terça-feira, 14 de abril de 2009

Guiné 63/74 - P4181: As Nossas Queridas Enfermeiras Pára-quedistas (8): A dar ao Ambu (Giselda Pessoa)

1. Mensagem da nossa camarada Giselda Pessoa (*), ex-Sgrt Enf Pára-quedista (BA12, Bissalanca, 1972/1974), com data de 2 de Abril de 2009:

Caro Carlos
Junto segue um texto com uma historiazinha passada comigo em 1972, envolvendo uma evacuação trabalhosa de Guidage para o Hospital de Bissau.

Um beijinho.
Giselda Pessoa


A DAR AO AMBU

A actividade que nós, enfermeiras pára-quedistas, desenvolvíamos no Teatro de Operações da Guiné, proporcionava-nos por vezes momentos de grande realização profissional. As características particulares da geografia do território em parte também ajudavam. Havia bastantes aquartelamentos a menos de 30/45 minutos de voo do Hospital de Bissau, o que significava que, desde o pedido da evacuação até à entrada do evacuado no hospital poderia decorrer, nesses casos, um período máximo de duas horas, com a forte possibilidade de a evacuação ter o apoio de uma enfermeira, o que aumentava um pouco mais as hipóteses de sobrevivência do evacuado.

Também o facto de o tempo gasto numa evacuação ser mais curto que noutros territórios aumentava a disponibilidade das enfermeiras para fazerem mais evacuações e garantia assim uma maior qualidade dos serviços prestados.

Estou convencida que, comparativamente com os outros Teatros de Operações, essas características permitiam que em igualdade da gravidade do estado dos evacuados, o ferido tivesse mais hipóteses de sobreviver no território da Guiné - possibilidade de maior apoio do pessoal de enfermagem e menor distância a percorrer até à unidade hospitalar.

Assim, viu-se muitas vezes evacuar feridos em estado desesperado que, devido ao apoio rápido recebido, conseguiam sobreviver contra todas as expectativas. Essas vitórias davam às enfermeiras uma grande motivação para prosseguir o seu trabalho.

Lembro-me de uma evacuação que fiz a Guidaje, com essas características. Estávamos em 1972 e fomos chamados para uma evacuação de um ferido militar em estado muito grave. Tratava-se de um cabo enfermeiro do Hospital Militar de Bissau que, no período de férias do enfermeiro colocado em Guidaje, o tinha ido substituir no seu serviço. Estava quase a acabar este destacamento em Guidaje quando teve que ir socorrer um milícia local, o qual tinha pisado uma mina numa zona próximo do aquartelamento, de que tinha resultado a perda de uma perna. Quando ajudava o milícia na sua deslocação para o quartel, aquele teve a infelicidade de pisar uma segunda mina, o que provocou a perda da segunda perna, bem como a amputação de uma das pernas do enfermeiro.

À nossa chegada verifiquei as dificuldades em que o cabo se encontrava, pois tinha perdido bastante sangue, os camaradas não tinham conseguido ainda pôr-lhe o soro e tinha dificuldade em respirar pois encontrava-se num estado de extrema debilidade.

Coloquei os dois feridos nas macas colocadas na traseira do DO e dediquei a minha atenção ao seu estado, enquanto voávamos para a Base. Curiosamente, o milícia encontrava-se mais estável, apesar de ter tido as duas pernas amputadas. Quanto ao cabo enfermeiro, consegui finalmente colocar-lhe o soro e dada a sua dificuldade em respirar coloquei-lhe o Ambu1, que não é mais que uma bomba manual usada para aumentar o fluxo de ar para o doente e consequentemente a sua oxigenação.

Foi um voo extremamente duro - para o doente, claro, e para mim, que tive que dar permanentemente ao Ambu, que o estado do doente assim o exigia.

Em casos graves como este, podíamos decidir pela transferência do evacuado para um AL-III, que recebia o evacuado na placa da BA12 e o transportava directamente para o hospital. Assim fizemos, transferindo o ferido para o heli e dirigindo-nos para a placa do hospital, de onde o levei directamente para o bloco operatório, onde era aguardado.

Devo dizer que durante uma ou duas semanas continuei a sentir dores nos braços , devido ao esforço feito com o Ambu durante toda a evacuação. Mas o meu trabalho continuou e eu fui esquecendo este episódio.

Poucas semanas depois, quando preparava no Hospital de Bissau a evacuação dos feridos para Lisboa, a fazer no DC-6, percorria o Serviço de Recuperação do Hospital quando subitamente ouvi atrás de mim um grito estridente:
- Devo-lhe a vida!

Recuperando do susto, dirigi-me ao doente, que me confirmou ser o cabo evacuado de Guidaje, que tanto trabalho me tinha dado. Disse-me que durante a evacuação tinha conseguido abrir os olhos durante uns momentos e, tendo-me reconhecido (ele era do Hospital de Bissau), pensou: - Ao menos morro ao pé de alguém conhecido. Mas não tinha morrido e estava até bastante melhor; e pelo grito que deu naquele dia, estou convencida que terá conseguido ultrapassar totalmente esta fase má da sua vida.

Giselda Pessoa

Ambu, que não é mais que uma bomba manual usada para aumentar o fluxo de ar para o doente e consequentemente a sua oxigenação.

Parte de Carta onde Guidage aparece mesmo no topo da imagem

Fotos: © Giselda Pessoa (2009). Direitos reservados.



2. Comentário de CV:

Ao ler e editar este texto da nossa querida amiga e camarada Giselda, pensei se ela, e os outros camaradas enfermeiros e médicos, terão a mesma percepção que nós temos, de quanto importante foram os serviços de saúde militares durante a guerra. Julgo que eles enquanto profissionais desempenhavam as suas funções sem quantificar ou qualificar a sua acção.
A Giselda como enfermeira profissional que era, aplicou em campanha os seus conhecimentos, tendo para tal de receber uma preparação extra que lhe exigiu muito esforço e adaptação ao meio hostil.
Os nossos enfermeiros infantes, quantos deles formados à pressão, foram de uma abnegação desmedida, fazendo o que sabiam e o que não sabiam para nos ajudar, sempre da maneira mais eficaz e humana. A eles ainda competia, nas horas vagas, colaborar na assistência sanitária às populações, fazendo até de médicos, quando estes não existiam.
Mais que companheiros de caminhada, os enfermeiros foram verdadeiros irmãos, expondo, muitas vezes a sua vida para ajudar os feridos, enquanto os demais estavam, como se dizia, instalados, digo eu, abrigados.

Os nossos médicos, alguns jovens licenciados, outros apanhados quando já se julgavam esquecidos, desempenharam a sua missão nos Hospitais Militares sob pressão, nos momentos mais dramáticos, debaixo das maiores carências, sem nunca desanimarem.

A todos o nosso obrigado.
__________

Notas de CV:

(*) Vd. postes de:

20 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3916: Tabanca Grande (121): Giselda Antunes Pessoa, ex-Enfermeira Pára-quedista (Agosto de 1970 / Maio de 1974)
e
14 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4029: As Nossas Queridas Enfermeiras Pára-Quedistas (6): O anjo da guarda do Zé de Guidaje (Giselda Pessoa)

Vd. último poste da série de 21 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4065: As Nossas Queridas Enfermeiras Pára-Quedistas (7): Os tomates do Capelão da BA 12, Bissalanca... e outras frutas (Miguel Pessoa)

6 comentários:

Anónimo disse...

Giselda

Gostei muito de te ler.
Várias vezes, quais Anjos de t-shirt branca vos vi descer do heli para "soprar vida"a jovens maltratados que estavam comigo!

Diz -me Giselda :o nome Ivone, que sei ser de uma Camarada Enf. Páraquedista, interfere com "os meus neurónios" como diz o Jorge Picado. Saberás se ela "andou" em Bula por finais de Fev 71, mais propriamente em P Matar e que acabou por transportar um ferido grave com 4 ou 5 tiros no pescoço?
Se souberes algo sobre o assunto, agradeço

Um beijinho e tudo de bom, à mistura com um MUITO OBRIGADO rectroactivos a esses tempos

Luis Faria

Anónimo disse...

D. Giselda,

Uma vez mais atento ás suas histórias, nem podia deixar de ser.
Fiz serviço no HM241 de junho de 68 a junho de 70, 4 anos antes, era condutor, mas a nossa guerra foi a mesma, Serv. Saúde, salvar vidas.
No meu tempo não tive conhecimento que algum enfermeiro fosse do Hospital substituir outro ao mato.
Já agora aproveito para fazer uma pergunta:
No seu tempo, em que sitio aterravam os Helis no Hospital?
No meu tempo era em frente ao Hospital onde havia espaço para dois, com mais um heliporto em frente~á Casa Mortuária.
Quanto a esta evacuação, de alto risco,por onde entraram?
Espero que pela porta principal,melhor acesso e serviço mais rápido.
A minha cabeça tem andado embaralhada, com as ideias de outro camarada.
Desde já agradeço.

Um Beijimho
António Paiva

Anónimo disse...

Resposta ao Luís Faria:
Caro Luís
Neste momento não sei responder à tua pergunta sobre a evacuação feita no final de 1971. Vou tentar contactar outras colegas que possam ter estado na Guiné nesse tempo, nomeadamente a Enfª Natércia. Quando souber algo de concreto far-te-ei chegar essa informação.
Um beijinho
Giselda Pessoa

Anónimo disse...

Resposta ao António Paiva:
Caro António
O local em que aterrámos nesta vez era próximo da porta de acesso ao bloco operatório (que ficava no 1º andar, se bem me lembro). Teoricamente era proibido aterrar ali, pois era um piso de terra e os helicópteros levantavam muito pó, por isso normalmente era utilizada a nova placa, que era mais distante. Neste caso particular passou-se por cima da proibição, dada a gravidade do estado do evacuado, aterrando-se na placa mais antiga (e mais próxima do hospital).
Um beijinho. Giselda Pessoa

Anónimo disse...

Giselda
Obrigado pelo cuidado de responderes e te interessares.

Quero só esclarecer que é finais de FEVEREIRO 1971

Foi um caso talvez único na Guiné: o ferido foi metido no heli,retirado dado como morto...metido outra vez como vivo (isto 3 ou 4 vezes)

È possivel que haja lembrança

Giselda,um beijinho e mais uma vez obrigado

Luis Faria

Anónimo disse...

D Giselda

Desde já lhe agradeço a atenção que me dispensou para responder.
Pela discrição feita,penso que se foi piorando o bom que tinhamos.
Mas paciência, quando não se sabe conservar o bem que se tem, pior se fica na vida.
Muito obrigádo

Um beijinho
António Paiva