Mensagem da nossa tertuliana Felismina Costa*:
Caro Editor e Amigo Carlos Vinhal
Acometida pela nostalgia, escrevi as palavras que lhe envio, que sem pretenderem ser uma homenagem são acima de tudo, a minha saudade dum passado, que pese embora difícil e pobre, foi muito rico de valores e que gostaria de ver perpetuados por todas as gerações vindouras.
Sei, que sai do âmbito do blogue, mas, se aí permaneço e a minha vivência não foi a da guerra, que vivi à distância, apenas posso falar do que vivi, que também já é História, uma história feliz, na pacatez da minha condição, mas rica, muito rica no que confere aos valores que me fizeram crescer agradecida à vida, por tudo o que me deu em criança.
Um abraço fraterno
Felismina Costa
É Outono!
Por que razão me terei lembrado hoje, de um dia tão distante?
Era 17 de Novembro de 1967.
O dia, muito nublado, já bastante frio, pedia a sementeira de favas e ervilhas e o avô Carlos, à rabiça do arado lavrava a terra, onde a mãe ia deixando cair as favas secas e depois as ervilhas.
A mãe, fazia anos nesse dia, dia sem festa, sem bolos, sem convidados. Fazia anos e pronto. Nós dávamos-lhes os parabéns e a vida continuava sem alterações. A mesma roupa para trabalhar a terra, para nesse dia semear as favas e as ervilhas e fazer um sem numero de trabalhos, como todos os dias. A refeição, também não sofria alterações, aliás, a mãe não ligava muito à cozinha, porque lhe roubava muito tempo ao trabalho, que urgia fazer. O pai, muitas vezes, é que nos brindava com os seus acepipes, sempre caprichados, sempre carinhosos. A mãe acarinhava-nos constantemente, mas, não havia tempo para parar junto ao fogão, enquanto lá fora havia tanta coisa à espera dela. As favas e as ervilhas nasciam e tinham de ser cavadas, mondadas, a seguir o trigo, e todo o ano o trabalho na quinta era um sem cessar de urgências; couves, pimentos, tomates, cebolas, feijão verde, milho, feijão e outras leguminosas, exigiam tratamento e rega, para que os seus curtos braços eram pequenos. Nos grandes dias de verão, lavava-se no tanque a roupa, à hora do calor e, era ainda nessas horas que se limpava e arrumava a casa, para depois, pela frescura da tarde, voltar novamente ao labor infindável do trabalho agrícola. A seu lado escutava atenta, as suas conversas intencionalmente formativas, num desejo manifesto de criar em nós uma consciência o mais possível, de acordo com o seu carácter bem formado.
A noite, sem portas, como ela dizia, permitia que se fizesse serão até às duas da manhã, costurando e engomando a roupa, que os filhos levariam para a escola no dia seguinte. Caía, depois, exausta sobre o leito, e durante quatro ou cinco horas descansava, para novamente se erguer e de novo recomeçar a sua rotina, que diga-se, a bem da verdade, a encantava. A terra para ela era uma mãe abençoada. Eu via nos seus olhos a alegria de ver a semente transformar-se em flor e fruto, em pão. A enxada era uma ferramenta que manuseava com destreza. Plantar, arranjar, num brio perfeccionista, era seu apanágio.
Metro e meio de altura de capacidades infindáveis, de sentimentos, de dádiva.
Foi assim até 27 de Julho de 1981, data em que nos deixou sós, tristes e saudosos, recordando para sempre a sua actividade, as suas palavras, os seus sentimentos, o seu carinho, tão grande como o seu coração, que não lhe cabia no peito e por isso a levou para outra dimensão, para outras paragens, desconhecidas para os que por cá continuamos.
Descobri então, porque recordo aquele dia tão distante de 17 de Novembro de 1967!
Eu era jovem e tinha uma mãe jovem, tão jovem e tão madura, tão belamente formada, no trabalho, no conhecimento das gentes, no respeito e na coragem para enfrentar dificuldades, que nos transmitia toda a confiança no mundo, desde que nos dispuséssemos a trabalhar como ela.
A cultura encantava-a, e, muito à frente do seu tempo, ela interessava-se por tudo, em todas as áreas. Desde a literatura à ciência, ela demonstrava o seu interesse profundo, com uma avidez de conhecimento extraordinária, que alimentava mentalmente, ao mesmo tempo que desenvolvia o seu trabalho no sector primário.
E, tenho saudades, muitas saudades, da sua voz, da sua coragem, do seu exemplo, do seu carinho e por conseguinte, da minha infância e Juventude.
Faria agora 87 anos, mas há já 30 anos que a não vejo!
“Saudade”
Há sempre no fundo do meu ser
Uma saudade do passado!
Saudade de uma voz.
De um corpo querido
Que há muito partiu
e nos deixou sós!
Uma voz estridente!
Bem timbrada!
Inteligente!
Forte!
Calma!
Uma voz que me enche a alma
e me acalma…
A voz da minha mãe!..
Felismina Costa
Agualva, 26 de Março de 2006
____________
Notas de CV:
(*) Vd. poste de 2 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8847: Notas de leitura (280): As Mulheres nas Malhas da Guerra Colonial, de Ana Bela Vinagre (Felismina Costa)
Vd. último poste da série de 12 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9031: In Memoriam (95): Zé Santos, da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610, capturado e assassinado pelo PAIGC (Manuel Maia)
Gravura retirada de http://prenoviciadosdb.blogspot.com/, com a devida vénia
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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16 comentários:
Olá Amiga Felismina
Pode viver um século em Lisboa ou arredores. A sua Vida é a Terra e o seu passado nela vivido.
Apegou-se, entranhou-se demasiado e bem pode cantar quando do Alentejo parte...
Abalei do Alentejo
Olhei par trás
....
.....
Um abraço fraterno do Torcato
Obrigado, muito obrigado, Felismina.
Eu também tive uma mãe assim, a mesma luta, a mesma doçura de todas as mães e chamava-se Pureza.
Nunca virou a cara à luta, nunca a vi chorar, mesmo quando se ia deitar sem cear, por não haver o quê, mas sei que sofreu e chorou muito, enquanto andei pelas matas do Maiombe.
Por isso tenho dúvidas que este assunto não caiba no âmbito deste blog.A guerra não foi só travada, por nós combatentes, mas pela maioria das mulheres desse tempo, mães,esposas,irmãs e noivas.
Verdade que vim ao blog, por outros motivos, óbvios, mas foi uma agradavel surpresa este seu texto.
A.Almeida
Mais um lindo quadro alentejano saído das mãos da nossa poetisa...É sempre delicioso ouvir os seus testemunhos.
Um abraço
O anónimo das 17.00h sou eu:
Joaquim Luís Mendes Gomes
Olá Felismina
Lindo tudo aquilo que escreveu. Sensibilizou-me imenso até porque a minha mãe partiu muito recentemente (em 12 de Outubro), aos 84 anos.
E se a minha partiu tão recentemente deixando-me tantas saudades, como não serão as suas por quem partiu tão cedo.
No blogue da minha companhia:wwwccac3491guine7174blogspot.com deixei também o meu grito pela sua partida e pela minha saudade e que partilho também aqui:
A MINHA MÃE
Mãezinha! Mãezinha!
É o teu menino a chamar
Acorda mãezinha, acorda
Vem comigo brincar
Conta-me histórias de cavaleiros
Com princesas d´encantar
Acorda mãezinha, acorda
Embala-me nos teus braços
E deixa-me estar aqui a sonhar
Acorda mãezinha, acorda
É o teu menino a chamar
Esse sono que te levou
Foi Nosso Senhor a brincar
Um abraço
Luís Dias
Amigos e Camaradas
Enquanto as nossas Mães viverem, continuamos Crianças. Quando elas morrem perdemos o estatuto de Crianças.
Felizmente ,eu com 63 anos ainda sou Criança.
Abraço
Luís Borrega
Amiga Felismina,
Obrigado por este bonito quadro da vida portuguesa dos anos 60, pleno de docura e de reconhecimento que me encantou sobremaneira.
Hoje lamento muito o facto de ter estado em Portugal (Lisboa) e nunca ter visitado uma aldeia do interior a fim de conhecer o portugal real.
Afinal, eramos tao "diferentes" e tao "iguais" naquilo que de essencial existe nos povos.
Durante muito tempo, na inocencia do nosso universo infantil de 7/8 anos, a percepcao que tinhamos dos brancos "soldados portugueses" era que eles eram mais felizes porque:
(i)comiam bem e nao precisavam de trabalhar a terra, (ii)deslocavam-se agil e facilmente porque nao precisavam carregar os mais variados apetrechos de que uma familia precisa no dia-a-dia e (iii) sobretudo, porque viviam e dormiam tranquilos sem as habituais chatices com os filhos e a familia no meio das birras com as mulheres. Afinal, a realidade era bem diferente.
A descricao que fazes da tua mae, salvaguardada a diferenca do contexto, claro, corresponderia na perfeicao a minha maezinha, um pouquinho so mais alta (um metro e sessenta) talvez, inteligente e incansavel no trabalho.
Ela assumia a sua condicao de mulher africana, extremamente docil e obediente, mas ao mesmo tempo, sabia mostrar os limites da tolerancia, quando era necessario.
Uma vez, estalou na familia uma discussao sobre se eu devia ou nao continuar na escola portuguesa. A minha mae nao vacilou nem um palmo e disse na cara do meu pai: O meu filho vai continuar na escola. E ai o meu pai ficou completamente confundido, afinal o filho era dela?...desde quando?
- Desde o momento em que ele ainda vivia na minha barriga de mulher, respondeu ela, sem pestanejar. - Nao é agora, depois de tantos anos de trabalho e de pancadas é que ele vai abandonar, para ir onde?...
A sua decisao prevaleceu diante de todos os Almames e Califas da
aldeia.
As caracteristicas tipicas da sociedade africana com que os etnologos europeus pintaram os africanos, onde o homem é o centro do mundo e decide tudo, nao corresponde sempre a realidade destes povos, é tudo muito mais complexo e muito mais dificil de destrinchar e de catalogar.
Um grande abraco amigo,
Cherno Baldé
Como as conversas se cruzam e entrelaçam.
Cherno, faço votos que esteja no forno o tal best-seller.
Antº Rosinha
E eis que o perfume voltou ao blogue!
Bonito, muito bonito, Felismina, a mais alentejana das alentejanas.
O seu texto e a sua poesia (como sempre) são um paradigma a seguir.
Vejo as lágrimas da minha mãe (quão sentida) de ver o seu filho ir para uma guerra.
Afinal pude abraçá-la outra vez.
Bem haja Felismina. Os seus filhos também
Receba um abraço
Rui Silva
Obrigado, Felismina, pelo belo texto que, não só encantou cá, em Portugal, como encoantou lá, Guine (nossa terra, tambem).
Mãe é Mãe e, apenas "SÓ HÁ UMA"
Olá, Felismina!
Dois belos textos ( introdução e poema), qual deles o mais emotivo. Não, amiga, no meu entender não saem do âmbito do blogue. E que saíssem!
Não saem porque, se há algo que paira por aqui, é a figura da MÃE. Percorra-se o blogue e ver-se-á como é frequente este "ente primordial" aparecer à tona de muitos textos. Não admira, pois ...cada um de nós, combatentes, foi "menino de sua mãe" como no poema de Fernando Pessoa.
Para alguns cumpriu-se, literalmente, o poema:
Por lá ficaram "de balas trespassado(s)" e "Lá longe, em casa, há a prece: /Que volte cedo, e bem"! / (Malhas que o Império tece) / Jaz morto e apodrece / O menino da sua mãe.
Um beijo
Meus Amigos, meus irmãos no tempo e na vida, seres emotivos, sensíveis ao maior bem que a vida nos pode dar--o amor de mãe!
Para além do que sinto como filha, sinto-me emocionada pelas vossas manifestações de ternura de lembrança de apreço pelas vossas mães.
Eu sei que pertenço a uma geração de homens bons e sensíveis de que muito me orgulho:
Torcato, obrigada pelas suas palavras, sempre atento e amigo.
A.Almeida, parabéns pela mãe que teve, pela sua coragem, pela luta que travou contra as dificuldades e por o ter gerado e criado.
Joaquim Luís Gomes
obrigada pela sua opinião, pela sua atenção e valorização do meu sentir.
Luís Dias
Os meus sentidos pêsames pela sua grande perda, ainda tão recente, sei que neste tempo está a sentir, que perdeu algo que jamais terá.
Obrigada pelas suas sentidas palavras.
Luís Borrega
Nunca um filho deixa de ser, o menino de sua mãe. Tenho dois com 39 e 34 anos respectivamente e são exactamente...os meus meninos, como no primeiro dia.
Parabéns por continuar a ser criança. já não são muitos os da nossa geração, que tem essa alegria.
Cherno Baldé
Fiquei muito contente por saber que
também teve como todos nós, uma mãe exemplar: mãe, não tem cor, tem coração, em todos os continentes.
Obrigada por nos contar um pouco da sua história familiar e não só.
Rui Silva
Você, e a seu cavalheirismo e ternura. Eu é que sou uma felizarda por vos ter por amigos.
Obrigada.
Manuel Joaquim
Obrigada!
É verdade, somos todos e cada um, meninos de sua mãe.
Pena que, ao longo dos séculos, se cumpra o que escreveu o Pessoa. nenhuma mãe e nenhum filho, merece morrer, pelas mãos de outros filhos.
Zé Martins
Eu é que vos fico agradecida e sensibilizada com os vossos sentimentos.
Um Abraço fraterno a toda a tertúlia, pois sei que em cada um de vós, está um filho, que ama a sua mãe.
Um Abraço para si, Carlos Vinhal,pela sua disponibilidade, pela sua sensibilidade, pela sua amizade.
Um Abraço para si Luís Graça, por ter juntado todos estes seres, diferentes entre si, mas iguais no mais elementar dos sentimentos.
As nossas mães fazem-nos recordar a nossa juventude.
Quem de nós não regressa quando estamos ao pé delas. Elas são heroínas de uma vida que dificilmente queremos para nós e para as nossas filhas ou filhos.
Viveram num tempo em que misturaram o amor com sofrimento, amassaram ânsia e injustiça com sede de liberdade e igualdade.
De uma forma ou de outra elas indicaram-nos o caminho para uma vida mais digna. Com a sua capacidade de resistência mostraram-nos o caminho cheio de escolhos mas que ninguém podia percorrer por nós.
Quantas vezes me lembrei dela em hora de aflição.
A minha como a mãe do Cherno Baldé foi meiga, foi protectora, e foi leoa quando necessitou de nos defender.
Um abraço Felismina restante camaradas.
Não assinei o comentário de agradecimentos, mas aproveito para responder ao Juvenal e assinar.
é isso mesmo Juvenal, as nossas mães, levam-nos sempre à infância e juventude, período em que tudo nos transmitem e nós absorvemos, havidos de conhecimento. Iremos lembrar, pela vida fora, palavras, acções, avisos, recados, exemplos, etc.
Você Juvenal, é mais um dos filhos felizes. Os meus parabéns e um grande abraço.
Felismina
Cara amiga Felismina,
Ao ler o seu artigo e poema recuei no tempo, ao longínquo ano de 1969 e ao porto da linda cidade da Horta. Então a minha família dava os seus primeiros na emigração.
No abraço da despedida a minha mãe disse-me que me amava muito, mas que havia Alguém que me amava muito mais que ela e que seria o guia dos meus passos. Nessa altura eu estava a semanas de ir para a tropa.
Levei muitos anos a compreender o verdadeiro sentido daquelas palavras.
Recentemente, quando decidiu ir ao encontro do Redentor disse-me, com aquela voz meiga que a caracterizava, que não se estava indo embora, que apenas ia pagar as suas dívidas e fazer um pouco de companhia ao meu pai e aos meus irmãos que a tinham precedido.
Foi naquele momento que compreendi que tinha sido sempre a sua criança, o seu bebé. Com as suas últimas palavras, depositava nos meus ombros o ceptro familiar e o direito de ser homem.
Certamente muito mais rico pela mãe que tive.
José Câmara
Caro José Câmara
Pois é! As mães dizem coisas!..
Dizem-nos coisas que lembramos para sempre e muitas vezes,só compreendemos já muito tarde, tão tarde,quanto o tempo se tornou curto, para lhes dizer-mos que compreendemos a sua mensagem...
Mas fica em nós, a certeza, de que a vida lhes deu o conhecimento,a sabedoria, a tolerância, a capacidade de suportar dificuldades, que as ensinou a ser grandes, temerárias perante os revezes, enfrentando as adversidades com o desprezo pelo que não nos valoriza.
Um abraço para um Português, que abalou da sua ilha e se tornou, como tantos. "um cidadão do mundo"
Saudações a partir de Lisboa, por esta "auto-estrada" que nos liga até ao fim do mundo.
Felismina Costa
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