domingo, 29 de maio de 2011

Guiné 63/74 - P8346: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (18): Não se brinca com coisas sérias...

1. Mensagem José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), com data de 26 de Maio de 2011:

Caro Vinhal

Junto nova história para integrar nas "Memórias boas da minha guerra".

Trata-se de mais uma das muitas ligadas ao meu amigo Furriel Faria, mais conhecido pelo Berguinhas.

Junto também fotos de um "Casamento" em Canquelifá, de onde destacamos a "noiva" (Berguinhas), o seu "pai" (Branquinho) e o rapaz que segura a cauda do vestido (Massamá).

Um grande abraço do
Silva da Cart 1689



Memórias boas da minha guerra (18) >  Brincar com coisas sérias? Parece, mas não é

Vivia-se pacatamente em Canquelifá nos últimos tempos da nossa comissão. Não havia guerra (só uns patrulhamentos de rotina). A alimentação era razoável, o que não tinha acontecido até então. Tudo era pretexto para brincadeira, enquanto se esperava calmamente a viagem do regresso.

Todavia, havia uma excepção. O “Dôtô” Faria, era o Furriel Enfermeiro, conhecido também por “Pastilhas” e, essencialmente, por “Berguinhas”. Era um indivíduo excepcional: humilde, solidário, humano e… bastante divertido. Dava gosto lidar com ele. Mas quem mais gostava dele era a população local e a… senegalesa, a quem se dedicava religiosamente.

Prestava assistência médica permanente e como fazia autênticos milagres, estava sempre extremamente ocupado. Dormia na Enfermaria e, quando acordava, já tinha uma fila de dezenas de metros - doentes vindos, durante a noite, de distâncias até 70 Km do outro lado da fronteira.

Porém, também gostava de se divertir e, para isso, tinha que acamaradar com o grupo de amigos mais chegados. Ele, que jogava bem às cartas (nunca vi melhor na sueca), era o primeiro a prolongar o almoço, com a jogatana.

Várias vezes tínhamos que interromper o jogo para ele poder dar indicações aos cabos enfermeiros ou, até, ter que intervir de imediato. Recordo-me de uma mulher que se aproximou de nós e, como se expressava mal, abriu o pano que a envolvia, a fazer de saia, e mostrou o cordão umbilical pendendo, pedindo, por gestos, para ser cortado.

Um dia jogávamos numa mesa, junto à vedação. Uma bajuda aproximou-se da rede e chamou-o:
- “Dôtô, Dôtõ, pingo pa mi pai”?

O “Doutor Berguinhas” jogava, entusiasmado, mais uma sesta de Ramy.
- Eu vou lá, mais logo, lá para as 4 ou 5 horas – respondeu o Berguinhas.

A bajuda estendeu o braço, fazendo um ângulo de, aproximadamente, 45º e perguntou:
- Quando o sol está lá?

O Berguinhas confirmou ser a essa hora. Passado um pouco, voltou a bajuda, agora mais preocupada:
- “Dôto, Dôto, pingo pa mi pai. Ele manga di doente”

O “Berguinhas” respondeu que iria lá já de seguida. Logo que a rapariga se afastou, o Santana, coadjuvado em coro pelos outros colegas de jogo, interpela o Berguinhas:
- Que merda é esta, pá? O velho não escapa e andas aqui a estragar o jogo, todos os dias, por causa dele. Resolve a situação, porque isto assim não pode continuar.

O Berguinhas pediu para chamarem o cabo enfermeiro. Logo que este chegou, disse-lhe:
- Pegas naquela caixinha de cor alaranjada que está na última prateleira, do lado direito e vai dar uma injecção ao velhote Sali, o pai da bajuda Salem.

Depois do jantar, a malta voltou a reunir-se na esplanada, debaixo das mangueiras. Entre bebida, anedotas e provocações, lá se ia matando o tempo da melhor maneira. Surge então, pela boca do Amed, que estava de passagem, a informação de que o velhote Sali havia falecido.

Logo os mesmos que haviam atacado o “Berguinhas” ao principio da tarde por estar sempre a interromper o jogo, agora o acusam:
- Ó meu caralho, não me digas que mandaste matar o velho?... Só porque te incomodava à hora do jogo?... Tiveste coragem para fazer uma coisa dessas?... Tens a mania que és religioso e fazes uma merda destas! Francamente, há gajos que não têm consciência nenhuma!

O Berguinhas, afectado pela surpresa, não sentia forças para reagir àqueles “velhos apanhados do clima”. Deitou os olhos para o céu, benzendo-se repetidamente e exclamou em voz alta:
- Ó Virgem Santíssima, mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo, que mal fiz eu a Deus para ter que aturar estes filhos da puta... Vós sabeis que se eu os aguentar até ao fim, irei ao Sameiro de joelhos desde cá do fundo, da curva das Madalenas! E vou também a Fátima a pé, onde andarei à roda da Basílica, de joelhos, até não poder mais. Por favor, dai-me mais uns meses de vida, para eu poder cumprir as promessas.

Casamento em Canquelifá > Ao fundo, a noiva (Berguinhas) acompanhada de seu pai (Branquinho). Mais à frente o noivo (?) acompanhado pela mãe (?). Em primeiro plano o Padre e o rapaz da caldeira.

Casamento em Canquelifá > Os noivos, provavelmente já (mal) casados. A jovem que segura no véu, generosamente decotada, é o Massamá

Casamento em Canquelifá > Fotografia de conjunto

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Nota: O Berguinhas era esmeradíssimo no tratamento dos doentes. Era um autêntico milagreiro e, por isso, era respeitado e adorado pela população como um santo. Os diálogos que aqui se reproduzem são verdadeiros, mas, da parte de quem o interpelava e, depois, acusava, não passavam de “provocações” de quem muito o respeitava e apreciava, mas que ele tomava como autênticos.
Veio a morrer em acidente de viação poucos meses depois de regressarmos.

Silva da CART 1689
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 13 de Maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8267: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (17): O Cabo velho

4 comentários:

Anónimo disse...

Aro Silva:

A história bonita com um fim triste assentaria bem em muitos dos nossos enfermeiros (não disse em todos). Eu também fui enfermeiro, não tão bom como o «berguinhas», gostaria de ter feito melhor mas, andava por lá muito contrariado e aquilo parecia nunca mais acabar.
Um abraço

Carvalho de Mampatá

Anónimo disse...

jose o massama teria o nome de orlando pemso que era o cortador de carnes que foi criado comigo mas mais velho pois eu so fui para a guine em setembro de 72antonio faneco o massama da cart 6521 .

Unknown disse...

Silva, lembro-me do Berguinhas. Está numa daquelas fotos na velha messe de Catió.Creio que me contaste do acidente. Saltando, gostava de saber como arranjaram aquelas farpelas. O Massamá também não me é estranho. Mas bonito, bonito está o Branquinho. Ou não fosse o padrinho. Um abraço

Silva da Cart 1689 disse...

O Berguinhas era o gajo da cabra de estimação. O mesmo que, quando não ia às OP., ia para o posto de transmissões saber o que se ia passando. Rezava muito por nós e preparava sempre a patuscada para a noitada do regresso.
Carvalho, ele gostava imenso da sua função. Chegava a extrair pedaços de carne, limpava até aos ossos, e cosia. Curou leprosos!
O Massamá era motorista da GMC "rebenta-minas". Está reformado dos CTT. Agora é careca e continua mto brincalhão.
O "pai" Branquinho é o Alberto Abrunhosa Branquinho, o nosso consagrado bloguista da Tabanca Grande que também alinhava nas borgas.
Abraço do Silva