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quinta-feira, 3 de julho de 2025

Guiné 61/74 - P26979: Os 50 anos da independência de Cabo Verde (7): reportagem do 5 de julho de 1975 - Parte II (Carlos Filipe Gonçalves)




Cabo Verde > Praia > 4 de julho de 1975  > Na foto, eu (assinalado por um seta) na 1.ª Sessão da Assembleia Nacional, no dia 4 de Julho de 1975 ao final da tarde; em primeiro plano, Pedro Pires (n. Ilha do Fogo, 1934) e Aristides Pereira (Ilha da Boavista, 1923 - Coimbra, 2011) respetivamente, primeiros futuros 1º ministro de Cabo Verde (8/7/1975-4/4/1991) e presidente da república (8/7/1975 - 21/3/1991).

Foto (e legenda) : © Carlos Filipe Gonçalves (2025). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Carlos Filipe Gonçalves, nosso antigo camarada na Guiné (foi fur mil amanuense, CefInt/QG/CTIG, Bissau, 1973/74), é uma figura pública no seu país, Cabo Verde: radialista, jornalista, escritor, etnomusicólogo...  (ver aqui entrada na Wikipedia). Natural do Mindelo, vive na Praia. É autor, no nosso blogue, da série "Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (Carlos Filipe Gonçalves, Mindelo)"

 
Cabo Verde - Reportagem por Ocasião do 5 de Julho de 1975 - Parte II
 
por Carlos Filipe Gonçalves (*)



Eu estava integrado na equipa da reportagem da RDN - Radiodifusão Nacional da Guiné-Bissau, onde era Chefe de Programação, desde setembro de 1974. 

A equipa de reportagem, era constituída por Zeca Martins, veterano da Rádio Libertação, Chefe da Secção Técnica de Operadores da RDN, António Óscar Barbosa (Cancan,  jornalista e repórter, e eu. 

Chegámos no dia 28 de junho, no avião que trouxe de Bissau Aristides Pereira e Nino Vieira. Fizemos a reportagem da eleição no dia 30 de junho, infelizmente, não conseguimos, enviar qualquer informação para Bissau, porque havia problemas nas linhas telefónicas. Depois, os acontecimentos, ocorrem, ou vão ocorrer e somos chamados… muitas vezes à última hora, de modo que andamos de uma lado para o outro, com mais de 15 kg de equipamentos às costas…

No dia 4 de julho, à tarde, e fomos chamados à residência na Prainha, para gravar a mensagem de Aristides Pereira, que deveria ser difundida à meia-noite. Logo depois rumámos ao p
latô [zona histórica da Praia],  cerca das 17 horas, para assistir à reunião da Assembleia Nacional Popular recém-eleita, que ia realizar-se salão da Câmara Municipal. 

Entrámos com o equipamento, instalámos os microfones na mesa e causámos surpresa! Não nos conhecem! 

Uma pergunta assustada: “Quem são, o que estão a fazer?”... Justificou o Zeca Martins: “Somos do Partido, viemos de Bissau, para gravar, documentar e filmar os acontecimentos!”...

 A situação acalma-se, desfaz-se o mal-entendido. Constituiu-se a mesa provisória, fez-se a chamada dos deputados e logo depois… todos os jornalistas são convidados a sair da sala. A reunião é feita à porta fechada!

À noite, assistimos ao célebre baile de 4 para 5 de julho na Praça, com o conjunto Os Tubarões Ambiente alegre e descontraído, as pessoas dançam, de vez em quando passam grupos a gritar: "Cabral! Ca Moré!" Ou então: "Cabral! Herói do Povo!" 

Na moda estão várias músicas na voz de Ildo Lobo (1953-2004) com o conjunto Os Tubarões, destaque para a morna Cabral Ca Mòré (Cabral não morreu) (**), a coladeira jocosa João da Lomba (#) e a balada Na Alto Cutelo, de Renato Cardoso.

(Revisão / fixação de texto, título: LG)
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Notas do editor LG:

(*) Último poste da série > 3 de julho de 2025 > Guiné 61/74 - P26978: Os 50 anos da independência de Cabo Verde (6): reportagem do 5 de julho de 1975 - Parte I (Carlos Filipe Gonçalves)


(**) Letra em crioulo e tradução para português
 
Cabral Ca Mori | Os Tubarões 

Oi, Kabuverdi, bu óra dja txiga
Sima bus irmons d'Áfrika grita
Indipendénsia, fidjus, dja no ten
Pa no ser livri, livri di tudu algen (bis)

Cabral ka móre, Cabral é gritu ki digigi mundu
Cabral ka móre, Cabral é gritu na nha peitu
Cabral ka móre, Cabral é liberdadi
Onra memória di erói di povu (bis)

Di PAIGC, partidu di luta
Na finason no ka pode skese-l
Di tudu irmon, erói ki da se sangi
Pa liberdadi, justisa di nos povu (bis)


Cabral ka móre, Cabral é gritu ki digigi mundu (...) (refrão)

Fonte:  Portal > Letras> Cabral ca mori | Os Tubarões  (com a devida vénia...)
 ________________

Cabral Não Morreu | Os Tubarões


Oh, Cabo Verde, a tua hora já chegou
Assim como os rmãos da África gritam 
Independência, filhos, já a temos, 
Para sermos livres, livres de qualquer um.  (bis)

Cabral não morreu, Cabral é um grito que abalou o mundo,
Cabral não morreu, Cabral é um grito no meu peito 
Cabral não morreu, Cabral é liberdade,
Honra a memória ao herói do povo. (bis)


Do PAIGC, partido da luta,
No “Finason” (##), não poderemos nunca esquecer
De todos os irmãos, o herói que deu seu sangue
Pela liberdade e justiça do nosso povo. (bis)

Cabral não morreu, Cabral é um grito que abala o mundo (refrão) (...)


(Revisão / fixação de texto, tradução com a ajuda da IA/Geminini / Google e do Carlos Filipe Gonçalves: LG)

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Notas do musicólogo Carlos Filipe Gonçalve

(#) Coladeira é um género musical de ritmo vivo. João da Lomba é o título da música do género Morna Galope que se confunde com a Coladeira,. Em crioulo Jon da Lomba. A Coladeira é um género musical satírico com humor; antigamente as Mornas também eram satíricas. esta faz uma critica a um caso que aconteceu num baile: depois de uma dança num baile no interior da ilha da Boavista, uma rapariga chama por João da Lomba, a quem que alumie a sala com candeeiro, para ele poder localizar o atrevido que tentou apalpá-la e quis feazer algo mais!

(##) Finason – o canto solo sem qualquer acompanhamento que constitui uma fase do Batuque. Nestes cânticos a solista, uma mulher geralmente já idosa, dá conselhos e faz apreciações digamos filosóficas sobre os mais diversos assuntos.

 

Guiné 61/74 - P26978: Os 50 anos da independência de Cabo Verde (6): reportagem do 5 de julho de 1975 - Parte I (Carlos Filipe Gonçalves)




Cabo Verde > Ilha de santigao > Praia > Sede da Rádio Voz di Povo, no edifício da ex-Rádio Clube de Cabo Verde, ornamentada por ocasião do 5 de Julho de 1975. O escudo de Cabo Verde ficaria ali até 1987! (*)

Foto (e legenda) : © Carlos Filipe Gonçalves (2025). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.



Cabo Verde > Praia > Platô (zona histórica). Cortesia de Voz do Arquipélago (2025)


1. Postagem publicada na página do Facebook de Carlos Filipe Gonçalves | terça, 1 de julho de 2025, 12: 46, bem como na página da Tabanca Grande:




O Carlos Filipe Gonçalves, nosso antigo camarada na Guiné (foi fur mil amanuense,  CefInt/QG/CTIG, Bissau, 1973/74), é uma figura pública no seu país, Cabo Verde (ver aqui entrada na Wikipedia). Natural do Mindelo, vive na Praia. É autor, no nosso blogue, da série "Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (Carlos Filipe Gonçalves, Mindelo)"


Cabo Verde - Reportagem por Ocasião do 5 de Julho de 1975 - Parte I
 
por Carlos Filipe Gonçalves (**)



50 anos depois, venho a saber, dois dias antes e três dias depois das eeições de 30 de junho de 1975, segunda feira, que todas as comunicações telefónicas tinahm sido colocadas à inteira disposição da Comissão Eleitoral. 

Imagino, pois, terá sido esta a causa da maior dificuldade que eu e o colega António Óscar Barbosa encontrámos na reportagem das eleições do dia 30 de junho e da Festa da Proclamação da Independência.

Quando íamos aos CTT justificavam os funcionários ao balcão: há problemas nas ligações telefónicas. Assim, ingloriamente, recorremos à boa vontade de dois «radioamadores», um deles o conhecido Hilário Brito. Mas, em vão… Ninguém respondia do outro lado…. Desistimos!

Proponho a continuação das minhas memórias nesses dias, hoje históricos para Cabo Verde.

Na terça-feira, dia 1 de julho, à tarde apanhei o voo para a Praia, onde vou encontrar os colegas da rádio de Bissau, Cancan e Zeca Martins e a malta do cinema que está encarregue de filmar todos os acontecimentos.

A missão agora é a reportagem do dia 5 de julho, no próximo sábado. Foi um dos maiores desafios que tive como profissional! 

O platô da cidade da Praia [ zona histórica ] está abarrotado de gente! No aeroporto é um chegar constante de aviões, que trazem delegações e personalidades estrangeiras que vêm assistir ao acontecimento; chegam dezenas e dezenas de jornalistas que vêm fazer a cobertura do evento.

A sede do PAIGC  
[na Av Amílcar Cabral], ali em frente da Praça, é para esse ponto que convergem todas as pessoas, há pequenos grupos, conversas, gargalhadas, a esplanada da praça está repleta. O ambiente é de expectativa, ao mesmo tempo, tenso. Sente-se que para trás ficaram os acontecimentos dolorosos que ocorreram desde há um ano e tal. A conversa do momento gira sempre à volta do alojamento, a pousada de 12 quartos na Prainha está esgotada, assim como todas as três e únicas pensões da cidade!

Algumas casas de «colonialistas/fascistas» na Prainha, agora nacionalizadas, servem para alojar personalidades mais importantes a nível do protocolo! Os menos importantes são alojados em camaratas improvisadas, no edifício de repartições na Ponta Belém, sedes dos serviços da Agricultura e Obras Públicas. Há ainda casas particulares nos arredores, Achadinha e Fazenda, que acolhem pessoal jornalista e outro. Foi o nosso caso. Para comer, há uma «messe» instalada ali na Rua Sá da Bandeira, numa cave de um edifício.

Motivos de reportagem e notícias, há muitos, mas passamos o resto dos dias a conversar e andar por aí, temos muito material gravado, mas não fazíamos notícias nem escrevíamos nada, pois o contacto com Bissau é impossível, não há linha telefónica disponível!

O António Óscar Barbosa lembra-se das dificuldades: 

“Nós até recorremos a rádios amadores! Lembras? Para transmitir as nossas reportagens!” 

E conta o que se passou na Praia:

 “Havia um senhor, o Hilário (Brito) … ele e outro senhor… Ângelo Mendes! Eram radioamadores doentes… tinham tudo… Nós íamos lá… e em Bissau, estava o Rendall, ele era chamado… tudo o que nós gravámos, saiu, não em condições, mas deu a entender o que se estava a passar…”

(Continua)

(Revisão / fixação de  texto, título: LG)

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Notas do editor LG:

(*) O que queria dizer a  sigla J. C.E., ao cimo da entrada do edifício ? Ao alto o brasão do PAIGC. Lateralmente, três cartazes com as figuras de Amílcar Cabarl, 'Che' (Guevara) e N'krumah. 

Não encontrámos resposta (verosímel) para a pergunta na consulta da Net, nem com a ajuda da IA (u  dos assistentes disse que era...a Juventude Católica Estudantil. 

O Rádio Clube de Cabo Verde era  a estação de rádio existente durante o período colonial, fundada na Praia em 1945.  Com a independência de Cabo Verde em 1975, a Rádio Clube de Cabo Verde foi rebatizada; passou a chamar-se  Rádio Voz di Cabo Verde, tornando-se a rádio nacional do país.

"Unidade, Trabalho e Progresso" era o lema do PAIGC... Foi alterado em 1980, em Cabo Verde. depois do golpe de Estado na Guiné-Bissau, liderado em Bissau por 'Nino' Vieira, e que depôs o presidente Luís Cabral, meio-irmão do Amílcar Cabral, filhos do mesmo pai (cabo-verdiano). A liderança cabo-verdiana do Partido considerou o golpe um ato de traição à causa da unidade Guiné-Bissau / Cabo Verde. Em 1981, seria fundado o Partido Africano para a Independência de Cabo Verde (PAICV). O lema do partido em Cabo Verde foi então alterado para "Unidade e Luta".

O edifício na imagem exibe características que são próprias do estilo Arte Deco (estrutura angular,  elementos decorativos geométricos, linhas horizontais das varandas ou saliências).  Não sabemos a data. Possivelmente anos 30/40.

 
(**) Último poste da série > 1 de julho de 2025 > Guiné 61/74 - P26973: Os 50 anos da independência de Cabo Verde (5): em 30 de junho de 1975, vindo de Bissau, eu fazia a reportagem das primeiras eleições de deputados, para a Assembleia Nacional Popular (Carlos Filipe Gonçalves)

quarta-feira, 2 de julho de 2025

Guiné 61/74 - P26977: O segredo de... (50): uma recordação que ainda hoje me persegue: fiquei com fama de ter agredido um 1º cabo, "branco" da CCAÇ 2701 (e para mais meu conterrâneo de Águeda) para defender a honra de uma "preta" (mulher de um soldado meu, do Pel Caç Nat 53, Saltinho, 1970/72) (Paulo Santiago)


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca) > Saltinho >O crachá da CCAÇ 2701, "Os 3 SSS" (Saltinho, 1970/72)., comandada pelo cap inf Carlos T. Clemente.  Cortesia de Paulo Santiago.



1. Mensagem do Paulo Santiago, ex-alf mil inf,  cmdt Pel Caç Nat 53 (Saltinho, 1971/73) (é um histórico da nossa Tabanca Grande, tem já cercad 2 centenas de referências desde 22/6/2006).


Data - quarta, 2 de julho de 2025, 18:22

Assunto - Recordação que me incomoda de tempos a tempos


Luis,

Estes últimos textos sobre os "filhos do vento" vieram acordar uma mágoa com 54 anos.

Foi em julho de 1971, viria de férias em agosto,encontrava-me no bar após o jantar quando o meu soldado Mamadú Baldé entra transtornado.

- Alferes, o nosso cabo Manuel C... tentou abusar da minha mulher, agrediu-a.

Fiquei de cabeça perdida, ficaria sempre aqui com a agravante de o Manuel C... ser meu conterrâneo, da mesma freguesia.

Procurei o abusador e, quando o encontrei, dei-lhe uma carga de pancada.

Escapou-se para o abrigo onde foi buscar a G3. Teve azar,entretanto vieram outros elementos do Pel Caç Nat 53, detiraram-lhe a arma e levou mais uns murros.

O Manuel C... desapareceu nessa noite em direcção desconhecida. Apareceu passados três dias.

O Cap inf Carlos T. Clemente, cmdt da CCAÇ 2701 (Saltinho, 1970/72), mandou formar a companhia e disse ao cabo Manuel C... para dizer onde tinha andado e qual fora a intenção ao fugir.

Fugira com intenção de ir para a República da Guiné mas tivera receio de cair nalguma armadilha ou mina, e não se tinha afastado muito do quartel e do rio Corubal. Comera umas folhas e bebera água do rio.

Este cabo, da CCAÇ 2701,  tinha a especialidade de atirador mas não saía para o mato,estava na arrecadação de material de guerra com um 2º sargento.

Quando chegou ao fim da explicação dos três dias de ausência,diz o Clemente:

- O alferes Santiago vai decidir qual a punição a dar-te.

Fiquei lixado. Eu, conterrâneo do abusador, que também estava para vir de férias, é que ia decidir a punição.

Claro que o Manuel C... ficou sem o castigo merecido.

Apesar da ausência de punição, fiquei, à data, com a fama de ter agredido um conterrâneo para defender uma preta.

Acrescento: o tipo está num país da América do Sul, e os familiares "rezam" para que ele não venha a Portugal porque da única vez que veio, houve graves problemas.

O Manuel C... devia ter levado uma "porrada", não levou, e ainda hoje, quando me lembro, fico incomodado.

Paulo Santiago

PS - Luís, fica ao teu critério, publicar ou não.


2. Comentário do editor LG:



Paulo, obrigado pela confiança que depositas no blogue, na pessoa do seu editor, e teu velho amigo e camarada. Decidi partilhar o teu "segredo", por uma mão cheia de razões:

(i) não éramos meninos de coro;

(ii) este caso e o seu desfecho são exemplares e merecem ser conhecidos;

(iii) que fique claro: houve casos de violação (ou de tentativa de violação) de mulheres da população civil (e também de prisioneiras) no TO da Guiné; muitos ou poucos, não sabemos, não há estatísticas; houve casos, como em todas as guerras;

(iv) na guerra não vale tudo, e o exército português tinha princípios e valores;

(iv) este caso envolveu um graduado (1º cabo) d CCAÇ 2701, " branco" (e por sinal teu conterrâneo) e a mulher de um teu soldado, do recrutamento local, do Pel Caç Nat 53;

(v) houve violência (física), não chegou a haver violação; o que não atenua a gravidade do comportamento do teu subordinado;

(vi) tu eras comandante operacional de um subunidade, adida ao CCAÇ 2701 (Saltinho, 1970/72);

(vii) com estrito respeito pela hierarquia, o cap inf Carlos T. Clemente (hoje cor ref), não quis fazer o "by pass", isto é, quebrar a unidade comando-controlo;

(viii) não podias deixar de agir, sob pena de perderes a autoridade e o respeito dos teus homens;

(ix) e agiste à boa maneira da malta de cavalaria e dos paraquedistas: uns bons murros valiam mais, naquele contexto, do que uma "porrada" averbada na caderneta militar (não faço juízos de valor nem discuto se, face ao RDM, tinhas outras alternativas);

(x) podia ter ficado cara a tua atitude lúcida e corajosa: o cabo "abusador" foi buscar a G3 com intenções malévolas (talvez de "vingança"); foi felizmente desarmado e, em desespero de causa, decidiu desertar; cobardolas e arrependido, voltou para o quartel ao 3º dia;

(xi) a lição que tu lhe deste, não sabemos se ficou para a vida; mas 1º cabo Manuel C... deveria ter-te ficado agradecido por não quereres vê-lo embrulhado numa folha de papel selado; se o caso chegasse ao com-chefe, o gen Spínola, o teu homem nem saberia de que terra era;

(xii) o caso foi público e notório (agressão a um elemento civil, insucordinação e tentativa de deserção), mas mesmo assim omiste o seu apelido, como de resto mandam as nossas regras editoriais;

(xiii) espero que ele, algures, na América Latina, ainda te possa ler, e mostrar, memso que tardiamente, arrependimento e gratidão (neste caso, pelo teu sentido de justiça);

(xiv) e, por fim e não menos importante, deves sentir orgulho, mesmo ao fim destes 54 anos (!), de não teres cedido à tentação do "nacional-porreirismo" e teres sabido defender a honra de uma mulher (para mais, mulher de um soldado teu), de acordo com o nosso código de ética como militares;

(xv) mais do que "oficial e cavalheiro", soubeste respeitar a tua consciência e honrar a tua farda!

...De qualquer modo, Paulo, e como já aqui temos dito, nesta série "O segredo de...",  há vítimas nem lugar para a vitimização, não há heróis nem vilóes... Em contrapartida, também não consentimos que camaradas insultem outros camaradas, seja a que pretexto for (e, muito menos, na sequência da revelação de um "segredo", seja qual for o seu conteúdo).  

Uns e outros teremos de ser razoáveis e tolerantes, dois exercícios (o da razoabilidade e o da tolerância) que nem sempre não fáceis... Esta série funciona como um verdadeiro... "confessionário". E ir ao "confessionário" é, antes de mais, "desabafar" sem receio de ser criticado (e muito menos  crucificado na praça pública). Vir aqui dar a cara e contar um "segredo" também é um ato de coragem.

Guiné 61/74 - P26976: Historiografia da presença portuguesa em África (488): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1927, o novo governador é o major Leite de Magalhães (42) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Janeiro de 2025:

Queridos amigos,
São tempos de penúria, os que vivem o país e particularmente a Guiné. Já estou a ler o Boletim Oficial de 1928 e antes de chegar o providencial a ministro das Finanças os seus antecessores retiraram 40% aos vencimentos e pensões e mandaram fechar todo o ensino universitário, não se aceitaram as negociações do empréstimo com a Sociedade das Nações. O encarregado do Governo começa por ser o capitão Saldanha, chegará depois como governador o major Leite de Magalhães. Foi promulgada a Carta Orgânica da Guiné, a estrutura administrativa também mudou. Dá-se aqui atenção à nova legislação sobre as missões católicas, é merecedor de leitura o preâmbulo e a natureza da missão civilizadora, é bom recordar que este texto tem um século. A Direção dos Serviços e Negócios Indígenas produziram um questionário de inquérito sobre as raças da Guiné e seus caracteres étnicos, pretende-se conhecer os caracteres morfológicos, a vida material, as organizações familiar, económica e social, o trabalho recai sobre os administradores de circunscrição, quem desobedecer à resposta ao questionário será punido. Deixamos esta matéria para o texto seguinte.

Um abraço do
Mário



A Província da Guiné Portuguesa
Boletim Oficial do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1927, o novo governador é o major Leite de Magalhães (42)


Mário Beja Santos

Partiu o governador Vellez Caroço em dezembro de 1926, o ministro João Belo nomeou como encarregado do Governo o capitão António Saldanha. Vivendo-se em condições financeiras drásticas e num quadro de relativo apaziguamento, o que sobressai é a procura de organização administrativa. No suplemento ao Boletim Oficial n.º 4, de 28 de janeiro, publica-se a Carta Orgânica da Colónia da Guiné. A divisão administrativa da colónia contempla sete circunscrições civis e os concelhos de Bolama e Bissau; as circunscrições civis têm as sedes em Cacheu, Canchungo, Farim, Mansoa, Bafatá, Buba e Bubaque. A nível da ditadura militar, vão sendo tomadas medidas que irão ter projeção na colónia. É o caso do decreto 12.485, publicado no suplemento ao Boletim Oficial n.º 11 de 19 de março. É uma reviravolta no conceito da missionação:
“Entre as nossas maiores necessidades políticas, morais e económicas de potência colonial sobressai a de se nacionalizarem e civilizarem esses milhões de seres humanos, em relação aos quais os nossos deveres de soberania não ficam em plano inferior ao dos nossos direitos. É absolutamente preciso chamá-las da barbaria e da selvajaria em que se encontram em grande parte para um estado social progressivo em que elas tenham cada vez mais as vantagens morais e materiais da família bem constituída, da vida municipal e nacional, da agricultura, da indústria e do comércio evolutivos de um verdadeiro organismo económico.

Aqueles povos que estão ainda entregues, frequentemente, a um estado de barbarismo cruel, sujeitos ao despotismo de régulos e sobas, abismados em degradações de várias espécies; habituados a lançar geralmente o peso dos trabalho agrícolas para cima das mulheres e das filhas, deixando assim aos homens a especulação da poligamia, que obtém rendimentos do esforço feminino das vendas da prole; dominado em tudo pelas superstições mais grosseiras e brutais; explorados pela chusma, chegam a formar seitas ocultas e que por vezes fazem ou provocam assassínios, mutilações e torturas.

Pelas razões que ficam resumidas, os tratados internacionais tendem a estabelecer progressivamente um certo direito novo para as missões religiosas ultramarinas, obrigando-se as potenciais coloniais a admiti-las seja qual for o credo confessional e até a nacionalidade.

Da tolerância que vinha de longe e de outros compromissos internacionais resultou que se formaram e se espalharam na África portuguesa missões exclusivamente estrangeiras, hoje numerosíssimas em Angola e sobretudo em Moçambique, com numerosas sucursais e estações dependentes e as suas escolas e centros de catequese. Sustentadas por sociedades poderosas da Europa e da América, dispõem de recursos de centenas de milhares de dólares para a sua manutenção, desenvolvimento e propaganda. Não têm a alma portuguesa e chega em ter em muitos casos outra oposta a ela. Serviram desígnios desfavoráveis aos nossos direitos, prepararam factos graves contra eles, ao pé do Niassa e do Borotze. Depois não foi raro até hoje terem focos de intriga não só entre os indígenas, o que já não seria pouco, mas também na Europa e na América do Norte.

Portugal tem de acentuar o esforço de desenvolver nos seus domínios as missões religiosas portuguesas. Só podemos considerar serviços missionários nacionais nas colónias de África e em Timor os que foram constituídos, sustentados, desenvolvidos com subsídios do Estado, ainda que em parte exercidos transitoriamente por elementos estrangeiros.”


O diploma elenca a diferente natureza de serviços previstos na missionação portuguesa: paróquias missionárias; missões católicas de padres seculares; missões católicas de sociedades missionárias de ambos os sexos. “No fecho de todo o edifício está o prelado, verdadeiro diretor geral das missões no território da sua jurisdição espiritual; é ele português e aí está outra garantia saliente de que a ação daquelas é nacional e patriótica.”

O diploma faz referência à história da missionação a partir da I República e como se degradara uma obra de civilização que vinha do passado, apresentam-se números referente ao clero e paróquias em Angola e Moçambique e no caso da Guiné insiste que as paróquias missionárias passaram de cinco para duas. Também se faz referência às casas de formação missionária, tudo insuficiente em apoios. “Mas os três grupos de missões católicas nacionais das nossas colónias precisam absolutamente de ter na metrópole diversas dependências para a educação de pessoal, sendo, pelo menos, uma casa para a de missionários de cada um deles, três para a das cooperadoras correspondentes e três para a de auxiliares do século masculino.”

E são referidos subsídios extraordinários para Moçambique e Angola. E é então que se define a legislação para as missões católicas portuguesas:
“A República Portuguesa faz três declarações categóricas diante das outras nações da Terra. Uma é a de que Portugal, antes de todas elas, espalhou nas outras parte do Mundo as ideias superiores e universais que estão na base da civilização moderna. A outra é a de que Portugal vem sustentando, com recursos importantes do Tesouro Público, as missões religiosas que se dedicam ao levantamento das condições das raças indígenas, em continuação das tradições mais generosas do seu domínio aperfeiçoado. A última é a de que a República Portuguesa, depois das perturbações trazidas a esse trabalho honroso por certas circunstâncias excecionais, sendo ainda maiores as da Guerra, vai decididamente dar-lhes um impulso vigoroso.”

E temos então um quadro legislativo: definição das missões católicas portuguesas e a sua liberdade de estabelecimento; a sua personalidade jurídica; pessoal e casas de formação; classificação das missões, dotação e programas; papel dos diretores das missões, missionários e auxiliares; exposições gerais e transitórias.

Com significado específico para a Guiné é o constante no suplemento ao Boletim Oficial n.º 12, a 26 de abril desse ano, o inquérito sobre as raças da Guiné e os seus caracteres étnicos, portaria assinada pelo governador Leite de Magalhães. Deixamos o seu conteúdo para o texto seguinte.


Fortaleza de Bissau
Rio Grande de Bissau
Bissau
Planta da Praça de São José de Bissau. Imagens provenientes do Arquivo Histórico Ultramarino, constam da dissertação de Mestrado em História de Carlene Recheado, As Missões Franciscanas Na Guiné (Século XVII), com a devida vénia
Viagem do ministro das Colónias, Francisco Vieira Machado, à Guiné em 1935, Arquivo Histórico Ultramarino
Casa de férias do presidente Luís Cabral em Bubaque, fotografia de Francisco Nogueira, com a devida vénia
Obras de alcatroamento do Bissau Velho, foto moderna
Residência do antigo administrador de Bubaque

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 25 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26956: Historiografia da presença portuguesa em África (487): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial do Governo da Província da Guiné Portuguesa, ainda 1926, dois documentos a abonar o desejo de bem servir do Governador Velez Caroço (41) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P26975: (Ex)citações (435): Não tememos vir a público falar sobre os filhos que por lá ficaram nos três teatros de guerra, Angola, Guiné, Moçambique... (José Saúde, escritor, e ex-fur mil OE/Ranger, CCS / BART 6523, Nova Lamego, 1973/74)

1.  Comentário do José Saúde 
ao poste P26972 (*)

Camaradas,

O tema é real. Reconheço que, em princípio, não terei sido bem interpretado por alguns dos camaradas, mas o tema é exatamente verdadeiro. Não é, ou foi, ficção. 

Não tememos falar sobre os filhos que por lá ficaram nos três teatros de guerra Angola, Moçambique e Guiné, cuja vinda ao mundo foi originada por camaradas nossos, e não me excluo, que em certos momentos de amor físico lá deixavam "sementes" que originaram crianças com a patente lusa. 

Por isso, arrisquei trazer a público a questão dos "filhos do vento", algo que se assimilava a um tabu, melhor, a uma caixa hermeticamente fechada no silêncio dos deuses e "ai, Jesus, quem porventura o fizesse", pois logo vinha a misericórdia em que os mais atrevidos, neste caso eu assumo-o com inteira justeza, eram zurzidos com as mais díspares "soberbas" posições, que eu próprio admiti e compreendi, mas jamais me vergando a quem assim o entendia. 

Respeita escrupulosamente opiniões adversas.

Somos, hoje, camaradas que militamos na casa dos 70 ou 80 anos, por conseguinte tudo é passado, mas lembrem-se, e sempre, que nós, "os tugas", éramos "miúdos" na casa dos 20, 21, 22 ou 23 anos, por conseguinte, nunca esqueçam que houve crianças, hoje homens e mulheres, que ao longo da vida se confrontaram com problemas tribais que lhe atribuíram um símbolo de valores na verdade nefastos.


Bem-haja a hora em que aqui no nosso blogue, Luís Graça & Camaradas da Guiné, ou no livro "Um Ranger na Guerra Colonial, Guiné-Bissau,  1973/1974" (Edições Colibri, Lisboa)=, trouxe o tema a público e que resvalou para patamares superiores e, quiçá, impensáveis.

Deixo uma troca de mensagem entre este vosso camarada e a jornalista Catarina Gomes, autora dos episódios (que começam a ser exibidos na RTP, na quarta, dia 3) (*)

Abraço, camaradas, Zé Saúde (**)
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Troca de mensagens recentes entre o José Saúde e a Catarina Gomes:

José Saúde:

Catarina, o tema foi tabu ao longo de vários anos, todavia, valeu a minha iniciativa em trazer a público os "filhos do vento" que abriram estradas para que hoje essa temática deixasse de ser um misterioso mundo onde se cruzavam segredos que poucos ousavam, e ousam, admitir. Mas, a humanidade, sim nós seres pensantes que fomos meros protagonistas na guerra colonial, conhecemos essa realidade.

 Quando lancei o tema, quer no blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, ou num dos meus livros já editados (11) - "Um Ranger na Guerra Colonial, Guiné-Bissau,  1973/1974" (Edições Colibri, Lisboa), fui sujeito aos mais fúteis comentários, porém, nada me incomodou e segui em frente, dado que eu, afinal, tinha razão e sabia daquilo que falava. 

Para esses homens e mulheres, outrora crianças, deixo expresso o meu singelo sentimento de solidariedade. Sejam felizes, porque são gentes com sangue de tuga. Eu testemunhei e afirmei-o conscientemente.

Catarina Gomes:

José Saúde: Foste tu quem abriu esta caixa, que continua a reservar surpresas. Muito obrigada. Beijinhos




Capa do livro do José Saúde, que foi apresentado na Casa do Alentejo, Lisboa, em 8 de fevereiro de 2020, pelo major general Raul Cunha e por Luís Graça.


(...) Era linda! Por ironia do destino não consigo lembrar-me do seu nome. Sei, e afirmava o povo com certezas absolutas, que era filha de um camarada, furriel miliciano, que anteriormente esteve em Nova Lamego. Era uma criança dócil. Meiga. Recordo que a sua mãe era uma negra, muito negra, com um rosto lindo e um corpo divinal. Conheci-a e verguei-me perante a sua sensibilidade feminina. Da menina, agora feita senhora, nunca mais soube.(...) A menina foi, afinal, mais um dos “filhos do vento” que marcaram os conflitos em África. (***)


O Zé Saúde, alentejano de Aldeia Nova de São Bento, a viover em Beja,  "ranger", jornalista e escritor, foi o primeiro a levantar aqui, entre nós, a dolorosa e delicada questão dos "filhos do vento"...

A expressão "filhos do vento" foi usada pela primeira vez em 19/9/2011 (***).

 Temos uma centena de referências a esta temática ("filhos do vento" e "fidju di tuga"). 
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 1 de julho de 2025 > Guiné 61/74 - P26972: Agenda cultural (892): "Filhos de tuga": documentário em três episódios, com a duração de 52 minutos cada: começa amanhã na RTP1, às 22:29

(**) Último pposte da série > 2 de julho de 2025 > Guiné 61/74 - P26974: (Ex)citações (434): Uma questão de "falso pudor"... (José Teixeria, régulo da Tabanca de Matosinhos; ex-1º cabo aux enf, CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70)

(***) Vd. poste de 19 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8798: Memórias de Gabú (José Saúde) (3): reflexos de uma guerra que deixou marcas no tempo: “Filhos do vento”

Guiné 61/74 - P26974: (Ex)citações (434): Uma questão de "falso pudor"... (José Teixeira, régulo da Tabanca de Matosinhos; ex-1º cabo aux enf, CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70)



Guiné-Bissau > Região de Tombali > Guileje > Simpósio Internacional de Guileje > 1 de março de 2008 > O Zé Teixeira com a Cadidjatu Candé (infelizmente já falecida), filha de Akiu Candé, o valente alferes de 2ª linha e comandante de milícias no Quebo, preso e assassinado com requintes de crueldade  pelo PAIGC depois do fim da guerra.

Foto (e legenda): © José Teixeira (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar:Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Desafiei o Zé Teixeira  ( e o Cherno Baldé) a comentar este posta P26971 (*):

Zé e Cherno:


Não sei se é pedir-vos muito... Mas gostava que comentassem a primeira parte do aerograma do nosso já saudoso Fernando Calado, que acabou de morrer há dias... Esteve comigo cerca de um ano em Bambadinca. E nestes últimos quarenta / cinquenta anos, apreciei melhor o seu fino trato.... E falou do nosso blogue, antes de morrer, segundo confidência da viúva, Rosa Calado.

A questão do pudor, entre diferentes culturas (e em diferentes épocas), é um tema apaixonante... Os médicos, desde Hipócrates, há 25 séculos que dizem "naturalia non turpa" (o que é natural não é vergonhoso)....

Há um "pudor natural", próprio dos primatas, mas o nosso é profundamente culturalizado. O Cherno lidou connosco, tugas, tu, Zé, lidaste com os fulas, tiveste talvez tanta ou mais intimidade do que eu com os nossos bons e leais amigos, que combateram (e alguns morreram) ao nosso lado... Mas não deixávamos de ser diferentes, e em posições de poder diferentes.

Mantenhas. Luís


2. Resposta, com data de ontem,  do Zé Teixeira (régulo da Tabanca de Matosinmhos, 
ex-1.º cabo aux enfermeiro, CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70; é um histórico da Tabanca Grande, que integrou a partir de 14/12/2005; tem 443 referências no blogue; vive em São Mamede de Infesta, Matosinhos; é gerente bancário reformado) (**):


Luís.

Esta é uma questão do falso "pudor" ocidental português dos anos 60/70, enraizado num país tradicionalmente católico ao quadrado, "dono" de um (falso) Império espalhado pelos quatro cantos do mundo, como nos ensinavam na escola primária e na catequese.

Forçados a ir ao encontro de outras civilizações com diferente forma de gerir o respeito pelo corpo, naturalmente que estranhámos, e mais que isso, no caso da Guiné, não soubemos respeitar, o deles, mas refugiando-nos no nosso. 

Recordo a minha chegada a Ingoré e ser recebido por um coro de bajudas com o tronco nu a oferecerem os seus préstimos como "lavanderas". Foi um choque civilizacional e perturbador do meu eros, mais que isso, senti a falta de respeito dos soldados brancos "velhinhos" e até "periquitos", levados na onda do apalpar os seios das garotas, até com violência. E se elas eram lindas e bem jeitosas, o raio das bajudas!

Com não vi os jovens africanos a praticar tais gestos, entendi que devia respeitar a ordem das coisas (puritano? talvez!). Nunca tomei tal atitude, sem deixar de "brincar" dentro do respeito pelo "outro"/outra" a que vinha educado, como por exemplo, quando de serviço à enfermaria me aparece na fila para consulta uma jovem mulher linda e bem dotada.

- Bajuda linda e mama firme! - disse-lhe eu em jeito de piropo.

- Nega! A mim mulher grande!

- Hum, bo conta mintira. Bajunda linda e mama firme!

Então ela, a Binta, chega o peito junto da minha cara e esparrinha-a com leite do seu seio, para gáudio da mulherada que estava na fila.

Adaptei-me à realidade ao chegar ao Sul, mais propriamente a Mampatá do Forreá, onde por força das circunstâncias, vivíamos no meio da população, criei raízes de amizade que ainda hoje perduram, sempre no respeito mútuo pela forma de ser e estar de cada um. 

Fui algumas vezes tomar banho no riacho onde as mulheres lavavam a nossa roupa (um riacho que aparecia na época das chuvas), servindo-me de uma lata como chuveiro (banho à fula) e quantas vezes eram elas que me deitavam a água pela cabeça abaixo. Algumas estavam nuas e quando me viam chegar, nem sempre se tapavam, outras tapavam-se com um pano e eu normalmente estava de cações de banho e por vezes nu.

As nossas formas de ser e estar nunca foram impeditivas de uma boa relação, mas entendo bem a reação do Fernand Calado, como homem educado e respeitador que era. Por parte das bajudas, talvez mindjers garandi, foi uma atitude natural de quem se sentia à vontade, na sua forma de ver o corpo humano, sem os preconceitos ocidentais.

Zé Teixeira

terça-feira, 1 de julho de 2025 às 17:18:53 WEST

(Revisão / fixação de texto, título, negritos, itálicos: LG)

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 1 de julho de 2025 > Guiné 61/74 - P26971: Humor de caserna (202): Dormir nu por causa do clima à noite e ter sonho "manga di bom": aerograma datado de Bambadinca, 1 de dezembro de 1969, dirigido à sua amada pelo nosso saudoso Fernando Calado (1945-2025)

(**) Último poste da série > 21 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26825: (Ex)citações (433): Ao pesquisar na Net informações relacionadas com o aquartelamento de Nova Sintra, li as crónicas do Fur Mil Joaquim Caldeira, da CCAÇ 2314, e numa delas com o título “Um tronco sem pernas e sem braços”, verifiquei que, pelas piores razões, eu era um dos protagonistas da história (Aníbal José da Silva, ex-Fur Mil Vagomestre)

terça-feira, 1 de julho de 2025

Guiné 61/74 - P26973: Os 50 anos da independência de Cabo Verde (5): em 30 de junho de 1975, vindo de Bissau, eu fazia a reportagem das primeiras eleições de deputados, para a Assembleia Nacional Popular (Carlos Filipe Gonçalves)







Cabo Verde > Ilha do Sal > Aeroporto > 28 de junho de 1975 > Há 50 anos eu fazia a reportagem das eleições em Cabo Verde,  em 30 de junho de 1975. Na foto a chegada da equipa da comunicação social da Guiné-Bissau à Ilha do Sal, no sábado 28 de junho de 1975. Da esquerda para direita: 

  • Flora Gomes e Sana Nahada (operadores-câmara filmar); 
  • António Óscar Barbosa (Cancan) (#)  e Carlos F. Gonçalves (jornalistas);
  • Agostinho (fotógrafo).

Foto (e legenda) : © Carlos Filipe Gonçalves 2025). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné
.




O Carlos Filipe Gonçalves, nosso antigo camarada na Guiné (foi fur mil amanuense,  CefInt/QG/CTIG, Bissau, 1973/74), é uma figura pública no seu país, Cabo Verde (ver aqui entrada na Wikipedia). Natural do Mindelo, vive na Praia. É autor, no nosso blogue, da série "Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (Carlos Filipe Gonçalves, Mindelo)".

 


1. Postagem publicada na página do Facebook de  Carlos Filipe Gonçalves | segunda, 30 de junho de 2025, 12: 32, bem como na página da Tabanca Grande:



Eis um extrato do meu livro sobre a Rádio Barlavento, no qual descrevo esse dia e a reportagem no dia da eleições (*):

(...) Em junho de 1975 fui indicado para integrar a equipa de reportagem da Rádio Difusão Nacional da Guiné (RDN) que se deslocou a Cabo Verde para cobertura das festividades da Proclamação da Independência. (##)

Viajei integrado na equipa de reportagem que acompanhou a delegação da Guiné que era chefiada pelo comandante Nino. À chegada ao Sal, a malta da rádio,  jornal e cinema foram para a Praia. Fui indicado para ir primeiro a S. Vicente, para cobrir as eleições para a Assembleia Nacional Popular que decorreram na segunda-feira,  30 de junho. Pouco depois de chegar a Mindelo, fui às instalações da rádio, agora Rádio Voz de S. Vicente, nas instalações do Grémio e da antiga Rádio Barlavento.

(….) Na segunda-feira 30 de junho de 1975 faço a reportagem das eleições de deputados, para a Assembleia Nacional Popular. Depois de uma volta pelos bairros, onde vi filas enormes de votantes, acabo por entrar na assembleia de voto da Escola Nova. Fui recenseado na hora, inscrito na lista eleitoral, recebi um boletim de voto e votei! 

Escrevo à pressa uma crónica dos acontecimentos que presenciei. Tento depois um contacto com Bissau, para enviar as notícias, mas isso torna-se uma tarefa impossível. Não há facilidades nos CTT, aliás todo o mundo aqui fica espantado com o meu pedido! Enviar reportagem? Isso é uma novidade, perguntam logo, como se faz? Lá expliquei, mas, a nega continuou. 

Quem paga, podia ser o problema, mas não me dizem... Alguém, querendo ajudar, sugeriu e levou-me a um radioamador! Todo solícito e sentindo-se importante, ele disponibiliza-se logo, leva-me ao seu «estúdio» e vai-me dizendo, que ele tem um amigo radioamador em Bissau. Fiquei surpreso! Através da aparelhagem, chama, chama, enunciando o indicativo e siglas próprias… Mas não obtém resposta! Passei lá mais de uma hora… Nada! Desisti.

Na terça-feira, à tarde apanhei o voo para a Praia, onde vou encontrar os colegas da rádio de Bissau, Cancan e Zeca Martins e a malta do cinema que está encarregue de filmar todos os acontecimentos. A missão agora é a reportagem do dia 5 de Julho, no próximo sábado. (…) (**)

_____________

Notas do autor (CFG):

(#) António Óscar Barbosa, conhecido jornalista, passou pelo Emissor Regional da Emissora Nacional em Bissau, Rádio Libertação e Radiodifusão Nacional da Guiné-Bissau. Foi assessor para a comunicação de Luís Cabral e Nino Vieira. Na política, a partir dos anos 1990, desempenhou cargos ministeriais.


(##) O
PAIGC sempre teve,  desde Conacri, uma equipa de operadores de câmara, fotógrafos e operadores de som, que registava todos os acontecimentos. Faziam agora parte dos órgãos de comunicação social.

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Notas do editor LG:

(*) Último poste da série > 28 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26964: Os 50 anos da independência de Cabo Verde (4): Cemitério Central do Mindelo: Talhão dos combatentes portugueses (Nelson Herbert / Luís Graça) - II (e útima) Parte

(**) A 19 de Dezembro de 1974 foi assinado um acordo entre o PAIGC e Portugal, instaurando-se um governo de transição em Cabo Verde. Este mesmo Governo preparou as eleições para uma Assembleia Nacional Popular, realizadas em 30 de junho, e  que em 5 de julho de 1975 proclamou a independência.

Cite-se uma peça recente da agência Inforpress (excertos, com a devida vénia):


(...) Cidade da Praia, 21 Mai (Inforpress) - Os primeiros deputados cabo-verdianos reuniram-se em sessão plenária em 04 de Julho de 1975, véspera da Independência Nacional, no salão da Câmara Municipal da Praia, para constituírem a primeira Assembleia Nacional Popular (ANP), com Isaura Gomes única deputada.

A acta da primeira sessão legislativa da primeira legislatura, consultada pela Inforpress, revela que os 56 deputados eleitos por todos os círculos eleitorais do país reuniram-se pelas 16:30 nos Paços do Concelho da Praia.

Nas listas únicas constavam nomes de dois sacerdotes (...).

A Comissão Eleitoral de então, presidida pelo jurista Raul Querido Varela, funcionou no edifício do Palácio da Justiça.(...)

Foi esta Comissão que, a 03 de Julho de 1975, procedeu ao apuramento geral do resultado das eleições dos deputados à Assembleia Nacional de Cabo Verde.

Este apuramento aconteceu nos termos do disposto nos artigos 102 a 105 da lei eleitoral de Cabo Verde, aprovada pelo decreto-lei 203/A 75, de 15 de Abril de 1975, do Governo provisório da República Portuguesa. (...)

O falecido Abílio Duarte, que a 05 de Julho proclamou a independência de Cabo Verde, no Estádio da Várzea, foi o primeiro presidente do parlamento cabo-verdiano. (...)

Após a instalação da mesa definitiva, Abílio Duarte declarara aberta a primeira sessão da Assembleia Nacional Popular.

De seguida, convidou os deputados a porem-se de pé, procedendo-se à leitura do texto de juramento colectivo, por uma questão de economia e tempo.

“Juro por minha honra dedicar a minha inteligência e energias ao serviço do Povo de Cabo Verde, cumprindo com fidelidade total os deveres da alta função de Deputado à Assembleia Nacional Popular”, foi assim que os eleitos de então juraram para servirem o país.

Feito o juramento, segundo consta da acta, a sessão foi suspensa por uns instantes e, de seguida, o presidente convidou os jornalistas a abandonarem a sala de sessão. (...)

Nessa mesma sessão, além do texto da proclamação da República de Cabo Verde, foi aprovada, por unanimidade, a Lei da Organização Política do Estado (LOPE), e foi, ainda, adoptada a lei que atribui a Amílcar Cabral o título de Fundador da Nacionalidade.

De acordo com o documento de 42 páginas dactilografadas, na época, a eleição do Presidente da República e do primeiro-ministro foi por aclamação.

“Povo de Cabo Verde, hoje, 05 de Julho de 1975, em teu nome, a Assembleia Nacional de Cabo Verde proclama solenemente a República de Cabo Verde como Nação Independente e Soberana (...)”, lê-se no texto apresentado pelo presidente da ANP.

Abílio Duarte concluiu a leitura do texto de proclamação da independência dizendo que “a República de Cabo Verde lança um apelo a todos os Estados independentes, organizações e organismos internacionais, para que reconheçam de jure como Estado soberano, de harmonia com o Direito e a prática internacionais”.

Foi ainda nesta sessão legislativa que Aristides Pereira fora eleito primeiro Presidente da República de Cabo Verde e Pedro Pires como primeiro-ministro.

Em 1975, houve quem considerasse que Cabo Verde era um país “inviável” e com a independência ia desaparecer do mapa.

No livro do jornalista José Vicente Lopes “Aristides Pereira: Minha vida, nossa história”, o primeiro Presidente de Cabo Verde relata episódios sobre a situação financeira herdada da então potência colonial.

“Portugal deixou-nos praticamente com uma mão à frente e outra atrás (…), porque também estava com sérios problemas de sobrevivência devido ao caos financeiro e económico que nele se instalou com o 25 de Abril”, disse Aristides Pereira, para quem o que mais os governantes de então temiam era a seca.

Mas, segundo ele, graças à campanha de sensibilização feita junto de alguns países africanos e de Portugal, conseguiram colmatar as carências que havia para arrancar.

Para assinalar o 50º aniversário da independência nacional, a Assembleia Nacional vai reunir-se no dia 05 de julho, em sessão solene, sob a presidência de Austelino Correia, com um parlamento constituído por três partidos políticos: o Movimento para a Democracia (MpD, poder), o Partido Africano da Independência de Cabo Verde (PAICV) e a União Cabo-verdiana Independente e Democrática (UCID), ambos da oposição. LC/AA.


(Revisão / fixação de texto: LG)

Guiné 61/74 - P26972: Agenda cultural (892): "Filhos de tuga": documentário em três episódios, com a duração de 52 minutos cada: começa amanhã na RTP1, às 22:29



Filhos de Tuga > Ao Pai Desconhecido | Episódio 1 de 3 | Duração: 52 min | RTP 1 | Episódio 1 | 02 Jul 2025

Houve um tempo em que Fernando Hedgar da Silva pensou que o pai português se chamava Furriel. Só em adulto percebeu que, afinal, furriel não era nome e sim o posto do militar que esteve com a mãe durante a guerra. Pensou que era caso único. Acabou por descobrir que havia muitos como ele na Guiné-Bissau: chamam-lhes «filhos de tuga» ou, se os querem magoar mais, «restos de tuga». 

Fernando criou uma associação para os defender ("Fidju di Tuga"). Todos os anos organizam uma «Homenagem ao pai desconhecido», uma cerimónia em que depositam coroas de flores em campas de militares portugueses mortos na Guerra Colonial. Dizem que só vão parar quando os pais os reconhecerem ou, pelo menos, Portugal.




A Procura








José Saúde


terça, 24/06, 16:45 (há 7 dias)



Luís, interessante este tema. Repara onde os "Filhos 


Filhos de Tuga > A Procura | Episódio 2 de 3 ! Duração: 52 min | RTP >  07 jul 2025 | 22: 29

A mãe da moçambicana Rosa Monteiro nunca lhe escondeu que o pai era um marinheiro português. No tempo da guerra, o militar esteve colocado na terra delas, junto ao Lago Niassa, no Norte de Moçambique. A filha sabia pouco sobre o pai, além do apelido Monteiro, o posto militar que ocupava e o modelo da lancha onde navegava. Rosa andou uma vida inteira a tentar ir a Portugal descobrir o pai. Acabou por ser um ex-combatente português, marinheiro como o pai, a dar-lhe a mão.

Fonte: RTP > Programas TV

 

1. Amanhã. quarta, dia 2 de julho de 2025, estreia, na RTP1,  a série documental "Filhos de Tuga", da autoria de João Gomes e Catarina Gomes. Produção: RTP. São 3 episódios, cada um com a duração de 52 minutos.

Sinopse: Conheça a história de milhares de filhos que os militares portugueses tiveram de mulheres africanas durante a Guerra Colonial em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique

Uma série documental que aborda um problema desde sempre abafado pela História: a existência de milhares de filhos que os militares portugueses tiveram de mulheres africanas durante os 13 anos de Guerra Colonial - em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique - e que deixaram para trás, não os reconhecendo e, muitas vezes, ignorando até a sua própria existência.

Os autores percorreram os territórios das três antigas frentes de combate para trazer à luz do dia o drama silencioso destes herdeiros perdidos do império lusitano, esquecidos por Portugal e desprezados nos seus países, onde são depreciativamente tratados por "filhos de tuga" ou mesmo "restos de tuga". 

Mais de meio século depois, a sua ambição continua a ser apenas uma: conhecerem os pais, ou mesmo a família que têm do outro lado do mar. Mas é um desejo que sempre lhes foi negado, deixando uma dor que, por muito tempo que passe, não desaparece.

Como pano de fundo, permanece uma questão: terão os "filhos de tuga" direito a um reconhecimento do Estado português, que lhes deverá prestar toda a informação possível quanto aos seus laços de sangue paterno?

Fonte: RTP > Programas TV

Próximas emissões deste programa

02 Jul 2025 | 22:29 | RTP1

10 Jul 2025 | 22:30 | RTP Internacional


Ficha Técnica:

Título Original : Filhos de Tuga | Realização: João Gomes, Catarina Gomes | Produção; RTP e Nanook |  Autoria: Catarina Gomes | Ano2024 | Duração: 52 minutos

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Nota  do editor

Guiné 61/74 - P26971: Humor de caserna (202): Dormir nu por causa do clima à noite e ter sonho "manga di bom": aerograma datado de Bambadinca, 1 de dezembro de 1969, dirigido à sua amada pelo nosso saudoso Fernando Calado (1945-2025)




Lisboa > Casa do Alentejo > 26 de Maio de 2007 > Fernando Calado (1945-2025) e Rosa Calado: um grande amor para a vida. 

Foto (e legenda): © Luís Graça (2007). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Lisboa > Casa do Alentejo > 26 de outubro de 2013  > Ismael Augusto (em segundo plano) e Fernando Calado: dois amigos para a vida. Partilharam o mesmo quarto em Bambadinca (1968/70).


Foto (e legenda): © Luís Graça (2013). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]-




Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Bambadinca > Comando e CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) >  c. setembro / outubro de  1969 >  A equipa de futebol de oficiais de Bambadinca que acabara de jogar contra uma equipa de sargentos.

Na fotografia aparecem, na segunda fila, da esquerda para a direita: de pé, o alf mil Beja Santos (cmdt do Pel Caç Nat 52, 1968/70), o alf mil médico, David Payne Pereira (já falecido em data anterior a 2006;  era um conhecido psiquiatra, deve ter ido em outubro/novembro de 1969 para o HM 241, em Bissau;  substituído em novembro pelo Joaquim Vidal Saraiva, cirurgião), o major Cunha Ribeiro (1926,-2023),  comandante do BCAÇ 2852 (chegou a Bambadinca em setembro de 1969), o cap inf Carlos Alberto Machado de Brito (hoje cor ref, vive em Braga), comandante da CCAÇ 12, e ainda o alf mil at int Abel Maria Rodrigues, também da CCAÇ 12.

Na primeira fila, da esquerda para a direita, um oficial miliciano  que ainda está por identificar, seguido de três alf mil nossos camaradas,  José António G. Rodrigues, da CCAÇ 12 (já falecido), o António Carlão, também da CCAÇ 12 (já falecido) e o Ismael Augusto (CCS /BCAÇ 2852). 

O Fernando Calado, alf mil trms, também fazia parte desta equipa mas fracturou um braço, não aparecendo por isso na foto de grupo (que é  do álbum do cor inf Cunha Ribeiro).

Foto: © João Pedro Cunha Ribeiro (2023). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. A propósito da canícula destes dias de finais de junho (em que no passado domingo, ao início da tarde, se atingiu, em Mora, um novo e preocupante recorde de temperatura para este mês, no nosso país, 46,6° C,  valor próximo do máximo histórico absoluto registado em 2003, na Amareleja, 47,3º C), fui recuperar um aerograma do nosso saudoso Fernando Calado (Ferreira do Alentejo, 1945 - Lisboa, 2025), escrita para a sua namorada de então (e futura esposa e mãe dos seus dois  filhos, a Rosa Calado).  O aerograma é datada de Bambadinca, 1 de dezembro de 1969. 

O documento, já publicado em tempos no nosso blogue (*), merece ser recuperado melhorado  e reproduzido. Por diversos motivos:

 (i) é uma belíssima carta de amor;

 (ii) tem apontamentos sobre o nosso quotidiano e os "usos e costumes" na Guiné;

(iii) raramente, em tão poucas linhas de um aerograma, se dizia tanto sobre a vida " concentracionária" de um oficial miliciano ( e para mais de transmissões)  na Guiné;

 (iv) confirma o que todos nós experimentámos: o território tinha então (e continua a ter) um clima tropical húmido, caracterizado por temperaturas elevadas durante todo o ano e uma humidade relativa do ar extremamente alta, suscetível de causar desidratação e esgotamento, dificuldades respiratórias, problemas de pele, problemas de sono, doenças tropicais, stress físico e psicológico, conflitualidade grupal e interindividual, etc., problemas agravados pela guerra e a atividade operacional, o isolamento, a saudade, a par do elevado consumo de álcool, procura de sexo e outros comportamentos aditivos como o jogo.

Tomando hoje Bissau como ponto de referência, pode dizer-se que a estação das chuvas  é opressiva e de céu encoberto; a estação seca é húmida, com céu parcialmente encoberto; ao longo do ano,  o clima é sempre quente e húmido: em geral a temperatura varia de 19 °C a 35 °C e raramente é inferior a 17 °C ou superior a 38 °C. Dezembro e janeiro são meses mais frescos á noite. (Um europeu pode chegar a tiritar de frio, á noite, emboscado no mato, situação por que o Fernando nunca terá passado.)

Dormir nu à noite (com ou sem lençol) era relativamente normal, podendo todavia originar algumas "cenas pícaras" como a que  aqui é descrita (**)... 

Os guineenses (e nomeadamente os fulas) lidavam melhor com a nudez: os soldados da CCAÇ 12, do recrutamento local, por exemplo, tomavam banho nus, em grupo, no rio, sem complexos.  Os "tugas", naquela época, eram mais púdicos. 

 De qualquer modo, as nossas manifestações de recato e pudor não eram exatamente as mesmas... Eram fortemente modeladas pelas nossas diferentes  culturas (e não propriamente "civilizações").

No quartel de Bambadinca, que até tinha razoáveis instalações para  oficiais e sargentos, construídas de raiz pelo BENG 447,  os oficiais milicianos dormiam em quartos com três camas. Quartos individuais eram um privilégio de capitães e oficiais superiores.  Os sargentos dormiam em quartos para cinco. As praças metropolitanas em casernas sem condições. Os guineenses nas duas tabanca de Bambadinca com as suas famílias.

 O Fernando Calado (ex-alf mil trms, CCS/BCAÇ 2852, Bambadinca, 1968/70) era um felizardo,  partilhava o quarto só com o Ismael Augusto (ex-alf mil manutenção), já que o João Rocha, ex-alf mil rec inf  [João Alfredo Teixeira da Rocha (Ilha de Moçambique, 1944 - Porto, 2018)] cedo deixou a companhia e o batalhão, por motivos disciplinares.

Inserir este aerograma na série "Humor de caserna" é também uma forma de homenagear um camarada e amigo como o Fernando Calado  de quem o Hernani Figueiredo disse recentemente (em mensagem de domingo, 29/06/2025, 17:26):
 
(...) "Encontrámo-nos no BC 5, em Campolide, antes da mobilização de ambos para a Guiné, ele no BCAÇ 2852 e eu no BCAÇ 2851.

"Desde há alguns anos que falávamos telefonicamente, especialmente na época natalícia. Partiu um bom homem, cidadão e amigo.

"Um eterno descanso em paz. Hernani Figueiredo." (...)

Como a maioria dos militares mobilizados para as guerras de África, o Fernando "escrevia o aerograma á (sua) namorada" (...)," quase diariamente, ao princípio da noite". Este foi um dos aerogramas que, em vida, ele quis partilhar connosco (*).


 Aerograma de Fernando Calado > Bambadinca, 1 de Dezembro de 1969

Meu amor:

Esta manhã, acordei sobressaltado, e reparei que estavam no quarto 2 bajudas (mulheres jovens da Guiné) que nos traziam a roupa lavada e que riam à gargalhada.

Estava nu, de barriga e outras coisas para cima, e transpirado como sempre.

Olhei para o camarada do lado que estava tão aflito como eu, e, à boa maneira europeia, tentei cobrir-me com um lençol que não tinha.

Perguntei então às bajudas porque se riam, tendo elas respondido o seguinte: 

− Alfero, sonho manga di bom hoje mesmo!

Para além do embaraço, pensei depois que afinal eu, um homem dito civilizado, tive uma postura naturalmente preconceituosa enquanto que elas, mulheres ditas primárias, tiveram uma postura naturalmente genuína, tendo expressado com rigor o que se tinha passado e rido com gosto a propósito de uma situação bastante caricata.

Passei a manhã a tratar da organização das transmissões de vários grupos operacionais escalados para operações e mais uma vez os comandantes de pelotão disseram-me que os rádios são uma merda e que, por vezes, não funcionam em situações de emergência.

Eu bem sei que me disseram sempre que os rádios são os mesmos da II Guerra Mundial mas, mesmo assim, custa-me anos de vida quando não se consegue fazer o contacto para evacuação de feridos.

Sinto assim, apesar dos meus 24 anos, que tenho uma responsabilidade excessiva e não me resta outra alternativa senão tentar ser o mais eficiente possível.

Antes do almoço, depois do segundo banho do dia, dirigi-me ao bar onde saboreei descontraidamente o meu whisky com água Perrier.

Gosto particularmente deste momento do dia. Diz-se aqui, que na Guiné existem apenas 2 coisas boas: o whisky com água Perrier e o avião para a Metrópole.

Chegou depois o meu colega de quarto 
[alf mil Ismael Augusto ] e a propósito de qualquer coisa que já não me recordo, ocorreu uma discussão de tal ordem que quase andámos ao murro.

Foi uma vergonha e fomos até ameaçados de ser castigados. São horas, dias, semanas, meses, anos a aturar-nos, sempre em tensão e dentro deste espaço ladeado por arame farpado.

Na verdade, penso que as discussões, a batota, os copos, o calor, os ataques, as emboscadas, etc. criaram uma cumplicidade tal, que tudo indica que seremos amigos do peito para toda a vida

Como se isso não bastasse, durante o almoço o médico 
[alf mil  Joaquim Vidal Saraiva  ]   veio comunicar-me que mais de metade dos soldados da companhia estavam infectados com blenorragia (designação apropriada do termo de calão muito conhecido que dá pelo nome de esquentamento e que se reporta a uma infecção nos órgãos genitais).

Segundo ele, a penicilina não está a actuar em virtude do calor excessivo e da elevada taxa de humidade e, portanto, é necessário organizar uma reunião de esclarecimento com todos os soldados disponíveis.

Soube depois que o pedido a mim dirigido resultava,  afinal, do facto do meu pelotão ter a maior taxa de elementos infectados.
 [O pelotão de transmissões da CCS tinha 1 alferes, 3 sargentos, 9 cabos e 8 soldados].

Durante a tarde algumas pessoas conseguem dormir a folga, coisa que nunca consegui e ainda menos com este calor e esta humidade.

Eu, como todos os dias que não saio do aquartelamento, cumpri algumas tarefas burocráticas que a tropa, mesmo em guerra, não dispensa.

Mais tarde vagueei, uma vez mais, dum lado para o outro sempre com a sensação de estar encurralado, na ânsia de conseguir gastar o tempo que me falta para me livrar disto.

Por vezes ocorrem, no final do dia, momentos de alguma descontracção. Conversamos sobre a nossa vida na Metrópole e damos umas voltinhas de jipe.

Não tenho carta de condução, mas conduzo. Recebi umas lições do meu colega de quarto e desenrasco-me. De qualquer modo ninguém, nesta situação, está interessado em saber se tenho ou não carta de condução.

Já anoiteceu e partir de agora e até pegar no sono, o que acontecerá lá para as tantas da manhã, instala-se o medo e a saudade.

Eu, que sempre gostei da noite, juro-te que aqui odeio a noite. Estamos todos fartos de fumar, de beber e de jogar, mas a verdade é que estas actividades aliviam, de facto, o medo e a saudade.

Hoje é feriado [1º de Dezembro, dia da Restauração da Independência de Portugal, ] e a probabilidade de haver problemas aumenta. A malta está mais concentrada, fala mais baixinho. [No dia 28 de Maio de 1969, Bambadinca tinha sido atacada em força.]

A questão do medo é surpreendente. Há camaradas que parecem não ter medo nenhum. É como se estivessem em casa ou numa esplanada e, mesmo debaixo de fogo, funcionam normalmente.

Depois, talvez a maioria, tem imenso medo, mas mercê de um enorme esforço consegue controlar a situação (julgo que me enquadro neste grupo).

Finalmente há camaradas, alguns deles aparentemente corajosos, que em quase todas as situações, entram em pânico total e que precisam sempre de ajuda. São obviamente os que sofrem mais, quer durante a situação, quer sobretudo pela vergonha que sentem depois.

Tenho saudades de tudo na metrópole: das pessoas, das ruas, dos jornais, da rádio, dos carros e até dos comboios que aqui não existem.

Quanto a ti, meu amor… Acredita, nunca imaginei que a saudade que sinto de ti me provocasse tamanha dor física. Dói-me a cabeça, dói-me as pernas, dói-me o peito… enfim dói-me tudo.

Sei que estou desesperado, mas não resisto a dizer-te que dava anos da minha vida, se é que os vou ter, para estar neste momento contigo.

São 8 horas da noite e a temperatura nesta altura é um pouco mais amena. Se calhar esta noite vou ter de pôr um lençol na cama, não vou transpirar a dormir, e… talvez tenha um sonho manga di bom.

Do teu para sempre,

Fernando.


[Revisão / fixação de texto para efeitos de edição no blogue; negritos e parênteses retos; título: LG]

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Notas do editor LG:

(*) Vd. poste de 30 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20191: (De) Caras (112): O aerograma de 1 de dezembro de 1969: "Meu amor, se calhar esta noite vou ter de pôr um lençol na cama, não vou transpirar a dormir, e… talvez tenha um sonho manga di bom"... (Fernando Calado, ex-alf mil trms, CCS/ BCAÇ 2852, Bambadinca, 1968/70)