quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Guiné 63/74 - P10307: Estórias cabralianas (73): O Conde de Bobadela (Jorge Cabral)

1. Mensagem do nosso alfero Cabral, através do seu representante na terra, o nosso camarigo Jorge Cabral:

Amigos!

Após achaques vários e um grande susto. o Alfero estoriador está de volta.

Abraços.

J. Cabral

PS - Não liguem ao Que Fazer!


2. Estórias cabralianas > O conde de Bobadela

Estou no Tribunal de Mafra à espera de um Julgamento, quando uma mulher me  interpela:
-É o Senhor Conde, não é?

Hesito, mas para evitar mais conversa, respondo:
 -Sou sim. Como vai a senhora?
 -Ai, que já não se lembra da Aurora! Eu trabalhava em casa do Senhor D.Ilídio. O Senhor Conde ia lá muito, quando estava na tropa.
 -Pois ia. Claro que já morreram, o senhor D.Ilídio e a esposa, a Dona  Florípedes. E a menina Francisca ainda lá habita?
 -Oh não.A casa ficou ao abandono.A Menina vive no estrangeiro.

Chamam-me para a Sala de Audiências. Despeço-me.
  
No regresso a Lisboa, qual arqueólogo, colo os cacos da memória.Foi  há quarenta e quatro anos, no início de Junho, que o meu  velho vizinho Alvarenga, coronel reformado, me procurou. Sabendo que eu ia para Mafra, pediu-me que levasse uma encomenda ao seu amigo, Coronel Ilídio Montez, que morava na Achada, perto da Ericeira.
-Nem precisas de ir à casa. Vais ao CMEFD., mesmo ao lado do Convento. Ele passa lá os dias a montar a cavalo.

E assim,poucos dias depois de apresentado na EPI., fui procurar o Coronel. Logo no portão recebi uma reprimenda do 1º  Cabo de serviço:
- Dobre a língua, nosso Cadete! O  Coronel Montez é Dom! Dom Ilídio, está bem !?

Conduziu-me ao picadeiro e conheci D. Ilídio. Um velho pequenino, sem dúvida já octogenário, de bigode branco, pose altiva, mas simpático. Abriu à minha frente a encomenda e rejubilou: umas bonitas esporas prateadas.
 -Hoje vais jantar a minha casa - ordenou.  - A minha mulher deve estar a chegar.

Pouco tempo depois, eis-me metido no carro conduzido por Dona Florípedes, a mulher.Uma senhora muito branca, talvez triste, com ar de tédio e algo de snobe.Jantei nessa noite e em muitas outras.

Bebia os conhaques do Coronel. Declamava para a Dona Florípedes. Comentava o Maio francês com a filha Francisca, mas à noite no quartel, era com a empregada Aurora, que sonhava.

Dona Florípedes sentia-se exilada em terra de saloios.Trocar o Estoril pela Achada. E tudo por culpa dos cavalos…E logo ela.  neta do Marquês de  Pintéus, sobrinha do Barão da Marateca. Para não destoar, confessei-lhe que também eu era Conde. Mas não usava o título, nem aliás o nome completo - D. Almeida Cabral y Athouguia De Vasconcelos, Conde da Bobadela.

Às vezes discutia-se o meu futuro militar. D. Ilídio tinha esperança que eu fosse parar a Santarém, à Cavalaria. Possuia perfil e estatura de grande combatente dizia, contra a opinião de Dona Florípedes:
-Um rapaz tão sensível. Até faz versos..-
- E daí? - retorquia o Coronel- - Camões também andou na Guerra!

D. Ilídio tinha uma teoria, segundo a qual os mais valentes são  sempre  os Homens mais pequenos:_
- Olha o Napoleão, para não falar no nosso Marechal Carmona!

Ele nunca fora  a África, mas falava das savanas de Angola, com tal propriedade, que era fácil imaginá-lo à frente do Esquadrão a galope, perseguindo o inimigo.

Conhaque e cavalos.Cavalos e conhaque constituíam os interesses do Coronel. Nos conhaques ainda o ia acompanhando:
- Prova-me este Courvoisier!  Que achas do Remy Martin?  Gostas do Henri IV ? 

Mas nos cavalos….Bem, convidou-me muitas vezes a ficar em Mafra, um fim de semana, para montar e escusei-me sempre. A apendicite da mana….. A úlcera do Avô…A apoplexia do tio Gilberto…O certo é que nunca cheguei a demonstrar os meus dotes equestres.

Acabou a recruta. Deixei Mafra e rumei a Vendas Novas. Estou, ainda nem passaram quinze dias, sou chamado ao Comandante da Bateria.
 -Qual é o seu nome completo,n osso Cadete?
- Jorge Pedro de  Almeida Cabral, meu Capitão.
 -Então esta carta é ou não é para si? - E entrega-ma.

Está endereçada a Jorge D. Almeida Cabral y Athouguia de Vasconcelos, Conde da
Bobadela.
 -Alguma brincadeira, meu Capitão.
 - Brincadeiras estúpidas, nosso Cadete!

 A carta era de Dona Florípedes. Trazia um poema, com muitas açucenas, tardes amenas e até metia o pão de ló da avó.. Bem, rimar, rimava... Não respondi.

Embora tivesse ficado como Aspirante em Vendas Novas, nunca o Capitão, depois Major, me voltou a tocar no assunto. Escrevi-lhe da Guiné. E assinei:  Jorge Alfa  Mamadú Cabral de Embalo Balde, Conde de Missirá e Barão da Bolanha de Finete.

Jorge Cabral

3. Comentário do editor: Falei ontem ao telefone com o Jorge, de quem não tinha notícias há uns bons tempos. Andou por aí um mês e tal na "mão dos médicos", a "checar" a anatomia e a fisiologia. Felizmente, está bem. E "manda estória", sinal de que está vivo da costa, como a sardinha, e vai-nos continuando a fazer sorrir "com meia cara"... Gostei do seu "post scriptum": Não liguem ao Que Fazer!... Eu descodifico: Vivam a vida, rapazes!
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Nota do editor:

Último poste da série > 9 de maio de 2012 >  Guiné 63/74 - P9873: Estórias cabralianas (72): Ressonar... à fula (Jorge Cabral)

(...) Além de ressonar, sempre falei a dormir. Um dia em Missirá propus-me descobrir, de que falava, o que dizia.  Ora, havia lá um velho gravador de fita, máquina pertencente a não sei quem, enfim nossa, pois viviamos numa espécie de “economia comum”. Resolvi pois gravar uma das minhas noites.  (...)

13 comentários:

JD disse...

Viva Sr D. Jorge, Conde, ou Barão, tanto faz, porque esses superlativos assentam que nem luvas na divertida qualidade das tuas estórias.
E como tiveste "cheque" positivo, desejo-te muitas auroras, matinais, notívagas, boreais, o que quer que sejam, mas boas e frescas, principalmente, porque é Verão, se fosse inverno, seria sobretudo.
Um abraço
JD

Cesar Dias disse...

Obrigado Alfero
Estava mesmo a precisar de lêr qualquer coisa do género.
Espero que estejas e continues em forma, esta tabanca estava a precisar de ti.
Um abraço Sr Conde Alfero
César Dias

Anónimo disse...

«A Vida e obra de Jorge D. Almeida Cabral y Athouguia de Vasconcelos, Conde da Bobadela» ao prelo, JÁ.

Abraço
A.Almeida

José Marcelino Martins disse...

Só não digo que é "impagavel" esta hiatória, não só para não minimizar as anteriores e futuras, mas para que o editor do teu MAIS QUE ESPERADO livro, não tome a palavra à letra e não pague os Direitos de Autor.

Obrigado pelo texto e um abraço.

G.Tavares disse...

Sr D.Jorge
A história é deliciosa. Quero no entanto salientar o modo como um tal capitão lidou com a situação que em minha opinião nem sequer lhe dizia respeito. Muito mal vai um exército com capitães que se preocupam com o endereço do correio do pessoal da sua subunidade. Os cadetes sempre foram mal tratados pelos oficiais nas Escolas Práticas.Não sei mesmo se o dito cujo não seria um "Julinho" na época muito conhecido na Art. Chegou a Gen. Talvez complexos. Por isso a guerra foi o que foi.
Continue com as suas histórias que são sempre muito agradáveis.
G.Tavares

Juvenal Amado disse...

Para não variar é sempre um prazer ler o que escreves.
O fino humor e a forma de descrever as situações, são uma delicia e não é por acaso, que tens sempre uma legião de fãs ao teu redor.

Quanto à saúde folgo que esteja passado o mau bocado, que de maus bocados vai constante e cheia a nossa idade.

Um abraço

antonio graça de abreu disse...



Que delícia a história do Jorge Cabral!
Mas falta a continuação explícita dos sonhos húmidos, túmidos com a D. Aurora.
Um conde falso, mesmo da Bobadela não montou nela? Ah, pois foste para artilharia, mas os artilheiros também montam e consta que com uma grande bisarma e os melhores, como tu, com afinada pontaria.
Olha como quarenta anos depois a mocetona Aurora se lembrava de ti, meu caro Jorge Cabral!...
Dá continuação ao enlevo do cadete pela moçoila mafrense, e vice-versa.
Mesmo que seja invenção, tudo o que tu escreves é verdade.
Tens de pôr os teus fabulosos textos em livro, todos merecemos as tuas Histórias
Cabralianas.

Põe-te bom, rapaz. Até porque há sempre uma Aurora, nem que seja boreal, à espera das carícias do Jorge Cabral.

Abração forte e saúde,

António Graça de Abreu

imigrante reformado disse...

Gostei muito deste texto, não conheço pessoalmente o autor que dá pelo nome de Jorge, mas sei que foi combatente. Felicito-o, pois o texto tem alguma graça, é agradável de se ler, e marca uma época do Portugal que eu vivi, pois já estou fora do país há quarenta anos. Aproximadamente há cinquenta anos, quando assentei praça, pois antes a lavoura ocupava-me todo o tempo, e não sabia nada do que ia no País, diziam, que no exército, havia a classe dos quatro "Cs", que era, Condes, Coroneis, Cavalos e Conhaque!. Alguns, diziam que nem continência sabiam fazer, pois nunca aprenderam, porque o tempo não lhes sobrava, para ninharias dessas, pois passavam todo o tempo olhando para o seu umbigo, só recebiam saudações, não era preciso retribui-las!. Desculpem o meu português. Um forte abraço deste combatente, e continue, e entendo que deve publicar este e outros textos, pois vejo que sabe escrever, numa linguagem assecível, é um "Gift" que o Jorge tem, este pelo menos é um "Master piece". Tony Borie.

mario gualter rodrigues pinto disse...

Caro Jorge Cabral

É sempre um prazer ler as tuas histórias cheias de acção rocambolesca e de um sentimento rizonho.

Gostei principalmente da parte de Vendas Novas onde certamente tiveste mais aventuras hilariantes não fosses já na altura conhecido pelo cadete Cabral, Conde das Patas e outras senhoras de Vendas Novas.......

Um abraço Sr Conde

De um monitor que em tempos passou no GI Vendas Novas dando alguma instrução no COM....

Mário Pinto

Anónimo disse...

Meu Caro Dr. Jorge Cabral

Obrigada pela sonora gargalhada que me fez libertar!

Tive tentada a perguntar-lhe, se a história é verdadeira, mas, nem quero saber, Sr. Conde!
Só sei que está uma delícia.

Muito obrigada.

Um beijinho da

Felismina

arcanjo disse...

Então amigo Cabral, para quando a vernissage das Histórias Cabralianas? Quando acontecer, lá estarei!

Um abraço

GG

Anónimo disse...

É sempre um prazer ler a tua escrita mas, mais que isso é saber-te bem de saúde.

Um abraço,
BS

Anónimo disse...

Como nem sei o que dizer, roubo a palavra ao Graça Abreu e faço minha no "milagre" do acordo completo.
Abraço, boa saúde e mais contos desta qualidade, porque o hilariante sempre foi uma boa ferramenta para falar do sério.
Jpsé Brás