quinta-feira, 5 de julho de 2007

Guiné 63/74 - P1925: O meu reencontro com o Arsénio Puim, ex-capelão do BART 2917 (David Guimarães)


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Xitole > 1970 > O Padre Puim, capelão militar, açoriano, da CCS do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72) com o furriel Guimarães da CART 2716.

Devido às suas homílias, este capelão teve problemas com o comando do seu batalhão que o terá denunciado à PIDE/DGS. Acabou por ser preso e expulso do Exército, no início de 1971, tal como outros (o caso talvez mais famoso foi o do Padre Mário da Lixa, membro da nossa tertúlia).

Infelizmente, é a única foto que possuímos do ex-Padre Puím, hoje enfermeiro no Hospital de Ponta Delgada, casado e pai de filhos, segundo a informação que me chega através do David Guimarães e do Abílio Machado (1).

Foto (e legenda): © David Guimarães (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: BLogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Excerto da mensagem de David Guimarães, de 21 de Maio último (1), e a que ele deu um título bonito: Cartas a tocar os tempos de guerra, Cartas de amigos que se vão encontrando e crescendo:


Um camarada muito especial, o capelão Puim


por David Guimarães


Explorando os contactos de tantos ex-camaradas que fizeram parte do meu batalhão (BART 2917) e da minha companhia (CART 2716) (2), encontrei um que era especialíssimo, até pela arma a que pertencia, o serviço religioso... Estou-me a referir, naturalmente, ao nosso querido Capelão...

Havia uma fotografia em que estava eu e ele no Xitole [vd. foto acima]: pedi a Durães para lhe enviar. Então o Durães disse-me:
- Olha, envia-lhe tu que é mais correcto e ele ficará contente.

Efecticamente o Durães tinha razão. Em 3 de Abril último, depois de praticamente só ter enviado a fotografia pelo Durães, dei um aceno de existência ao ex- Capelão, tendo recebido o seguinte Mail:

Guimarães:

Obrigado pelo email e a fotografia, que já recebi anteriormente [Tinha-he enviado o Durães a meu pedido].

Gostei de saber que a Companhia do Xitole [, a CART 2716,] vai reunir em Fátima. Pensando ir a Lisboa, não irei a tempo de apanhar o vosso encontro. Gostaria, porém, de saber o endereço completo da casa onde este vai decorrer, assim como a
confirmação do dia e hora, para vos mandar uma mensagem.

Que fim levou a malta de Mansambo [, CART 2714,] e Xime [, CART 2715]?

Um grande abraço,
Arsénio Puim


Escrevi assim para os Açores em 4 de Abril:

Olá, meu caríssimo bom amigo (CAPELÃO). Não deixará de o ser para nós, pois a estima nunca nos faltou, e falo em nome de quase todo o Batalhão, disso aposto...

Bom, vamos responder: Restaurante Santa Luzia, Rua de Santa Ana nº 3, junto mesmo à Basílica, parte de trás, ala esquerda... O almoço está marcado com inicio às 13,30...

Uma Mensagem de Puim será por certo o melhor acontecimento, sendo certo que não chegando poderá enviar para mim por aqui, que mesmo eu a proclamarei lá com todo o gosto e em bom som...

Todos os anos vem sempre á baila o Padre Puim... O Cap Mil Espinha de Almeida [, cmdt da CART 2716,] fala sempre em si... Emfim, ainda bem que estamos aqui assim, de mãos dadas, como sempre afinal e passados 30 anos falamos das mesmas coisas... Somos muitos e amigos...

Sabendo que não pode estar (é natural), havemos de construir uma ponte até aos Açores. Creio que em 9 de Junho lá estará em Setúbal, eu também lá irei... Tenho que ir matar as saudades com os camaradas da CCS. Creio que também se irão juntar alguns elementos da CCAÇ 12, aquela Nativa que estava afecta ao Batalhão...

Quanto a Mansambo e Xime... O Xime tem-se reunido de dois em dois anos, creio...Tenho que os encontrar e agora estamos a fazer tudo para isso... Em relação a Mansambo teremos que tomar as mesmas acções. O meu sonho é juntar o Batalhão um dia, pelo menos os ex-quadros... O Durães está empenhado tanto quanto eu, pois eu meti-o ao barulho...

Em 2001 fui à Guiné e, sabe, valeu a pena... reconciliar com o passado maldito e abraçar aqueles que tinham combatido contra mim. Vale a pena, valeu a pena mesmo. Foi uma óptima terapia....

Entretanto no dia 28 [de Abril de 2007] vamos reunir as pessoas que escrevem no blogue de que já tem conhecimento [, Luís Graça & Camaradas da Guiné]. É 2º Encontro, é apaixonante mesmo...

Quero um dia morrer e saber que o lucro que tive na sangrenta guerra foram todos estes amigos que ora partilham comigo os mesmos sentimentos - amizade e solidariedade. Aí estará o nosso valor divino, a partir daí não servimos para mais nada ou para pouca coisa...

Um abraço e até sempre

Aproveito para lhe desejar uma óptima Páscoa na companhia daqueles que mais ama - mulher e filhos.

David Guimarães


2. Comentário do editor LG:

Meu querido amigo e camarada David:

Convivi pouco com o capelão Puim. Já não ia missa nessa idade, e muito menos na Guiné, em Bambadinca. Além disso, a malta da CCAÇ 12 tinha uma intensa actividade operacional, ao serviço do comando do do batalhão, sobrando pouco tempo para conviver com a malta da CCS. 

Levei-o, a ele, Puim, uma vez, numa das nossas colunas logísticas ao Xitole, a ele e à mulher do Carlão... (Ainda me recordo de a ver, de camuflado, e de sapatos de salto alto, vermelhos, à guarda do angélico Puim... Não sei se te recordas: o Carlão era um dos alferes da CCÇ 12, estando na altura destacado no reordenamento de Nhabijões... Alguém se recusou, por razões de segurança, a levar a mulher do Carlão. Deve ter sido o comandante da coluna, um dos nossos alferes ou o talvez Beja Santos, do Pel Cal Nat 52, já não me recordo ao certo... Julgo que a coluna ia mesmo até ao Saltinho. Já não tenho a certeza se ela acabou por ir ou por ficar. O Puim foi dessa vez, e terá sido essa uma das quatro vezes que ele te visitou, no Xitole)...

Bom, hoje estou arrependido de nunca ter ouvido uma homilía do Puim, mesmo por simples curiosidade intelectual, por solidariedade humana ou por camaradagem... 

Na altura, eu achava que todos os capelães militares eram escolhidos a dedo e estavam bem integrados no sistema. Não me dei conta que os efeitos devastadores da guerra também afectavam os homens encarregues de zelar pelo conforto espiritual dos nossos combatentes. 

Além disso, o Concílio Vaticano II mexeu profundamente com a Igreja (ultraconservadora) que nós conhecíamos, desde o nosso tempo de meninos e moços... Claro, eu tinha ouvido falar do Padre Mário de Oliveira, o Padre Mário da Lixa, também expulso do exército dois anos antes. (Esteve em Mansoa, ali perto de nós, mas só vim a conhecê-lo, pessoalmente em 1976, no dia do meu casamento, civil, em Candoz, Paredes de Viadores, Marco de Caneves.)

Por outro lado, as autoridades militares de Bambadinca e a polícia política fizeram a coisa discretamente, pela calada... Poucos de nós, deram conta do que se passou, no início do ano de 1971 em que ele foi preso e levado de helicóptero para Bissau ... 

Em retrospectiva, tenho que considerar o Puim como um homem bom, vertical, coerente e corajoso, talvez o melhor de todos nós, não obstante o seu ar frágil, de menino de coro... Já não me recordo, mas tivémos seguramente conversas, no subversivo bar de sargentos, a respeito do que se passou, na altura, já que o Machado era seu e nosso amigo...

O texto do Abílio Machado, já aqui publicado (1), fez-me aumentar a minha admiração por ele: "A coragem de um padre que não abdicou de o ser lá onde era o seu sítio: o altar"... 

Poucos de nós tiveram tomates para tomar as posições que ele tomou: refiro-me àqueles de nós, como eu, que eram contra a guerra mas que a fizeram...

David: Faço questão que ele integre, de pleno direito, a nossa tertúlia... Se não te importares, faz-lhe chegar o meu/nosso convite... Infelizmente não tenho aqui o mail dele.

____________

Notas de L.G.:

(1) Vd. posts de:

17 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1763: Quando a PIDE/DGS levou o Padre Puim, por causa da homília da paz (Bambadinca, 1 de Janeiro de 1971) (Abílio Machado)

(...) O exemplo do padre Puim - já não é padre: quem o é nos tempos de hoje? Uma instituição caduca! – é o paradigma do que poderiam ter feito naquela situação. E não o terão pensado?

"O Puim. Outro exemplo impressivo. Memória perene. Porque há actos que, por dolorosos, queremos rejeitar, mas pelo exemplo não podemos esquecer. E ficam-nos como um padrão, ou uma tatuagem, ou um ferrete. Recortados no horizonte ou cravados na carne a frio são uma referência ou uma lembrança.

"A coragem de um padre que não abdicou de o ser lá onde era o seu sítio: o altar. Já corriam, porventura trazidos pela brisa que, vinda de certa Casa ribeirinha (4), se espalhava às vezes serena, às vezes inquieta pela parada do quartel, uns ditos de que o padre Puim se desmandava nas homílias.

"Os textos, ditos ou escritos, não eram visados pelo lápis azul. O Puim saberia disto? Não vou revelar o que penso, não quero ser inconfidente… E choveram relatórios para Bissau, por certo. Alguém que era regular nas missas.

"E chegou o dia 1 de Janeiro – Dia Mundial da Paz. Ainda é ? Era-o em 1971. Ao que me disseram (eu não ia à missa : as minhas missas com o Puim eram grandes conversas, edificantes, pela noite fora), o Puim falou sobre a Paz.

"Nessa semana, à socapa – houve um silêncio quase opressivo ou é efabulação minha? - aterrou uma DO. Alguém, discreto, fez-me chegar a nova de que algo se passava com o Puim. Fui ver. Encontro o Puim, sentado na cama, nervoso mas determinado, olhando uns sujeitos que impiedosamente lhe desmantelavam o quarto descarnado, de asceta, à cata de … Abriam, fechavam gavetas, apressados … Acabei retirado do quarto.

"E levaram-no com eles . Vi-o passar. Parecia mais sereno . Chegou-nos que teria sido mal tratado em Bissau, até pela própria Igreja. E que teria sido exilado para a sua terra: haverá coisa pior? Um exílio no próprio chão que o viu nascer?

"Ninguém é profeta na sua terra nem fazem milagres os santos que conhecemos. Mais tarde soubemos que estava de facto nos Açores. E que despira o hábito … Mas abraçara outro sacerdócio … A igreja será agora o Hospital de Ponta Delgada" (...) (3).


(2) Vd. post de 5 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1924: Convívios (20): CART 2716 (Xitole, 1970/72), em Fátima, no dia 26 de Maio último (David Guimarães)

(3) Também já aqui falámos de um outro capelão militar que deixou o sacerdócio: vd. post de 29 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1471: O tenente miliciano capelão Mário Oliveira, Catió. BCAÇ 2930 (Amaral Bernardo)

(...) "Luís: Só um esclarecimento: O Mário de Oliveira que está com o Mário Bravo não tem nada a ver com o Padre Mário de Oliveira da Lixa. É o capelão da CCS do BCAÇ 2930, sediada em Catió, sede do batalhão, a que ambos pertencemos" (...).

(4) Se bem entendo a linguagem sibilina do Machado, não terão sido os militares mas um civil, comeciante local, branco, com casa na tabanca ribeirinha de Bambadinca, a denunciá-lo à PIDE/DGS... 

A ser verdade, tratava-se de casa frequentada, com alguma regularidade, por alguns de nós, milicianos, apreciadores do famoso Chabéu de Galinha, que a esposa, africana, fazia divinamente... Constou-me até que a pessoa em causa foi acusada de ser bufo da PIDE/DGS, depois do 25 de Abril... Terá inclusive sido presa, não sei se ainda na Guiné se já cá, na Metrópole... Espero que nada disso tenha sido verdade...

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