1. Mensagem da nossa amiga Ana Paula Ferreira, filha do ex-1.º Cabo Fernando Ferreira da CCAÇ 617/BCAÇ 619, Catió e Cachil, 1964/66:
Olá a todos,
Já não visito o blogue há algum tempo, por isso já não estou muito familiarizada com a forma de comunicar com a Tabanca Grande.
Fora essas "debilidades técnicas" gostava de vos informar que também assinei a petição e com muito orgulho, em nome do meu pai: Fernando das Neves Ferreira.
Falei-vos dele pela primeira vez em 2006*, creio. O blog parou uns meses depois, mas mesmo assim voltava lá de vez em quando, porque me ajudava ler aquelas palavras e ver as fotografias. Tudo era para ele, sobre ele e todos os que embarcaram um dia, para defender a Nação e porque nunca ninguém lhes perguntou se quereriam realmente lutar naquela guerra, matar naquela guerra, ver morrer naquela guerra. A Nação precisava desse sangue? Mas ninguém lhes perguntou e assim não responderam a não ser com as suas vidas e os seus destinos mais ou menos fatídicos. Ninguém lhes perguntou, porque em ditaduras, nada se pergunta, apenas se ordena.
Não tenho visitado o blog, como já referi, mas continuei a ler todos os emails que recebia e continuei as minhas pesquisas, as minhas leituras... ontem ouvi Manuel Correia de Oliveira a cantar Roseira Brava (acrescentei a letra no final do email).
Quando era pequena e passavam aqueles pequenos documentários sobre a Guerra, as imagens eram sempre as mesmas, homens lutando para andar, enterrados em lama e àgua até ao pescoço, com os braços esticados para o céu segurando as armas, caminhando entre vegetação fustigada pelo corropio do helicóptero que se aproximava, carregando dois a dois, longos panos brancos com corpos mutilados... e a música era quase sempre esta: Roseira Brava de Manuel Correia de Oliveira. Por isso quando ontem a ouvi, tornei a ver tudo de novo. E pela primeira vez, hoje, depois de ter conseguido estes dados há mais de dois anos, contactei , ou tentei contactar colegas do meu pai: da mesma secção. Confesso que rezava enquanto marcava o número, não ferir ninguém a perguntar por alguém que poderia já cá não estar. A maior parte dos números já não eram reconhecidos, outros, não atenderam, restando apenas três. Três da lista de secção que eu tinha : 1 atirador, condutor e um furriel.
Tentei da melhor forma explicar porque ligava, até que a senhora que me atendeu, interrompe as minhas desculpas com "está engana, o meu marido nunca esteve na tropa". Titubeei ainda que estava com os dados do senhor à frente, mas a resposta foi irredutível e breve na despedida.O segundo, que sim, tinha estado, mas de repente, quando lhe pergunto se conhecia alguém daquela secção, não, não tinha estado lá como militar, mas como empresário. Mais uma vez apresentei as minhas desculpas pelo engano. Concluí que, ou tinham sido cometidos muitos enganos, nas listas de batalhões, ou então havia alguém que preferia não falar desses tempos.
Mas a parte que me levou a falar disto foi o último telefonema: fui imediatamente advertida que não queria comprar nada (e lembrei-me da minha mãe, que sózinha em casa, cada toque do telefone é um sobressalto de alma quando a maior parte das vezes é de facto alguém a querer vender... qualquer coisa. Este senhor tinha uma voz triste e tão desalentada que o ouvi com o coração apertado (até porque praticamente não me deixou falar muito): os filhos estão longe e indiferentes e sozinho queixa-se do que fez por eles e principalmente dos sonhos que ainda hoje o atormentam; este sim, confirmou lá ter estado, mas foi quase com raiva que se distanciou de pessoas ou pormenores de então. Raiva de muita coisa, raiva de ainda não ter tranquilidade ao cabo de todos estes anos. "É esta vida, que é uma porcaria sabe...". Falei-lhe dos apoios que poderia ter, gratuitamente, ou quase, na APVG, nos grupos imensos de pessoas que se encontram todos os anos e misturam lágrimas com sorrisos, numa catarse daquele mal que nunca saiu completamente; mas já não me ouvia e desligou a chorar.
É muito doloroso saber que fui desinquietar ainda mais alguém que vive enclausurado num mundo em que todos lhes escapam pelos dedos das mãos, e nada lhe fica a não a ser a falta de paz.
Temo que telefonar-lhe de novo, para saber como está, como se sente, seja ainda pior.
E assim termino (tenho um jantar que já deveria estar feito e uma menina que está a reclamar a minha atenção...) com desejos de paz, saúde e muito amor para todos.
Ana Paula Ferreira
2. Comentário de CV:
Cara amiga Ana Paula, muito obrigado pelo seu contacto, pois há muito não tínhamos notícias suas.
Temos que lhe agradecer também o ter assinado a nossa petição, que afinal é de todos os que se sensibilizam pelo abandono e falta de reconhecimento pelo esforço de uma geração que ao longo de 14 anos sustentou uma guerra sem solução e que custou muito sangue à juventude de então.
Se os males do corpo estão mais ou menos solucionados, o do stress pós-traumático de guerra nunca foi devidamente reconhecido, e poucos técnicos de saúde se dedicam a esta problemática. Os apoios e as informações que deviam chegar a quem delas necessita, não chegam, porque também não houve, nem há um rastreio aos ex-combatentes, nesta fase de idade mais avançada em que as depressões são mais vulgares, originadas pela solidão e falta de saúde geral.
Procurei na página do nosso camarada Jorge Santos (http://guerracolonial.home.sapo.pt/) pedidos de contactos do Batalhão ou Companhia de seu pai, e encontrei este contacto: A. Ferreira da CCAÇ 616, telemóvel 961 958 299. Se ainda não contactou este camarada, em princípio ele estará disponível para ser contactado. Não é propriamente da Unidade de seu pai, mas pode ter outros contactos.
Recentemente aderiu ao nosso Blogue um camarada do Batalhão de seu pai, pertencente à Companhia 618, João Pinho dos Santos, ex-Alf Mil. Consulte o Poste 7723 (clique aqui). Mais uma hipótese a explorar.
A propósito, e para que perceba esta coisa das Unidades, informo-a de que um Batalhão, o do seu pai era o 619, era composto por 3 Companhias operacionais.
O Batalhão 619 era composto pelas Companhias 616 à qual pertenceu o A. Ferreira, 617 à qual pertenceu o seu pai e a 618 à qual pertenceu o nosso e camarada e amigo João Pinho dos Santos.
Por sua vez, cada Companhia era composta por 4 Pelotões.
Estamos a falar de Atiradores, porque ainda há que somar a esta gente os Especialistas: Condutores Auto, Transmissões, Enfermeiros, Mecânicos, Cozinheiros e Corneteiros.
Esta explicação é só para lhe dizer que haverá muita gente que se lembrará do Camarada 1.º Cabo Fernando Ferreira. Continue a tentar.
Posto isto, desejo-lhe, em nome da tertúlia, as maiores felicidades, dizendo-lhe que pode voltar ao nosso contacto sempre que queira.
Continue a acompanhar a II Série do nosso blogue em http://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/
Um abraço do
Carlos
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Roseira Brava, letra e música de Manuel Correia de Oliveira
Roseira brava, roseira
Barco sem leme nem remos
Roseira brava é a vida
Que amargamente vivemos.
Roseira brava não tem
Rosas abertas nos ramos
Roseira brava é espinho
Que em nosso peito cravamos.
Roseira brava, roseira
Rosa em botão desfolhada
Roseira brava é teu rosto
Rompendo da madrugada.
Roseira brava no vento
Vai espalhando a semente
Roseira brava é lembrar
Quem se não lembra da gente.
Roseira brava, roseira
Que o sol de Verão não aquece
Roseira brava é o amor
A quem amor não merece.
Roseira brava é o ódio
Que vai minando a raiz
Roseira brava, roseira
Roseira do meu país.
Roseira brava é o ódio
Roseira do meu país.
____________
(*) Vd. poste de 8 de Abril de 2006 > Guiné 63/4 - DCLXXXV: Aerograma de Ana Paula Ferreira: o meu pai, o 1º cabo Ferreira (CCAÇ 617, BCAÇ 619, 1964/66)
Vd. último poste da série de 3 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7714: Blogoterapia (175): O Regresso, ou quem nos quer ainda ouvir (Joaquim Mexia Alves)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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2 comentários:
Estimada Ana Paula.
Li atentamente o seu maravilhoso texto.
Conheci o Cachil, e concerteza me devo ter cruzado com seu pai.
Fui fur. miliciano na C.CAÇ. 763 em Cufar, de reforço ao B. 619 ao qual o seu pai pertencia.
Falar da Guerra, é muito complicado!
Assim se torna complicado falar das origens, das causas, bem como dos resultados dessa própria Guerra.
Só quem a viveu, tem pleno conhecimento, de que: quem entra numa Guerra, jamais sairá dela.
Tenho conhecimento de alguns camaradas que conviveram de certeza com o seu pai. Mas!... é muito complicado por vezes termos o desassombro de falar da nossa vivência que muita gente não compreende.
Mesmo dentro e entre os próprios combatentes "Veteranos de Guerra" por vezes há formas de estar que não compreendemos.
Quanto à procura de antigos colegas e amigos "irmãos" que juntos calcorreamos as mesmas matas, enterrámos nas mesmas bolanhas, tarrafos e pantânos a situação é muito dolorosa.
Há dez anos que com outros companheiros organizamos os maravilhosos reencontros de antanho. Sendo eu o indicado para os devidos contactos entre companheiros.
Ana Paula, tenho falado com camaradas, esposas, ex-esposas, filhos e famíliares.
Não tenho vergonha nem pejo, em lhe dizer, que chorei mais nestes contactos do que nos tempos em que tive de acompanhar os amigos mortos e feridos naquelas terras ainda por nós queridas da Guiné.
A realidade é muito dura e dói muito.
Termino naturalmente porque também o matraquilhar neste teclado está a doer um pouco.
Obrigado por estar connosco! Nunca se arrependa e pelo contrário, venha até nós e traga gente mais nova que queira saber destes "Cotas", a quem a "Pátria" ostracisou.
Os melhores cumprimentos para si e todos os seus familiares.
Mário Fitas
Caríssima Ana Paula
Demorei a ler atentamente tudo o que escreveu.
Percebo a sua angústia pelo (in)sucesso dos seus telefonemas, e pelo comportamento de alguns interlocutores: de negação, de frustração, de desespero.
É mesmo assim, é 'quase' normal para muitos que não tiveram a possibilidade de superar os problemas do regresso.
Apesar de tudo isso é de louvar a sua postura, a sua persistência em continuar a procurar juntar os elos da memória do seu pai.
Siga as pistas dadas pelo Carlos Vinhal e ainda pode ter algum (relativo) êxito.
Um abraço
Hélder S.
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