Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
sexta-feira, 11 de janeiro de 2008
Guiné 63/74 - P2430: Estórias do Juvenal Amado (1): Um dia negro, na estrada Galomaro - Saltinho (Juvenal Amado, CCS/BCAÇ 3872)
Juvenal Amado
Ex-1.º Cabo Condutor,
CCS/BCAÇ 3872
(Galomaro, 1972/74)
Foto 1> Guiné > Zona Leste > Galomaro> CCS do BCAÇ 3872 (1972/74) >Aquartelamento
Foto 2> Guiné > Zona Leste > Estrada (alcatroada) Bafatá-Bambadinca > Coluna logística
Foto 3> Guiné > Zona Leste > Galomaro> CCS do BCAÇ 3872 (1972/74) > Chaimites durante uma visita do General Spínola
Foto 4> Guiné >Zona Leste > Galomaro > CCS do BCAÇ 3972 (1972/74) > Da esquerda para a direita: Caetano, Aljustrel, Fur Claudino, Amado, Alcains, Fonseca, Pinto e Chapinhas
Foto 5> Guiné > Zona Leste > Galomaro > CCS do BCAÇ 3872 (1972/74) > Dentro do Abrigo> Da esquerda para a direita: Aljustrel, Ermesinde, Amado e Caramba
Fotos e legendas: Juvenal Amado (2008). Direitos reservados
1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado (1), com data de 23 de Novembro de 2007:
Caros camaradas:
Estou a tentar recolher fotos e documentos entre Janeiro de 1972 e Abril de 1974, período em que o BCAÇ 3872, formado pela CCS (Galomaro) as Companhias do Saltinho, Dulombi e Cancolin, esteve na Zona Leste.
Entretanto envio um relato meu lido na Antena 1 , no programa História de Vida, em 27 de Junho de 2007.
Saudações
Juvenal Sacadura Amado
Guiné, 15 de Novembro de 1972
Tinha as virilhas e a parte interna das coxas cheias de bolhas, provocadas pela micose que me afligia praticamente desde que desembarcara na Guiné. A comichão era intensa, e já a fórmula 8 LM usada nestes casos pouco efeito sortia para além do momento em que se aplicava e da dor que provocava.
A coluna militar em direcção ao Saltinho, tinha partido de Galomaro ainda o céu estava escuro para efectuar a recolha de Páras, que tinham sido largados na zona, se não estou em erro dois dias antes. Faziam segurança à coluna o pelotão do PEL REC (Pelotão de Reconhecimento e Informação), reforçado por milícias africanas.
A picada tinha sido abandonada já algum tempo, pois era mais seguro, embora muito mais longe, abastecer a Companhia do Saltinho, através de picadas onde beneficiávamos do apoio das Companhias que faziam parte do Batalhão de Bambadinca, que estavam aquarteladas ao longo do percurso. Normalmente o Esquadrão de Cavalaria de Bafatá também participava com as Chaimites.
Como era uso, uma Berliet, carregada de sacos de areia e os pneus cheios de água por causa das minas, seguia à frente e as ordens eram para se manter distância, desde que não se perdesse o contacto visual com a viatura que seguia na frente.
A picada estava em mau estado pois não era usada há bastante tempo, mas o pior era o capim que tinha crescido de tal forma que nos encharcava com o cacimbo abundante nessa altura do ano. Embora normalmente com um clima escaldante, não era nada agradável aquela hora.
A coluna parou numa aldeia abandonada, que mais parecia que os seus habitantes tinham desaparecido por artes mágicas, pois o povoado estava em perfeitas condições e as palhotas não estavam degradadas pelo abandono. Aí, após um breve descanso, veio a ordem de que o Pelotão de Reconhecimento e Informação (PEL REC) devia formar em duas filas indianas, uma de cada lado da picada, mas de forma a que uma começava onde a outra acabava e guardando uma distância de segurança entre cada uma, que caso houvesse um rebentamento de mina não fosse atingido mais ninguém para além do infeliz que a pisasse.
A minha Berliet, que até a essa altura tinha funcionado como rebenta-minas, passou para trás dessa coluna apeada, onde os soldados passariam a ter as funções de proceder à picagem à frente dos próprios pés do terreno que todos iriam pisar.
Não eram funções para que o Pelotão estivesse bem treinado, na verdade tinham feito alguns ensaios, mas a prática era quase era nula. Acrescento que os milícias se recusaram a fazer semelhante serviço.
Eram na grande maioria meus amigos chegados os homens daquele pelotão, não será demais afirmar o risco que eles iam correr, era uma realidade atroz.
A coluna começou a progredir na direcção do nosso objectivo, o Aljustrel, soldado mecânico, tinha-se oferecido para esta missão, talvez por solidariedade ou talvez porque lhe apeteceu pisar o risco. Na verdade, como meu companheiro da cama ao lado da minha, havia entre nós uma grande amizade, talvez as minhas conversas sobre este tipo de viagens e o facto dele nunca ter ido ao Saltinho tenham influído na sua decisão.
A velocidade de progressão da coluna é ao ritmo dos homens que vão espetando uma vara com uma ponta de ferro no chão, pois no caso de lá haver uma mina a terra fofa facilmente será ultrapassada pela ponta e esta, ao embater num objecto enterrado, transmite ao seu utilizador o que facilmente é de prever.
O Aljustrel é que ia a guiar, utilizando o acelerador de mão e eu sentado no extremo oposto. Agradecia o favor, pois era muito chato e requeria muita atenção fazer aquele tipo de condução, pois à nossa frente, nunca é de mais lembrar, seguiam homens a pé.
Trinta e três anos passados, a certeza sobre o tempo em que a coluna progrediu não está já muito presente na minha memória, mas penso que nem uma hora foi, até que um forte rebentamento se fez ouvir, e o que vi foi tudo negro, terra e fumo no ar.
Atirei-me da viatura e procurei abrigar-me longe dela. Deitado no chão junto do Ivo, e sem saber o que tinha acontecido, logo começámos a ouvir os gritos lancinantes e tivemos a certeza que alguém estava gravemente ferido.
À nossa frente, as folhas rasteiras estavam todas salpicadas de sangue, e à minha esquerda metro e meio recuada, estava um pé descalço, amputado, com um pedaço de perna, era branco e estava estranhamente limpo.
Os gritos e o choque entravam fundo em nós, e foi Aljustrel ou o Silva que disse que tinha sido o Teixeira a pisar uma mina antipessoal.
Junto dele estava o maqueiro, devido à cor do cabelo conhecido pelo Russo, tentava minimizar o sofrimento e estancar o sangue das feridas, do camarada que tinha as duas pernas decepadas, e o que restava era uma mistura de tecidos, com restos de farda, e o preto da explosão era a cor dominante.
Foi pedida evacuação, todos esperávamos talvez um milagre e, ao vermos o nosso camarada, o terror em mexermos os pés do sítio em que estávamos era enorme.
Os gritos foram abrandando, a vida escapava daquele jovem de 22 anos que nem uma hora antes estava pleno de vida, na terra tinha namorada, pais, talvez irmãos como a maioria de nós.
O rosto ficou sereno e a luz que iluminava os seus olhos apagou-se, deixando-os baços e opacos a olhar para nós sem nos ver. Ali ficou deitado junto buraco, que a explosão havia aberto, até que o heli passou por cima nós, e foi a última vez que o vi quando o levaram para local mais aberto, onde foi enfim recolhido.
Foi necessário retomar a marcha, e não é de mais lembrar que é da mesma forma que se vai continuar, ou seja, os nossos camaradas do PEL REC a pé, picando à frente dos seus pés, pois podia haver mais minas. É talvez uma visão da verdadeira coragem, vê-los a caminhar à minha frente depois do que tínhamos acabado de presenciar, e que podia acontecer novamente a qualquer momento.
O regresso foi feito em silêncio pesado, voltámos a passar no sítio e não pude evitar olhar para o buraco, que tinha a dimensão de meio bidão de duzentos litros, e nos obrigava a sair da picada para o contornarmos.
Segui para Nova Lamego (Gabu) com os Pára-quedistas, e nesse mesmo dia regressei a Bafatá, desejoso de estar junto dos meus camaradas, facto que só se veio verificar no outro dia.
Nessa noite bebi até ficar dormente mas não consegui dormir. Na minha cabeça a recordação do acontecido era demasiado presente, via a coluna de fumo, e ainda sentia o cheiro a explosão, e os gritos martelavam sem parar.
Este foi um dia como outros na Guiné-Bissau. Para este camarada como para centenas de outros, a guerra acabou tarde de mais.
Dedico este relato aos meus camaradas do BCAÇ 3872, e mais precisamente aos que viveram aquele dia comigo, pois vamos para a guerra e nunca retornamos dela.
Juvenal Nataliel de Almeida Sacadura Amado
Ex-1.º Cabo Condutor 11199771
CCS/BCAÇ 3872(Galomaro, 1972/74)
2. Comentário do editor:
Parabéns, Juvenal. Ouço às vezes o programa A História Devida, da Antena 1... Têm aparecido alguns boas histórias passadas no Ultramar. Não me lembro da tua. Mas fiquei muito sensibilizado pelo facto de a teres escrito, de a teres dedicado aos teus camaradas que estavam contigo nesse dia negro e também de teres querido partilhar com os nossos amigos e camaradas da Guiné que fazem parte deste blogue. Todos nós sabemos, por experiência própria ou por formação na tropa, quão terríveis eram (são) essas coisas das minas e armadilhas, sabemos do horror (e do terror) que esses engenhos explosivos nos causavam... Muitos de nós ainda temos pesadelos como os teus... Como tu dizes, e muito bem, "vamos para a guerra e nunca retornamos dela"... Conto contigo para mais histórias (e estórias) das tuas andanças pela Zona Leste...
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Notas do editor
(1) Vd. post de 6 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2413: Tabanca Grande (50): Juvenal Amado, ex-1º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872 (1971/73)
(2) Programa A História Devida, Antena 1: Todos os dias às 17:20h, com repetição às 21:20h e 03:20h, na Antena 1. As histórias (que devem ser curtas) podem ser enviadas para Produções Fictícias, Travessa da Fábrica dos Pentes nº27 R/C 1250-105 Lisboa ou para o seguinte e-mail.
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1 comentário:
Onde anda o pessoal radiotelegrafista? Luís Arrepia, José Manuel, e Rego?
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