sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Guiné 63/74 - P9056: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (10): O grande choque (2)

1. Em mensagem do dia 17 de Novembro de 2011, o nosso camarada José Ferreira da Silva* (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos esta menos boa memória da sua guerra.


Outras memorias da minha guerra (10)

O grande choque II

Ainda atordoado com tantas mudanças repentinas (relatadas no post P8466 - O grande choque) e já experimentava novas mazelas.

Em Fá (Bambadinca), logo de início, o nosso Capitão (oficial de carreira) mostrou bem o seu profissionalismo. Procurou dar trabalho a toda a gente e segurar bem o grupo no aspecto disciplinar, ainda que cedendo um ou outro maço de cigarros aos revolucionários de referência. E logo se preocupou em obrigar a malta a andar limpa e asseada e até com as botas engraxadas (conforme formaturas efectuadas para o efeito).

Tudo bem, mas a situação já não era a mesma da Metrópole. As saudades, o calor, os mosquitos, o isolamento e as primeiras saídas, não nos davam disposição para mais sacrifícios desnecessários. Por outro lado, não aceitávamos a falta de bebida fresca naquele “forno de Maio”. Quanto ao afastamento do grupo de oficiais (técnica do “manter as distâncias”) relativamente aos furriéis, durou pouco tempo. O próprio Capitão (quando “elas” começaram a doer) chegou cedo à conclusão que era essencial contar com aquele bom grupo de furriéis. Porém, foram ainda umas semanas para ele ceder.

Entretanto, recordo:
Dia 6 de Maio de 1967
Recebo a primeira informação sobre o ferimento em combate (tiro na coluna vertebral) na noite de 29/4, do meu maior amigo José Ribeiro, na véspera de se deslocar de Empada para Bissau (onde supostamente nos iríamos encontrar) e vir de férias para casar neste mesmo dia 6, em Santa Maria da Feira. Encontrava-se agora em coma no Hospital Militar de Lisboa. Fiquei ainda mais destroçado.

Nestes dias de calor infernal, iniciámos os patrulhamentos e uns treinos operacionais para os lados de Xime e Enxalé.


 Entre 15 e 20 de Maio, fomos para Enxalé fazer treino operacional. Para além dos medos que nos metiam, o que mais recordo foi o ambiente festivo em que a tropa lá sediada festejava os seus 4 meses de Guiné. Para nós, aqueles 4 meses, já eram uma barreira difícil de vencer. E faziam-no com tanto fervor e tanta exuberância que nos amesquinhavam e diminuíam. Não esqueço aquela formatura de despedida, em que vários dos nossos militares foram descalços para a formatura por terem desaparecido as botas, enquanto que a tropa local gozava à gargalhada, misturada com “elogios” aos periquitos.

Uns dias depois (22/24 de Maio), numa noite dessa “iniciação ao teatro de guerra”, estando eu, no Xime, a dormitar ao ar livre e ao sabor dos mosquitos, ouvi uns gritos enormes de homem. Quando perguntei o que se passava, disseram-me para ter calma, porque era o cozinheiro (tido como um valentão daquela Companhia) que estava a “fritar os pés de um turra”.

Ainda fizemos uma Operação (“Governar”), sem contacto com o inimigo. Numa destas Oerações de treino, a frente da nossa Companhia avistou um grupo de “turras” em movimento e como ainda não se havia disparado um tiro em combate, esperou-se a indicação do Capitão que, não autorizou o ataque. Justificou com problemas de consciência, o que, conforme se constou, lhe veio a trazer observações de chacota, por parte dos seus pares (e superiores) no Comando de Bafatá.

Sempre que eu podia, ia de boleia até Bafatá, na viatura de apoio ao Vagomestre. Mal chegava a Bafatá, metia-me logo na piscina, bebia umas cervejas geladas e pedia frango de churrasco picante, para o regresso. Eram estas escassas horitas de “grandes prazeres” que nos fizeram iniciar da melhor forma a “resistência” àquela guerra maldita.

Numa dessas deslocações, o motorista “Coimbra” teve um acidente, no centro de Bafatá. Quando seguíamos a uma velocidade normal, fomos embatidos do lado esquerdo, junto do depósito do combustível do Unimog, por uma moto com dois jovens locais. Como ficaram bastante feridos, tiveram que ser evacuados de avião para Bissau e o Comando de Sector tomou conta da ocorrência. Tratava-se de jovens muito populares em Bafatá, o que nos atirou logo para a condição de culpados. Acresce dizer que nos valeu um Capitão Guimarães (?), que nos acalmou e muito especialmente ao motorista, que não parava de chorar.

Logo que o nosso Capitão veio de Bafatá, onde fora tratar dos seus assuntos militares, alertou-me para o facto de eu ser o responsável no acidente. Alegava ele que a viatura militar era tida como culpada e que sendo eu o mais antigo dos graduados que lá seguiam, incluindo o Vagomestre, seria responsabilizado pelo acidente. Ainda lhe disse que fora de boleia e que nem sequer seguia na frente da viatura, pois que estava sentado atrás, de costas para o movimento, mas ele não queria saber. Além disso, eu não via motivos para que se pudesse considerar a viatura militar como culpada. Prometeu que iria preparar o processo e interceder por nós, mas para eu me preparar para o pior.

Não sei bem porquê, mas tive sempre a impressão de que o Capitão não simpatizava comigo (ao contrário de outros) e que apenas me foi suportando porque precisava da minha contribuição militar.

Poucos dias depois fomos lançados para Oio, a partir de Banjara, tendo-nos sido infligido um violento ataque, como baptismo de fogo, seguido de outros contactos que, a par da nossa desorientação e cansaço, nos deixou de rastos, conforme descrição nos Post P7004 e P7159, tendo, até, havido casos de militares que tiveram que beber urina. Passara-se apenas um mês e pouco desde a chegada à Guiné e já havia uma grande quantidade de situações tão surpreendentes quanto anormais, que me puseram em “stress” permanente.

Já se bebia demais, a fim de se esquecer a situação em que estávamos metidos. Os sonhos de amor e amizade tornaram-se inatingíveis. Eram agora pesadelos horríveis. Quantas vezes me “via” junto dos amigos, da namorada e, desesperadamente, não conseguia contactá-los. Gritava-lhes e eles não me respondiam. Acordava, aflito, e enfrentava de novo, em catadupa, um montão de coisas más que estavam a acontecer. E eu, impotente, nada podia fazer.

Tentava controlar-me para não fazer algo de irremediável e confiar que teria que melhorar.

Silva da Cart 1689
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 15 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8909: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (9): Oficial não Cavalheiro

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