora, aí quilómetro e meio à frente, é uma zona de recreio, chamemos-lhe as docas, em 1967 esta Avenida Infante D. Henrique parava perto da Igreja de S. Roque, havia uma piscina e nada mais. Aqui me detenho a rememorar o encantamento que este passeio marítimo me ofereceu e continua a oferecer.
Ao som da música alusiva à quadra de Natal, avanço em direção ao largo da Câmara Municipal onde descubro este presépio iluminado, onde não faltam as Portas da Cidade, o ex-libris de Ponta Delgada.
Aqui estão as Portas da Cidade, o mar chegava mais próximo como se pode ver num quadro célebre de Domingos Rebelo alusivo aos emigrantes, ali no fim do lado esquerdo desembarcou a família real na sua visita oficial em 1901.
Chama-se Jardim Sena de Freitas, nasceu em Ponta Delgada este historiador e polemista considerado uma das figuras mais importantes do catolicismo na monarquia constitucional. É um espaço frondoso e florido que tem ao fundo o Palácio da Conceição, já foi convento, residência do governador civil e é hoje a residência do Presidente do Governo Regional dos Açores (mantém o seu escritório no Palácio de Santana), aqui se realizam as reuniões do Governo.
Pus-me defronte do Palácio da Conceição, tinha entrada aberta àquela hora tardia, entrei e disseram-me que podia visitar a exposição alusiva à autonomia açoriana, fazer uma visita guiada ao interior do palácio e visitar ainda na sala do coro baixo uma exposição dedicada a Mota Amaral. A curiosidade foi mais forte, entrei todo pimpão, dei por muito bem passado o tempo que aqui estive e o que pude conhecer. Não conhecia este cartaz dedicado aos expedicionários para aqui enviados durante um bom período da Segunda Guerra Mundial, o quartel onde dei duas recrutas, nos Arrifes, a cerca de 7 km de Ponta Delgada, foi inicialmente previsto para ser hospital de guerra, felizmente nunca chegou a funcionar nessa vertente, transformou-se no Batalhão Independente de Infantaria n.º 18.
A bandeira que é o símbolo da região
Uma das surpresas da visita guiada foi constatar que nas obras mais recentes ao palácio descobriu-se a existência de dois grandes tanques no que terão sido os jardins do claustro conventual, há mesmo um fontanário e sinais da existência de canais, havia água que vinha das terras e que inclusivamente contribuía para o abastecimento da população local. Está tudo desentulhado, bem iluminado, é um espaço surpreendente
Não vos vou falar da exposição dedicada a Mota Amaral, tocou-me este elemento expositivo, o recorte de uma fotografia que tem na sua base um aglomerado de lava com nove porções, o conjunto arquipelágico, ele foi o primeiro Presidente do Governo Regional (1976-1995), foi deputado da Assembleia Constituinte, deputado da Assembleia Nacional e Presidente da Assembleia da República. Acho esta simbologia do aglomerado de lava sob os olhos do político uma marca de talento artístico.
É uma das portas laterais da igreja matriz, um belo tardo-gótico, fui surpreendido pela iluminação, viera até aqui para ficar a olhar para um primeiro andar onde o meu saudoso amigo, o médico oftalmologista José Luís Bettencourt Botelho de Melo, tinha consultório, não foram poucas as vezes que ali combinámos o nosso encontro para depois ir jantar e matar saudades da Guiné.
Estou agora no largo de S. Francisco, o mesmo onde há um convento onde se guarda a imagem do Senhor Santo Cristo dos Milagres, num dos bancos ali Antero de Quental pôs termo à vida. Muitas vezes descia a rua de Lisboa, onde tinha o meu quarto e passava diante deste lugar que era o hospital, o hospital mudou de lugar (antes fora convento), está agora transformado num belo hotel.
Neste banco pôs termo à vida um dos mais influentes poetas românticos portugueses, Antero de Quental, é desse tempo aquela âncora com a palavra esperança, que torna esse tremendo desfecho tão mais chocante.
Aproxima-se o Natal, vê-se à direita outra porta lateral em estilo tardo-gótico da igreja matriz, é impressionante o bulício, as diversões para os mais jovens, a atmosfera musical, caí agora no tropel das compras ou dos passeios dos curiosos, sinto agora uma fraqueza de quem andou a comer sandes e precisa de uma sopa quente. Até já!

(continua)

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Nota do editor

Último post da série de 15 de Março de 1971 > Guiné 61/74 - P26587: Os nossos seres, saberes e lazeres (673): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (196): From Southeast to the North of England; and back to London (14) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 21 de março de 2025

Guiné 61/74 - P26604: Humor de caserna (107): "Teixeira Pinto colonizou a Guiné sem arcas frigoríficas", disse o Intendente em Bissau... Ao que o capitão, no mato, retorquiu: "Solicito envio urgente do Teixeira Pinto" (Aníbal José da Silva, ex-fur mil SAM, Vagomestre, CCAV 2383, Nova Sintra e Tite, 1969/70)



Guiné > Região de Quínara > Nova Sintra > CCAV 2483 (1969/70) > O magarefe Feio a desmanchar um javali, apanhado numa armadilha...Foto (e legenda): © Aníbal José da Silva (2025). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Guiné > Região de Quínara > Nova Sintra > CART 2711 (1970/72) > s/d > Largada de frescos e correio, de paraquedas... Foto do álbum de Herlânder Simões, ex-fur mil d"Os Duros de Nova Sintra", de rendição individual, tendo estado no TO da Guiné, em Nova Sintra e depois Guileje, entre maio de 1972 e janeiro e 1974.

Foto (e legenda): © Herlânder Simões (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Região de Quínara > Carta São João (1955) > Escala de 1/50 mil > Posição relativa de Bolama, São João, Nova Sintra, Serra Leoa, Lala, Rio de Lala (afluemte do Rio Grande de Buba)

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2020)





Aníbal José (Soares) da Silva, ex-fur mil SAM, vagomestre,
CCAV 2483 / BCAV 2867, "Cavaleiros e Nova Sintra", Nova Sintra e Tite, fev 1969/ dez 1970); técnico de seguros reformado; mora em Vila Nova de Gaia; é nosso grão-tabanqueiro nº 898; é autor da série "Vivências em Nova Sintra"; coautor do livro "A Guiné que conhecemos: na sequência do livro Histórias dos 'Boinas Negras' ",  ed. lit. Jorge Martins Barbosa. Porto: Fronteira do Caos, 2022, il, 402 pp.)


1. No último poste da série "Vivências em Nova Sintra" (*), o Aníbal José da Silva publicou um texto sobre a nossa alimentação, que eu comentei nestes termos:

(...) Fabuloso este texto do nosso vagomestre!... Dou-lhe os parabéns... Já o li e reli e vou comentar com mais calma. 

Os nossos filhos e netos, criados felizmente com mais fartura, deviam lê-lo e comentá-lo. Esta era realidade (brutal, em matéria de alimentação) de quem vivia no mato... 

Sei o que era receber, só para mim e o cabo das transmissões, uma lata de 5 kg de fiambre (dinamarquês...) numa Sinchã Qualquer Coisa onde estive destacado com a minha  seção de soldados fulas, muçulmanos, "desarranchados" (e que não comiam carne de porco)... 

Eu mais o cabo empanturrámo-nos de fiambre, num só dia... o resto foi para os cães e os "djubis" da tabanca, que lhe chamaram um figo...Um ou outro soldado lá terá quebrado o tabu alimentar religioso... Já não posso garantir, com total certeza, se algum deles provou o fiambre dinamarquês que me mandou o vagomestre da CCAÇ 12, o Jaime Soares Santos,  no reabastecimento semanal ou quinzenal... (Devo lá ter estado uma semana ou duas em reforço do sistema de autodefesa, logo no princípio da comissão (...).


Também o "(António) Carvalho de Mampatá" (que era fur mil enf,  CART 6250/2, 1972/74) comentou o poste valorizando a abordagem da questão da alimentação das NT no TO da Guiné e dos tratos de polé que tinham de dar-se os pobres dos vagomestres para nos encher o prato (e a barriga):

(...) O retrato que nos faz o Aníbal Silva do exercício da sua comissão enquanto vagomestre , é precioso ou até preciosíssimo. 

É a primeira vez que leio um depoimento com esta qualidade de pormenor. Fez-me bem lê-lo porque, desde logo, me fez imaginar no lugar dele ou de qualquer outro furriel vagomestre, numa aflição permanente, a tentar dar o melhor aos seus camaradas, sem ter onde comprar fosse o que fosse. 

A partir de hoje verei com outros olhos esses camaradas, os quais muitas vezes levavam com a revolta de toda a companhia quando, a maior parte das vezes não podiam fazer melhor. (...)  (*)


2. Um excerto deste poste merece figurar na nossa série "Humor de caserna" (**)...

O Aníbal, para além de ter sido um esforçado,  imaginativo e honestíssimo vagomestre que foi parar, ingenuamente, a Nova Sintra, por troca com outro camarada que ficou em Jabadá, na margem esquerda do rio Geba,  é um bom contador de histórias e tem sentido de humor. 

A gente aprendeu, na Guiné, a rir-se da porca miséria do nosso quotidiano  e das "mordomias" que a tropa nos dava... desde os "hotéis de cinco estrelas" em noites de raios e coriscos, às intragáveis rações de combate e aos vegetais "liofilizados" pelo Natal... 

Com tantas agruras por que passámos,  não valia a pena chorar... Bem, ao menos hoje a gente ri-se...ou sorri.

Com esta partilha de memórias sobre as agruras da vida de um vagomestre (que eram por tabela também as nossas agruras...), o Aníbal vai ajudar a abrir a "porta"  do nosso blogue a outros vagomestres, camaradas que devem ser credores da nossa gratidão por, na generalidade dos casos, terem feito o melhor que podiam e sabiam para nos garantir "o pão nosso de cada dia".. 

Como o António Carvalho diz, eram, pelo contrário, e  muitas vezes, o "bode expiatória" da nossa raiva, no rancho e na messe... Quantas pragas não rogámos aos "filhos da p*ta do nosso primeiro e do nosso furriel vagomestre"!...

É uma história "kafkiana", a do quotidiano dos nossos vagomestres... Dá para rir, com um sorriso amarelo e meia-cara... 

De qualquer modo, e ao fim de 20 anos a blogar,  não chegam a 4 dezenas as referências a esta figura da tropa, que era/é, o vagomestre (do francês, vaguemestre, do alemão, Wagenmeister: originalmente, o oficial, no Antigo regime, responsável pela gestão das colunas logísticas e, portanto, das provisões; depois, o sargento, responsável pelo correio militar, no exército francês; ou o responsável da alimentação de uma subunidade, no exército, português).

Já o Napoleão dizia que “um exército marcha sobre seu estômago” (""une armée marche avec son estomac"). Ou, por outras palavras, não se faz (e muito menos se ganha) a guerra de barriga vazia... (***)


As agruras da vida de um vagomestre

por Aníbal José da Silva


A alimentação para 160 homens, pela qual eu era responsável, era má. Lá diz o ditado que sem ovos não se pode fazer omeletes, nem transformar pedras em pão. Não podia transformar o chouriço enlatado num bom bife. 

Todos os géneros alimentares vinham da Manutenção Militar de Bissau. Não havia em Nova Sintra população civil a quem, eventualmente, pudesse comprar o que quer que fosse. As populações mais próximas estavam em Tite a 20 km, mas a estrada estava inoperacional tendo sido abandonada. Havia ainda, também a 20 km, o destacamento de S. João que ficava defronte a Bolama, mas separado pelo largo rio. 

No inicio da comissão ainda cheguei a comprar galináceos e porcos, quando lá fomos buscar o primeiro reabastecimento, mas foi sol de pouca dura, porque o CIM  (Centro de Instrdução Militar) em Bolama comprava tudo. 

Para além disso a estrada Nova Sintra a S. João estava normalmente minada e era por ela que as colunas de reabastecimento eram feitas. Lembro que por duas vezes nesta estrada foram acionadas minas que provocaram a morte a quatro camaradas e vários feridos, pelo que fazer uma coluna para ir às compras estava fora de questão.

Durante um mês, em vinte e sete dias eram fornecidas refeições à base de enlatados: chouriço, sardinha e atum de conserva, dobrada liofilizada, que era intragável, e eventualmente fiambre. 

As refeições de bacalhau eram sempre bem vindas, pena é que a Manutenção, em Bissau, só fornecesse metade do que era pedido.

Uma vez por mês eram recebidos géneros frescos (sardinha ou carapau, frango, ovos e alguns legumes), que tinham de ser consumidos em três dias, dada a precariedade das arcas congeladoras que funcionavam a petróleo e entupiam com facilidade. 

Luz elétrica só havia à noite. Durante esses três dias e à noite, dois homens faziam vigilância ao bom funcionamento das arcas. 

Um frango (por homem) podia dar para duas refeições, mas tinha de ser consumido quase de imediato, porque senão estragava-se. O grão-de-bico, o feijão frade e branco, o arroz e o esparguete, eram a base diária das refeições. Depois era só juntar o chouriço. Pela Intendência nunca nos foi fornecida carne de bovino ou de porco.

(...) Foi decidido que eu fosse a Bissau comprar carne congelada, na Manutenção Militar ou em talho civil. Assim foi feito. Aproveitando a passagem semanal da avioneta de sector, que trazia e levava o correio, desloquei-me a Bissau. Consegui comprar alguma carne de vaca. Transportei-a na bagageira e no  banco traseiro de um táxi até à base de Bissalanca, onde aluguei uma avioneta civil. Depois carreguei as peças de carne, às costas, desde o táxi até à avioneta. 

Enviei uma mensagem para Nova Sintra para que as arcas ficassem vazias, diga-se, de Coca-Cola, Fanta e principalmente cerveja, o que constituía outro sacrifício. 

Chegado ao quartel,  e dada a temperatura e humidade, já não se podia dizer que a carne estivesse totalmente congelada. Dada a precariedade das arcas, alguma carne estragou-se e a restante teve de ser consumida à pressa. Chamava-lhe eu a tortura da carne. 

Meses depois repeti a façanha, só que desta vez estragou-se mais carne. Dada a dificuldade de conservação e os custos,  inviabilizaram-se novas façanhas.

A caça tornou-se um filão a explorar. Liderada pelo António Soares (já falecido),  foi criada uma equipa de caça. Conseguimos abater algumas gazelas, pois não havia animais de maior porte. Mas durou pouco tempo porque as gazelas desapareceram da região.

Em determinado dia uma equipa de caça constituída por furriéis, foi tentar apanhar javalis. Mas nem vê-los ou sinal deles. Os javalis que conseguimos apanhar foram através de armadilhas. 

Numa zona de mangais, onde à noite eles iam comer o fruto caído, era colocado um arame de tropeçar preso a duas árvores. Ao arame prendiam-se granadas de mão sem cavilha. 

Na procura de alimento os javalis tocavam no arame e as granadas explodiam provocando-lhes a morte. No quartel que distava mais ou menos dois quilómetros, ouviamos os rebentamentos e dizíamos: “amanhã temos carne fresca”.

 O Feio, magarefe na vida civil, tratava de os abrir, limpar e esquartejar.

Todas as gazelas e javalis foram para outras paragens. Em toda a comissão foram pouco mais de uma dúzia destes animais que conseguimos caçar.

Restava a pesca. Não havia barcos nem canas mas havia granadas de mão. Aproveitando a maré baixa do rio e as represas que se formavam, eram lançadas granadas e o rebentamento elevava no ar uma espécie de repuxo de água, juntamente com umas dezenas de peixes, que depois ficavam a boiar na água. Depois era só apanhar, meter em sacos de linhagem, amanhar e cozinhar. Esta atividade foi a mais duradoira.

Para além do infortúnio da falta de géneros frescos, havia um outro problema que agravava a situação: a deterioração de alimentos. Um bacalhau com batatas caía sempre bem, tal como batatas fritas e fatias de fiambre. Mas muitas vezes ao abrir um caixote de madeira com 25 quilos de bacalhau ou uma lata grande de fiambre,  estes produtos estavam totalmente estragados e lá se iam os petiscos.

No que diz respeito à batata, produto também muito fácil de apodrecer, dados os trambolhões que levava no transporte e a humidade, para evitar grandes perdas, dia sim dia não, dois soldados retiravam as podres das prateleiras.

Os ovos que recebíamos mensalmente, em doses razoáveis, também se estragavam muito. Numa das vezes, porque havia algumas dúzias com a probabilidade de deitar ao lixo e coincidindo com o Dia da Cavalaria, o 21 de Julho, também data do meu aniversário, resolvi antecipar o Natal, mandando confecionar rabanadas. E mais um azar aconteceu. 

Alguns soldados estavam a assistir à fritura das ditas, muito próximos das grandes fritadeiras, lambendo os lábios à guloseima, quando se iniciou uma flagelação ao aquartelamento. 

O pessoal na ânsia de procurar uma vala onde se proteger ou o seu abrigo, bateu com as pernas nas pegas das fritadeiras,  virando-as. Após o ataque e refeitos do susto, ainda se aproveitaram algumas que não tiveram contacto com a terra e restou o cheiro para consolar.

O pão. Tivemos dois padeiros. O primeiro foi o Pedroso de Almeida, que habitava no meu abrigo e dormia no primeiro andar do meu beliche. Teve dois azares. Num dia ao acender o forno com gasolina virou-se de costas e a chama queimou-o. Foi evacuado para o Hospital Militar em Bissau. O segundo foi-lhe fatal. Morreu no acidente do rebentamento da mina de 24 de julho de 1969.

O segundo padeiro foi o José Manuel Bicho que exercia a profissão na vida civil. A farinha, dadas as temperaturas e humidade elevadas,  criava muitos pequenos bichos e na peneira não era fácil tirá-los todos e alguns apareciam no pão. Dizia ele que todo o pão levava a sua assinatura.

Para amenizar o desagrado das ementas, resolvi mandar fazer tabuleiros grandes para ir ao forno do pão, com a chapa dos bidões de azeite. Conseguimos assar bacalhau com batatas, carne de caça e peixe da bolanha.

 (...) Ainda relativamente à questão das arcas, conta-se como verdadeira a seguinte história. Determinada companhia, tal como nós, isolada no mato, tinha ficado sem arcas e frigoríficos e feito vários pedidos para que fossem substituídas. 

Em resposta a uma mensagem mais agressiva, por parte do capitão que estava no mato, a Intendência em Bissau, respondeu que "Teixeira Pinto colonizara a Guiné sem frigoríficos", ao que o capitão retorquiu: "Solicito envio urgente de Teixeira Pinto"...

Um mês antes de deixarmos o inferno de Nova Sintra, num reabastecimento de géneros, para além das rações de combate que havia requisitado, para a atividade operacional expectável e manter o stock, recebi a mais umas boas centenas de rações, com a agravante de algumas já terem excedido o prazo de validade e outras estarem quase. 

Era impossível consumi-las até à transferência do depósito de géneros à companhia que nos iria render,  a CCAV 2765, “Os Pica na Burra”. 

Servi-las em substituição da refeição quente, embora precária, seria estar a assinar a minha sentença de morte, pois o pessoal enforcava-me no embondeiro mais alto. 

Colocada a questão ao capitão e ao 1.º sargento, foi decidido colocar as caixas com as rações de combate, viradas para a parede escondendo o prazo de validade.

Fiz a transferência do depósito ao vagomestre “periquito”, que as “comeu de cebolada”,  mas tudo o resto estava em conformidade. Só que o 1.º sargento deles não era burro e,  como já tinha feito outras comissões, resolveu confirmar a passagem do testemunho e deu com a marosca.

Durante duas noites não dormi a pensar num eventual castigo e porque tinha colaborado numa situação que era contra os meus princípios, embora tivesse as costas quentes, pelo aval dado pelo nosso capitão. 

Os capitães e os 1.ºs sargentos das duas companhias lá chegaram a um entendimento e eu lá continuei a dormir descansado. 

Se revoltado estava com tudo por que passara até então, mais fiquei com os filhos da p*ta  da Manutenção de Bissau, que no descanso do ar condicionado, em vez de comerem as rações de combate,  as enviavam para os escravos que estavam no mato, mas condicionado ao ar. (...)

(Seleção / revisão e fixação de texto / título: LG)

_______________

Notas do editor LG:

(*) Vd. poste de 18 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26595: Vivências em Nova Sintra (Aníbal José da Silva, Fur Mil Vagomestre da CCAV 2483/BCAV 2867) (3): A Alimentação

Guiné 61/74 - P26603: Notas de leitura (1782): Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné: Negros e brancos na Guiné Portuguesa (1915-1935) (4) – 3 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Março de 2025:

Queridos amigos,
Deixo-vos o terceiro e último apontamento acerca do ensaio em que Philip Havik mostra o tratamento da imagem do homem e da mulher antes e após o período da ocupação efetiva. Ele não deixa de observar a mudança fundamental que se operou quando a vida do colono se transferiu das Praças e Presídios para o interior, apareceram as administrações e os postos, os governadores passaram a exigir relatórios anuais a estes funcionários, o modelo mais saliente destes anos 1930 foi o inquérito elaborado por um sobrinho do governador Velez Caroço, uma matriz que permite observar o que era a imagem da mulher. Neste tempo ainda imperavam teses raciais que proibiam categoricamente a mistura de raças, o que entra em contradição com a presença do colono neste interior onde os administradores e chefes de posto não levavam, em regra geral, a mulher branca, daí o mulato ter um desenvolvimento notório na Guiné. E há a preponderância de sinharas, como Nhá Bijagó e até perto da nossa presença colonial Nha Carlota. Este ensaio de Philip Havik é um estupendo ponto de partida para a continuação de estudos sobre as relações luso-africanas a partir de finais do século XIX e até ao fim do império.

Um abraço do
Mário



Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné:
Negros e brancos na Guiné Portuguesa (1915-1935) (4) – 3


Mário Beja Santos


Data de meados de 1930 a primeira monografia etnográfica que faz o inventário das tradições orais das principais “raças ou tribos”. O seu autor deixa claro que a sua contribuição quebra o silêncio, haverá uma meia dúzia de trabalhos de grande interesse para alguns, mas destinado aos arquivos. Evidentemente que se produziram relatos pelos primeiros navegadores, somente publicados nos séculos XIX e XX, em que o registo in loco das tradições locais ocupa um lugar central. A monografia em apreço, "Babel Negra", tem uma lógica étnica e não administrativa, fornecendo dados sobre o parentesco, o casamento, a organização social, a agricultura e as línguas, obtidas essencialmente, mas não exclusivamente, pelos administradores e os seus intérpretes.

Os resultados eram em parte baseados sobre um novo questionário preparado pelo chefe dos assuntos indígenas do tempo do governador Vellez Caroço. As justificações dadas para este novo inquérito eram associadas ao projeto do novo Código Civil e Penal que se destinava a substituir as leis portuguesas então em vigor, considerando que não correspondiam à “mentalidade primitiva da população indígena”. O seu quadro e conteúdo são particularmente reveladores das doutrinas subjacentes ao pensamento colonial da época. O documento versa uma grande variedade de questões incluindo a família, refere por exemplo a divisão do trabalho entre sexos e nota-se uma boa dose de ignorância quando fazem perguntas como “Quem trabalha, os homens ou as mulheres?”. As questões referentes à autoridade paternal e maternal fazem-se acompanhar de perguntas postas do ponto de vista do marido: “Na vida do casal, quais são os papeis a que a mulher é obrigada a cumprir?”.

No livro "Babel Negra" identificam-se doze “tribos”, cada uma será objeto de um capítulo sob a forma de curtas vinhetas, isto ao mesmo nível do questionário atrás referido, tratando depois as características físicas e até as atividades de lazer. Cada capítulo inclui a fotografia de um homem e de uma mulher, bem como um glossário elementar do dialeto “étnico”. Dá-se mais importância aos grupos patrilineares, tais como os Mandingas e os Fulas, mas também aos Balantas “animistas” que aos grupos matrilineares. As relações entre homens e mulheres são sempre apresentadas como desiguais e demonstram a segregação existente entre os sexos que constituem um fio condutor no contexto destas sociedades dominadas pelos homens.

As liberdades sexuais das mulheres Baiotes são objeto de uma menção especial enquanto as suas proezas como remadoras ou lutadoras só são marginalmente referidas. O capítulo sobre os Felupes ou Djolas, caracterizados como “guerreiros” e “produtores de arroz” se releva o peso da autoridade da primeira mulher sobre o marido, situação que influencia a vida política da tribo, mas sem indicar especificamente em quê. Se bem que se vivesse num regime dito patriarcal, as sacerdotisas nesta gerontocracia masculina eram responsáveis pela manutenção dos lugares sagrados aos quais os homens não tinham acesso.

Philip Havik refere devidamente a teoria linguística sobre o género, e observa que os estudos etnológicos foram produzidos por administradores e não por antropólogos; os dados etnológicos extraídos dos relatórios coloniais sobre as populações da Guiné por mais que identifiquem modelos de discurso centrados sobre a imagem pejorativa das mulheres, fornecem nuances que obrigam a um exame semântico. Importa não esquecer que nas dinâmicas entre géneros nos setores do comércio e da intermediação aparecem mulheres grandes – as Nharas – impuseram-se nos pontos do comércio do litoral com poder e autoridade equivalentes aos que vemos associados aos homens da mesma região.

Depois da conquista militar, o poder político ficou doravante concentrado nas mãos de uma administração europeia e assistiu-se a uma mudança de paradigmas nas estruturas das relações entre os géneros. O centro de interesse colonial passou dos portos do comércio afro-atlântico para o interior, as chefaturas foram consideradas como aliados políticos potenciais e cooptados na administração local. O branco passou a viver com a negra, surgiram os mulatos. O questionário etnográfico de 1934 sobre o qual se baseou a maior parte dos trabalhos dessa década traziam já uma questão reveladora sobre a aparência das mulheres, se estas quanto tinham um tom de pele mais claro não tinham uma fisionomia mais perfeita e mais escultural. E passou-se a escrever muito sobre a poliandria e o matriarcado Bijagó, o que se vem a demonstrar mais tarde ter pouco ou nenhum fundamento, fazendo-se o contraponto entre a mulher Bijagó primitiva e a beleza das mulheres Fulas, dizendo-se mesmo que a mulher Futa-Forro era inteligente e entre todas as mulheres indígenas da Guiné a mais civilizada.

Dentro destas observações de categorização, destacam-se os manjacos por uma atitude positiva, por falarem mais o crioulo cabo-verdiano, por serem grandes trabalhadores, considerados pois como um dos elementos étnicos mais úteis no desenvolvimento e valorização da colónia, e tecem-se considerações elogiosas sobre a beleza das mulheres, não deixando de se escrever que o seu comportamento sexual libertário podia levar à extinção da “tribo”. Não se pode esquecer que os contactos entre os funcionários coloniais e as mulheres africanas não se limitava ao domínio público, estendia-se ao espaço doméstico onde elas muitas vezes partilhavam a cama com os seus senhores. Os administradores e os chefes de posto viviam e trabalhavam muitas vezes no mesmo edifício. As mulheres foram impulsionadas para a cena como geradoras, mas há que referir as teorias raciais que dominaram os anos de 1920 e 1930 em que a mestiçagem era fortemente criticada e desencorajadas as relações legítimas ou ilegítimas entre indivíduos de raças diferentes, havia inquietação de que se formasse um estrato de mestiços, a etnologia oficial a ela se opunha veementemente, acusando-a de degenerescência da raça. E com a finalidade de reduzir as ocasiões de relações sexuais entre os colonizadores e os indígenas procurou-se recrutar pessoal civil e militar casado, julgava-se assim que se ia impedir a procriação de mestiços.

Nos espaços urbanos a organização era de criar linhas que separavam os europeus dos africanos e também as etnias. Aumentou-se o número de enfermarias e da assistência indígena. Mas há um aspeto interessante e bastante ignorado da etnografia colonial que é a prostituição. A migração dos insulares Bijagós para o continente como de camadas urbanas para o arquipélago é mencionada em certos relatórios como a causa principal das doenças venéreas entre os habitantes das ilhas. Daí a tentativa de os governadores procurarem reter os Bijagós nas suas ilhas, protegendo-os da má influência dos cristãos.

Em suma, assiste-se em meados dos anos 1930 à consolidação do esquema que apresentava as mulheres no discurso oficial como criadores de filhos e trabalhadoras, excetuando sempre as mulheres Bijagós, tratando-as como dominadoras. Entretanto, e apesar dos dados etnográficos, a figuras da mulher continuou, no discurso colonial, a aparecer como um simples apêndice dependente da autoridade e do domínio do homem, uma sombra sem rosto. Mas, entretanto, deu-se uma mudança com implicações no estatuto da mulher. Essa mudança resultou da crescente atenção dos etnógrafos portugueses atribuindo à família o conceito de unidade sólida em vez daquela visão holística até então dominante das sociedades indígenas. Em meados dos anos 1930 era evidente a mutação das prioridades coloniais, mesmo pálida projetou-se a imagem da mulher africana, ela vai aparecer como a mulher indígena entendida como um poderoso agente de civilização e não como uma simples guardiã da espécie e uma besta de carga.

Leopoldina Ferreira Pontes (a primeira, da segunda fila, do lado esquerdo) nasceu em Bissau em 4 de Novembro de 1871. Era filha de João Ferreira Crato (natural do Crato, Alto Alentejo, comerciante na Guiné) e de Gertrudes da Cruz (de etnia Bijagó, natural de Bissau).
"Mulheres combatentes do PAIGC com as suas armas”, exposição “Revoluções – Guiné-Bissau, Angola e Portugal (1969-1974) Fotografias de Uliano Lucas”
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Notas do editor:

Vd. post anterior de 14 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26584: Notas de leitura (1780): Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné: Negros e brancos na Guiné Portuguesa (1915-1935) (4) – 2 (Mário Beja Santos)

Último post da série de 17 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26593: Notas de leitura (1781): "Guiné - Antes, Durante e Depois", por Clemente Florêncio; edição de autor, 2023 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P26602: Blogpoesia (803): No Dia Mundial da Poesia: "A Noite Mundial da Poesia", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

© ADÃO CRUZ


A NOITE MUNDIAL DA POESIA

Voa no céu o som de um violino
chorando um poema perdido
não se sabe onde nem quando
se na claridade dos poetas mortos
se nas sombras da vida errando.
O dilema entre o silêncio e a palavra
nasce da lógica discursiva
que cabe no ridículo do poema
quando o poeta tudo vê e nada sabe.
Há um dilema entre o silêncio e a palavra
quando em teatral mensagem de poema
o poeta sonha e delira
ao enganar a poesia
nos buracos negros da mentira.
Morre a razão
nas palavras perdidas na aridez do verso
e foge a poesia da rima e dos espaços
quando do poema corre o sangue
de um mundo feito em pedaços.
Reside a poesia no silêncio de quem um dia
espera ouvir a sua voz
com ouvidos que a mereçam
mas neste tempo de ruídos e ruínas
só mudos ecos chegam até nós.
A poesia tem olhos de céu infindo
olhos de distância e de mil fontes
na planura de mil campos e horizontes.
Mais rente ao chão
voa a poesia ao redor do sentimento
como borboleta em jardim disperso
poisando na flor apetecida
onde canta a beleza de um verso.
No mundo de hoje
sem alma nem sentimento
amordaçado de mil gritos levados pelo vento
debate-se a verdade e a mentira
entre o rosto e a máscara do poema
sobrando nas entrelinhas da secura
sem dor no coração
os restos mortais
de milhões de crianças caídas no chão.
No mundo de hoje
não pode haver poetas vivos
alheados de hipócritas metáforas
estendidas sobre a mesa da vaidade
ou penduradas nos olhos da cidade.
No mundo de hoje
não pode haver poetas de almas caladas
adormecidas na noite mundial da ilusão
dando apenas ares de acordadas
quando sonham poesia nos avessos da razão.


adão cruz
_____________

Nota do editor

Último post da série de 15 de dezembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26269: Blogpoesia (802): "O sonhador é um fazedor de carências", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

quinta-feira, 20 de março de 2025

Guiné 61/74 - P26601: Historiografia da presença portuguesa em África (471): Bissau ao tempo de Leopoldina Ferreira ("Nha Bijagó") (1871-1959) (António Estácio, 1947-2022)


Planta da Praça de São José de Bissau. Desenho de Travassos Valdez. Fonte: "África Oocidental" (1864).








Planta da Praça de São José de Bissau. Desenho de Travassos Valdez. Fonte: "África Oocidental" (1864) (Detalhes). Tinha (tem) 4 baluartes: Bandeira, Puana (ou Poama),  Onça e Balança.


Guiné > Bissau > c. 1870 > A Rua de S. José, considerada como a artéria mais importante. Ia do portão da Amura, que estava aberto das 8 às 21h00, ao baluart da Bandeira. 

Após o 5 de outubro de 1910, passou a designar-se como Rua do Advento da República; depois,  Rua Dr. Oliveira Salazar e, após a independência, mudou  em 21 janeiro  de 1975,  paa Rua Guerra Mendes, um dos combatentes da liberdade da Pátria, mortos em combate.

 Fonte: António Estácio - "Nha Bijagó: respeitada personalidade da sociedade guineense (1871-1959)" (edição de autor, 2011, 159 pp., il,).




Guiné > Bissaau > Av República > Postal ilustrado > c. 1960/70 > : Av da República (Hoje, Av Amílcar Cabral) > Ao fundo, o Palácio do Governador, e a Praça do Império; do lado direito, a Catedral de Bissau... Sob o arvoredo, do lado direito, a esplanada do Café Bento (O postal era uma Edição Comer, Trav do Alecrim, 1 - Telef. 329775, Lisboa).

Foto (e legenda): © José Claudino da Silva (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




António Estácio (Bissau,
Chão de Papel, 1947 -
Sintra, Algueirão  2022),
V Encontro Nacional
da Tabanca Grande, Monte Real,
 2010.
Foto: Luís Graça (2010)
1. Já na altura demos o devido destaque a esta publicação do nosso querido e saudoso camarada e amigo António Estácio (1947-2022): nascido em Bissau, fez o serviço militar em Angola, em 1970/72), foi engenheiro técnico agrícola, deixou saudades em Macau, escreveu diversos livros, vivia em Algueirão, Sintra, tinha duas filhas e seguramente netos. 

A propósito das mudanças de toponímia de Bissau logo no início de 1975 (*), fomos revisitar o livrinho "Nha Bijagó: respeitada personalidade da  sociedade guineense (1871-1959)" 
(edição de autor, 2011, 159 pp., il,).  (**)

Do prefácio, escrito por Eduardo Ferreira
respigamos entretanto os seguntes excertos (**):

(...) Ao ler este livro  não podemos 
deixar de pensar nas grandes figuras femininas, que foram as “sinharas” e que tanta 
influência tiveram na costa ocidental 
africana,  em particular  nos Rios da Guiné, 
entre  o século XVI e finais do século XIX. 

Essas mulheres que eram na sua maioria crioulas, geriam com enorme maestria os negócios dos seus maridos europeus ou eurodescendentes, resolvendo conflitos, realizando pactos com as autoridades locais, de modo a que as actividades comerciais decorressem sem delongas e fossem coroadas de êxito. 

A sua condição de crioula, dava à “sinhara” uma capacidade negocial ímpar, pois sendo detentora de uma dupla identidade cultural, era com facilidade que fazia a ponte entre as populações locais e os alógenos,  nomeadamente os europeus. 

Ficaram famosas na Guiné algumas dessas “sinharas” como:

  • a Bibiana Vaz, 
  • a Aurélia Correia conhecida por “mamé Aurélia”, 
  • a Júlia Silva Cardoso também conhecida como “mamé Júlia” 
  • e a Rosa Carvalho Alvarenga, mãe de Honório Pereira Barreto, 

entre muitas outras. 

Leopoldina Ferreira, vulgo “Nha Bijagó”, é em meu entender uma das últimas grandes “sinharas” da Guiné, pois o seu perfil enquadra-se na perfeição no papel desempenhado por essas influentes mulheres africanas, referenciadas por diversos autores como foi o caso de:

  •  André Álvares d’ Almada na sua obra “Tratado Breve dos Rios de Guiné do Cabo Verde” de 1594
  •  ou de George E. Brooks com “Eurafricans in Western Africa” publicado em 2004 
  • ou ainda Philip J. Havik com “Trade in the Guinea-Bissau Region: the role of african and luso-african women in the trade networks from early 16th to the mid 19th century” publicado em 1994, 
para apenas citar alguns.

(...) Um aspecto particularmente interessante nesta obra de A. J. Estácio, é a ligação cronológica que o mesmo faz, entre importantes acontecimentos políticos, administrativos e militares, que tiveram lugar na então Guiné Portuguesa, e as diversas fases etárias da biografada, ainda que esses factos não tenham qualquer ligação directa com a personagem tratada neste livro! 

O autor quis desse modo, dar-nos a conhecer alguns factos da história da então colónia/província da Guiné, que tiveram lugar entre 1870 e 1959, período que abarca a vida de “Nha Bijagó”  (...)

(...) Com esta publicação, António Júlio Estácio, revela-nos mais uma vez, o seu grande apego e dedicação às coisas e às gentes da terra que o viu nascer. (...)

Eduardo J. R. Fernandes, "Prefácio" (**)

[O Eduardo Fernandes foi amigo e condiscípulo do autor no Liceu Honório Barreto, em Bissau, e na alutra, em 2011, era comentador da RDP África].

Leopoldina Ferreira,
Nha Bijagó
(1871-1959)
2. Leopoldina Ferreira Pontes, "Nha Bijagó"  (Bissau, 1871 - Bissau, 1959) e a cronologia da cidade de Bissau

Aproveitando a vasta e valiosa pesquisa historiográfica do António Estácio, uma homem de várias pátrias (Guiné-Bissau, Portugal, Angola, Macau...) vamos aqui recolher e sintetizar algumas datas marcantes do desenvolvimento urbano de Bissau, correspondente ao período em que viveu a "Nha Bijagó" (1871-1959), acrescentando mais algumas de outras fontes:


(i) Leopoldina Ferreira (Pontes, pelo primeiro casamento...) nasceu em Bissau em 4 de novembro de 1871

(ii) era filha ("ilegítima", segundo a terminologia do  Código Civil em vigor na época, o de 1866) de João Ferreira Crato (natural do Crato, Alto Alentejo, comerciante na Guiné);

(iii) morreu aos 87 anos, em 26 de maio de 1959;

(iv)  o nominho Nha Bijagó deve tê-lo recebido da mãe, Gertrudes da Cruz (de etnia bijagó, natural de Bissau);

(v) pouco antes de ela nascer, em 1871, o 18º Presidente dos Estados Unidos da América, Ulysses Simpson Grant , proferiu a sentença referente à posse da ilha de Bolama, pertencente ao, então, distrito da Guiné, favorável a Portugal o que pôs termo ao conflito se arrastava com os ingleses;

(v) nessa altura Bissau era uma povoação encravada entre a fortaleza de S. José e um muro, com 4 metros de altura;

(vi) a igreja e o cemitério ficavam no interior da Amura;

(vii) de entre as poucas ruas e ruelas, extra-muros, a Rua de S. José era considerada como a artéria mais importante: a do portão da Amura, que estava aberto das 8 às 21h00, ao baluarte da Bandeira; após o 5 de outubro de 1910, passou ser a Rua do Advento da República; depois, a Rua Dr. Oliveira Salazar e, após a independência e a 21 janeiro  de 1975 a Rua Guerra Mendes; funcionaca como "passeio público" e tinha casas de sobrado

(viii) em 1872, tinha ela cerca de um ano "quando as ruas de Bissau começaram a ser iluminadas a petróleo" mas ainda eram "poucos os candeeiros";

(x) a 1877, foi criado o concelho de Bissau, sendo de 573 habitantes a população na área murada, composta por :

  • 391 nativos, 
  • 166 oriundos de Cabo Verde 
  • e, apenas, 16 europeus.

(xi)  em 1879, ainda a Nha Bijagó não tinha completado os oito anos, foi “a sede do Governo transferida para Bolama";

(xii) no dia 3 de agosto do mesmo ano, assinou-se o tratado de cessão a Portugal do território de Jufunco, ocupado pelos Felupes;

(xiii) pouco antes de Leopoldina completar os 12 anos de idade, 1883, foi publicado o decreto que dividiu a província da Guiné  em quatro circunscriçõess, criando-se assim os concelhos de Bolama, Bissau, Cacheu e Bolola. 

(xiv) tinha ela 14 anos quando Portugal e a França celebraram [ em Paris, em 1886] a convenção referente à delimitação das possessões dos 2 países na África Ocidental e que correspondem às atuais Repúblicas do Senegal, Guiné-Conacri e Guiné-Bissau;
.
(xv) as más condições climatéricas, agravadas pela insalubridade da região, dizimavam a população de tal modo que, em 1886, Bissau era o menos povoado de todos os aglomerados urbanos da Guiné;

(xvi) tinha Nha Bijagó já 18 anos quando foi, então, lançada, em 1889,  a primeira pedra para a tão almejada ponte-cais; (foi designada  por ponte Correia e Lança, em homenagem a Joaquim da Graça Correia Lança  Governador da Guiné., de 1888 a 1890)

(xvii) ano e meio depois, em fevereiro de 1891, o chefe dos Serviços de Saúde defendia que a capital deveria regressar à ilha de Bissau, ainda que para local ligeiramente diferente, isto é, puxando-a para a zona de Bandim que se situava “em terreno suficientemente elevado e com vertentes para a praia arenosa.”, o que, em termos de drenagem e salubridade, era, indubitavelmente, vantajoso; 

(xviii) à beira de completar 22 anos, registaram-se, no interior da fortaleza, dois incidentes graves, em 1893:

  •  o incêndio da enfermaria militar  (13 de janeiro) (vd. planta, 3);
  •  uma explosão (em 9 de maio);

(xvix) a 7/12/1893, a vila sofreu um grande cerco, movido por elementos da etnia Papel a que se juntaram os Balantas de Nhacra;

(xx) em 1894, é demolida uma  parte do muro de 4 metros de altura que ia do Fortim Nozolini ao Baluarte da Balança (vd. planta, 11, 13), com o objetivo de se construir uma igreja católica;

(xxi)  por volta dos seus 25 anos, dada a elevada densidade populacional intramuros, o governador Pedro Inácio Gouveia autorizou “o aforamento de, terrenos no ilhéu do Rei”,  tendo, em 1900, ali, chegado a ser instalado um lazareto; 

(xxii) a implantação da República em Portugal levou à mudança do Governador e, em 1912/13, o primeiro-tenente Carlos de Almeida Pereira manda demolir o muro que constrangia a expansão urbana;


Guiné > Bissau > s/d > Av República (hoje Av Amílcar Cabral), com placa central guarnecida  com árvores, que nos anos 50 seria removida, dando lugar a uma ampla avenida, com duas faixas de laterais, arborizadas, destinadas a estacionamento e delas separadas por um passeio. Fonte: António Estácio (2011)
  

(xxiii) Com a República há mudanças na toponímia:

  • Rua de S. José > Rua do Advento da República
  • Rua do Baluarte da Bandeira > Rua Almirante Reis
  • Travessa Larga > Travessa do Dr. Miguel Bombarda
  • Travessa da Botica > Travessa 5 d’ Outubro
  • Travessa da Ferraria > Travessa Honório Barreto;

(xxiv) depois da "campanha de pacificação" do cap João Teixeira Pinto (1913/15),  Bissau é finalmente  objeto dum plano de urbanização que lhe permitiu crescer de forma disciplinada e segundo malha ortogonal bem definida;

(xxv) a autoria do plano é do tenente-coronel engenheiro José Guedes Viegas Quinhones de Matos Cabral que, no início da década de vinte, seria o director das Obras Públicas na Guiné;

(xxvi) para além do Mercado Municipal e do Cemitério, por detrás do Hospital, etc., procedeu-se ao aterro e à regularização do molhe da rua marginal (Rua Agostinho Coelho, numa evocação do primeiro governador da Guiné)  e à construção do edifício-sede da Alfândega;

(xxvii) ao completar Nha Bijagó os seus 62 anos, teve lugar, em 1933, a transferência da sede da comarca judicial da Guiné, que passou de Bolama para Bissau;

(xxviii) em 1934, procedeu-se ao lançamento da primeira pedra para a construção do monumento ao Esforço da Raça, da autoria do Arq Ponce de Castro; as pedras foram enviadas do Porto e o monumento foi inaugurado em 1941; o único monumento colonial que resistiu ao camartelo revolucionário;



Guiné > Bissau > Fortaleza da Amura > Baluarte da Puana > c. 1900 > Tropas expedicionárias (Foto do domínio público. Coleção Jill Rosemary Dias, em Memórias de África e do Oriente > Cortesia der Wikimedia Coommons)


Fortaleza da Amura. Foto de Manuel Coelho (c. 1966/68)


(xxix) em 1936, a Associação Comercial e Industrial da Guiné cedeu ao Estado o terreno que lhe fora concedido, o qual se destinava à sua sede e ficava em frente ao  edifício do Banco Nacional Ultramarino, para no local se construir um grande edifício onde, a par do Tribunal, foram instalados os Serviços de Administração Civil, assim como os Serviços de Fazenda;

(xxx) em 1939 foi a Fortaleza de S. José, vulgo Amura, classificada como Monumento Nacional

(xxxi) em finais da década de 30 foi celebrado o contrato para a realização dos estudos de abastecimento de água, melhoramento que só se viria a concretizar  na segunda metade da década  de 40;

(xxxii) transferência da capital de Bolama para Bissau,  em 19 de dezembro de 1941;

(xxxiii) em 1945 toma posse o novo governador, Sarmeno Rodrigues. (***)

 (xxxiv) em meados dos anos 40:

  • efetua-se um novo projecto de urbanização;
  • mudam de nome  as vilas de Canchungo (Teixeira Pinto) e Gabú (Nova Lamego)
  • procede-se à construção do depósito de água no Alto de Intim
  • assim como do Palácio do Governador; 
  • constroem-se moradias no “Bairro Portugal”
  • surge o Bairro de Santa Luzia; 
  • deu-se início à edificação da Catedral, do Museu e Biblioteca, etc.
(xxxv) procedeu-se à colocação de estátuas como a do navegador Nuno Tristão, a de Teixeira Pinto, a do grande guineense Honório Pereira Barreto, etc.

(xxxvi) a Rua Honório Barreto foi, na Guiné, a primeira a ser asfaltada e reabriu em 6/4/1953;

(xxxvii)  de tudo isto e a muito mais Nha Bijagó foi contemporânea, como de:

  • a conclusão da nova ponte-cais, inaugurada em 18/5/1953 pelo Subsecretário de Estado Raul Ventura, 
  • a construção do aeroporto em Brá e à sua transferência para Bissalanca; 
  • a visita do Presidente da República Craveiro Lopes; 
  • a  inauguração do edifício situado na, então, Praça do Império, onde ficou a sede da Associação Comercial e Industrial da Guiné, etc. (****)

Fonte: Adapt. livre de António Estácio - "Nha Bijagó: respeitada personalidade da sociedade guineense (1871-1959)" (edição de autor, 2011, 159 pp., il,).

[Selecão / revisão / fixação de texto para efeitos de edição no blogue: LG]



Nova ponte-cais (1953) e estátua de Diogo Gomes.
Postal ilustrado, edição Foto Serra.



Guiné > Bissau > s/d  > "Monumento ao Esforço da Raça. Praça do Império"... Bilhete postal, nº 109, Edição "Foto Serra" (Colecção "Guiné Portuguesa")



Guiné > Bissau > s/d  > "Praça Honório Barreto e Hotel Portugal"... Bilhete postal, nº 130, Edição "Foto Serra" (Colecção "Guiné Portuguesa")

Colecção: Agostinho Gaspar / Digitalizações: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2010).



Guiné- Bissau > Bissau > c.  2010 > Vista aérea do centro histórico: Av Amílcar Cabral (antiga Av da República, que partia da Praça do Império), ao fundo o cais do Pijiguiti (ou Pindgiguiti, como se escreve agora...), o porto de Bissau,  o ilhéu de Rei... Em primeiro plano, à esquerda, o edifício da administração civil da época colonial, hoje sede o ministério da Justiça.  O edifício a seguir, branco, no cruzamento da Av Amílcar Cabral com a Rua 19 de Setembro ea então o da  RTP África (antiga localização do Café Bento / 5ª Rep).



Guiné- Bissau > Bissau > c. 2010 > Vista aérea do centro histórico: Av Amílcar Cabral (antiga Av da República, que partia da Praça do Império). Em primeiro plano, a Catedral de Bissau.

Fotos:  © Virgílio Teixeira (2019). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
























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Notas do editor LG:

(*) Vd. postes de: