sexta-feira, 1 de junho de 2012

Guiné 63/74 - P9974: Notas de leitura (365): Guiné e Cabo Verde: elementos para a sua unidade (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 18 de Abril de 2012:

Queridos amigos,

A unidade Guiné-Cabo Verde foi uma bandeira de guerra, um toque a reunir em nome da emancipação de um só povo. Sabemos como tal bandeira nunca foi aceite, no íntimo, por cabo-verdianos e guineenses, a despeito do sopro que avassalou África em torno da unidade e da formação de blocos regionais. Com raríssimas exceções, tudo falhou. No caso particular da Guiné e Cabo Verde foram apregoadas razões históricas que, quando rigorosamente dissecadas, são indemonstráveis. É verdade que se vive de mitos mas estes podem ser desvelados. Pegue-se no artigo de António Carreira e veja-se que aquela unidade também era fantasiosa. E Amílcar Cabral usou-a internamente, como se sabe sem proveito nenhum.

Um abraço do
Mário


Guiné e Cabo Verde: elementos para a sua unidade

Beja Santos

Em 1969, no decurso de uma conferência de quadros, em Conacri, Amílcar Cabral exibiu um texto de António Carreira acerca da unidade histórica e populacional da Guiné e Cabo Verde, evocando que até os historiadores do regime defendiam a mesma unidade que a do PAIGC. O texto de António Carreira tinha sido publicado na revista Ultramar, no número alusivo à viagem de Américo Tomás à Guiné, em 1968.

Vejamos o que escreveu Carreira que tanto gratificou o construtor exclusivo da tese de que a Guiné e Cabo Verde eram verso e reverso da mesma medalha.

Primeiro, Careira discreteia sobre o conceito de Guiné já que, como é por demais sabido, desde o século XV ao século XVII toda a costa entre o Senegal e o rio Orange era conhecida por Costa da Guiné. Quando estamos chegados ao século XIX o conceito retraiu-se até se confinar ao território que do sul do rio Gâmbia ou da embocadura do Casamansa até à parte norte da Serra Leoa. Num período intermédio também se usou a designação de Senegâmbia com várias aceções. O que interessa é que durante estes séculos em que os descobridores portugueses e depois outras potências aportaram à Costa Ocidental Africana, todos ávidos de comércio, incluindo o de escravos, à volta de um conceito diluído de Guiné processou-se a transferência de gente destas paragens para o povoamento das ilhas de Cabo Verde. Este povoamento do arquipélago processou-se com donatários e capitães-mores europeus e mestiços cabo-verdianos resultantes do cruzamento com mulheres negras levadas da Costa da Guiné. Era Cabo Verde quem administrava as praças e presídios do que hoje se aproxima do território da Guiné-Bissau e que foi a província da Guiné depois da Convenção Luso-Francesa de 1886: Cacheu, Farim, Bissau, Geba, Bolama, Buba. Analisando a história de Cabo-Verde percebe-se rapidamente que a fixação de populações, a natureza das atividades económicas, a coesão linguística, a presença cabo-verdiana nos negócios, etc., era totalmente distinta do que existia na Guiné. Só por extrapolação abusiva é que estas duas populações podem ser apresentadas em paridade, com coexistência cultural, social e económica.

Segundo, é facto que a Guiné e Cabo Verde tiveram economias complementares e pode dar-se parcialmente razão a Carreira quando diz: “A Guiné deu a massa humana que entrou no cadinho da mestiçagem; Cabo Verde desenvolveu-a. Daí a dificuldade de, em certos aspetos se falar de um território sem considerar o outro. Cabo Verde recebeu da Guiné uma contribuição humana inestimável. Para o seu povoamento concorreram, no geral, todas as etnias do continente fronteiro – do sul do Senegal à Serra Leoa, em particular. O quantitativo de cada uma delas é que é difícil de determinar. Das outras áreas a sul, à parte um ou outro elemento esporádico, nada se conhece com relevância”. Temos assim a nebulosidade da proveniência das mulheres africanas. E não se discute a evolução da mestiçagem como se esta fosse um dado imóvel. Nada subtrai à identidade cabo-verdiana ou facto de se saber que ao longo de séculos foram levados para as ilhas cabo-verdianas, escravos e imigrantes procedentes dessa vasta zona compreendida entre o rio Senegal e a Serra Leoa, a identidade não se forja só a partir de uma ancestralidade, requer língua, ilustração, pauta de usos e costumes, atitude religiosa, um quadro de aspirações – é este somatório que permite traçar o perfil dos povos e habilitar a distinguir e a aproximar de outras culturas.

Terceiro, é o próprio Carreira a abonar a identidade cabo-verdiana a partir da ocupação humana. Para além dos escravos e de imigrantes voluntários, o arquipélago assistiu a uma evolução do conceito de escravatura, urdiu-se uma classe de agricultores e camponeses, o catolicismo tomou conta praticamente de todos, o português foi assumido muito cedo como língua veicular e criou-se um crioulo totalmente autónomo. Carreira estuda as etnias dos diferentes grupos de escravos que chegaram à Guiné e não se esquece de dizer que eram naturais do Futa, da Gâmbia, de Goréa, do rio Nuno, do Senegal, de Angola, de Cabinda, da Costa da Mina, do Rio de Janeiro. Foi esta a miscelânea de povos que deu o cabo-verdiano com uma escravidão do tipo caseiro, tão pobre como as ilhas, sem nada a ver com as sociedades esclavagistas do Brasil. Só com uma grande dose de boa vontade é que se pode assegurar a unidade populacional Guiné-Cabo Verde. É facto que vamos encontrar cabo-verdianos como ponteiros em diferentes pontos da Guiné. Carreira refere mesmo que em 1900 ou talvez antes, cabo-verdianos oriundos de Santiago, para fugir às secas, criaram pontas no rio Farim. E diz mais: “Puderam recrutar trabalhadores balantas, papéis, manjacos para o desbravamento do mato e estruturação dos camalhões, valas de irrigação e todo o complexo de trabalho exigido por esta cultura. Os cabo-verdianos não abastados enveredaram pelos trabalhos que demandavam menores esforços físicos: trapicheiros, especialistas em fermentação de garapa e de alambicagem, etc. Como mestiços, não demonstraram possuir as qualidades de resistência física dos seus ascendentes de origem africana. Por isso mesmo, a colónia africana na Guiné encaminhou-se para o funcionalismo público e para o comércio. E desse modo exerceram uma influência cultural relevante sobre a massa nativa, miscigenando-se progressivamente”. Está pois esclarecido o que se entende por unidade, um conceito mítico, tão mítico que nessa unidade o cabo-verdiano é sempre cristão e o guineense muçulmano ou animista, no período colonial os cabo-verdianos dessa administração pública e desse comércio viviam separados dos guineenses dado que se consideravam civilizados.

De um artigo manifestamente apologético de uma Guiné historicamente ligada a Portugal por via de negócios de diferente índole, uma Guiné suficientemente elástica nas suas bases territoriais para ter dado séculos de gerações de cabo-verdianos que nunca se reviram em nenhuma pátria guineense, de um arquipélago de onde partiam funcionários e outra gente que se habituou a mandar, a organizar e a dispor das culturas, a intervir nos negócios, sempre junto da administração da colónia, houve capacidade para ficcionar uma unidade histórica e populacional, para proveito da propaganda do PAIGC. Ao não medir-se a dimensão da fábula, muitas vezes o confabulador sofre dolorosas consequências. Como, desde cedo, saltou à vista de toda a gente.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 28 de Maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9953: Notas de leitura (364): Mitos Revolucionários do Terceiro Mundo, por Gérard Chaliand (Mário Beja Santos)

5 comentários:

João Carlos Abreu dos Santos disse...

... quem sou eu, que apenas sei escrever, ler e fazer contas (mas não faço de conta que não leio), para vir p'ráqui tecer comentários!
Mas...
O recensor, neste postal inicia o visitante/leitor numa contradição em termos: a modos que em subtítulo, lança o chamariz sobre uns «elementos para a sua unidade» [do PAI, da Guiné (Portuguesa), com o arquipélago do Cabo Verde]; para, logo em seguida, deduzir «que aquela unidade também era fantasiosa».
Passe a expressão caserneira, 'tamos carecas de saber - desde sempre -, sobre os fundamentos de agitprop daquelas falácias!
Em que ficamos? Trata-se de mero exercício "académico"; ou apenas mais do mesmo, seja, cumprir agenda de publicação de temas, supostamente controversos, neste blogue?!
Se me dão licença, por este meio expresso aos responsáveis editoriais, a minha percepção: não me parece séria, a insistente presença - por tudo e por nada -, deste tipo de "recensões", num blogue dedicado (cf o s/fundador e mentor), à "partilha de memórias de quem cumpriu serviço militar na Guiné".
Cordialmente,
J.C. Abreu dos Santos
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Anónimo disse...

Não se vive de, ou com, utopias

De cabo-verde apenas conheço a ilha do Sal.
O maior elogio, na minha opinião, que posso fazer ao povo cabo-verdiano é logo ao desembarcar pensarmos que não estamos em África, pela organização,recepção,limpeza...etc,que se verifica logo no pequeno edifício do aeroporto.
Ahh..neste momento CABO-VERDE é o segundo País menos corrupto de África.
Era e é paupérrimo,por isso maior valor tem o que as suas gentes conseguiram até agora.
Porque será?

C.Martins

Antº Rosinha disse...

Era muito usual o nome de família Carreira na Guiné/Caboverde colonial.

Alem deste António Carreira também há o Prof. Medina Carreira e o ten. cor. Medina Carreira que foi Director da TAAG (DTA), que também são originários de lá.

A unidade que Amílcar imaginava podia não ser apenas a origem africana dos Caboverdeanos ao referir António Carreira.

É que havia uma "Unidade Colonial" muito sentida principalmente pelos estudantes do império e seus progenitores.

Em que se viam irmamente desde guineenses, indianos angolanos e sãotomenses e macaenses etc, na terra uns dos outros como funcionários da fazenda, chefes de posto, nos serviços de registos e notários, etc.

Aquilo que se dizia de "Minho a Timor", era mais sentido como uma UNIDADE pelos brancos e mestiços ultramarinos e ilhas adjacentes do que aqui no «rectângulo», (como se dizia no alem-mar).

Vejamos o caso de Cabinda que tranquilamente era Angola.

É que aos olhos da geração de Amílcar Cabral e daqueles dirigentes do MPLA, PAIGC e FRELIMO, até parecia tranquilo governar aqueles povos, quando qualquer chefe de posto e dois cipaios coloniais dominavam a seu belo prazer tanta gente dócil e colaborante.

Já noutros tempos São Tomé não sobrevivia desligado de Angola.

Até o actual presidente Angolano se diz que é sãotomense.

Até Amílcar foi co-fundador do MPLA.

Houve união, sim, e Amílcar conheceu essa união, e era bonita mas demasiado frágil.

Tão fragil que até a Guiné pode desaparecer como país irmão.

Obrigado Mário por mais esta leitura

João Carlos Abreu dos Santos disse...

... António Barbosa Carreira (1905-1988), nascido em Cabo Verde, funcionário superior da "Casa Gouveia" e principal responsável pela cegada ocorrida em 03Ago59 no cais de cabotagem fluvial do Pidjiguiti - pois foi ele que, contrariando ordens da CUF-Lisboa para proceder ao previsto aumento anual da 'jorna' dos estivadores, entendeu que "só após acalmia da agitação"... (que redundou cf instruções da célula da CGT-francesa em Dacar, na baderna que interessava aos compadres do PAI cabralino) -, é precisamente o pai do Prof. Henrique Medina Carreira, nascido em 14Jan31... em Bissau.

João José disse...

Agradeço toda a informação que nos foi transmitida. Apenas tenho a dizer que está de acordo com tudo o que constatei junto de centenas de africanos com os quais tive o privilégio de conviver nessa terra que nos deixou, apesar dos muito maus momentos, muitas saudades. Não me canso de repetir, gente boa, com carácter, generosa, e com valores...
João Martins