As cartas, num total de 13, foram escritas em Berlim, onde vivem três dos seus netos, entre 5 de março e 5 de abril de 2012. (*)
B. Décima terceira carta > O pior estava para vir > Parte II > Meu Neto Tomás
No dia 25 de Novembro de 2011, esmagado em dor, escrevi no meu diário:
Já sabia o que era perder os pais e a única irmã. O que era perder avós e os tios todos. O que eu não sabia nem nunca imaginara era a dor tamanha de perder, dum dia para o outro, um netinho de dois anos e quatro meses! Fulminado por um tumor benigno sobre o cérebro!…Não deve haver dor maior…
Mafra, 2 de Dezembro de 2011:
Meu coração sangra de dor pelo meu Tomás….Apenas dois anos e quatro meses…Um volumoso tumor esmagou-lhe o cérebro, fatalmente, dum dia para o outro. Meus ouvidos rebentam de saudade das ricas gargalhadas sempre acesas do Tomás e do constante desafio para a brincadeira. Começou a falar, apenas há pouco mais de um ano. Com uma precisão, clareza e oportunidade espantosas. Nasceu para falar português, dizia eu.
Uns olhinhos pintados dum azul tão celestial…Uma cabeleira cor de mel caia-lhe em brandos caracóis até aos ombros e um sorriso perene e doce lhe iluminava um rosto angélico, de linhas tão suaves…
Sua voz era firme e harmoniosa.
- Avô!?…Avô!?…Avô Luís!?…- exclamava-me ele, vezes sem conta, para a brincadeira. No baloiço…no escorrega…
-Mais!… Mais!…É bom!…É bom!…Mais carne!…Chocolate!…Tomás não gosta de peixe!…
Meus olhos não param de sangrar, dia e noite, tão ácidas, dolorosas, estas lágrimas, não as quero a ninguém…
Foi dele que disse, no dia em que nasceu:
Armei meus braços
Em jeito terno de regaço.
Fitei teu rosto,
De linhas doces,
Tão perfeitas.
Dormias sereno.
Boquinha em arco,
Sob um narizinho
comedido.
Cabeleira farta,
Longas pestanas negras
E finas sobrancelhas.
Último raminho tenro,
Carregadinho de esperança,
Nascido do meu tronco.
Apertei-te ao peito.
Cerrei meus olhos.
Olhei o Céu.
Para a viagem,
Oxalá lhe seja longa...
Agradeci a Sua bênção
E pedi-Lhe a protecção...
Matosinhos, 14 de Julho de 2009
O Avô Luís.
Todo mundo à sua volta ficou atónito…com a perda do Tomás. Sobretudo, seus pais e seus avós, dum e doutro lado. Como entender uma fatalidade destas…as tais que não acontecem só aos outros…!?
Por momentos, chegamos a pensar que poderia ter sido o preço tão elevado, para travar um processo, desconhecido ainda, de divórcio dos seus pais, que estava em marcha, também doloroso e inesperado…
E parece, tudo em vão: mês e meio depois, o divórcio dos pais…deflagrou.
Porquê, meu Deus?... Que seja feita sempre a Sua vontade!...
Berlim, 5 de Abril de 2012, 01h e 04m- 5ª feira
FIM
_______________
Nota do editor:
(*) Último poste da série > 15 de agostod e 2012 > Guiné 63/74 - P10265: Cartas do meu avô (17): Décima terceira: O pior estava para vir: parte I: o cancro da próstata!... (J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil, CCAÇ 728, Bissau, Cachil e Catió, 1964/66)
12 comentários:
Meu caro Joaquim:
Chegámos ao fim da tua série com este portentoso grito de dor... Quantos de nós, camaradas da Guiné, já passamos pelo sofrimento, imenso, inenarrável, indescrítivel, da perda de alguém que tem 50% dos nossos genes, como um filho, ou 25%, como um neto ?...
É como uma amputação de parte do nosso corpo, da nossa alma... Dizem que "o tempo cura", eu não acredito... Também não sou crente, contrariamente a ti, para pensar e aceitar a morte de um inocente como uma punição... pelos pecados dos pais, dos avós, dos ascendentes... Esse Deus nunca seria o meu...
Mas não podemos deixar de falar (d)a nossa dor... Racionalizar, aceitar as explicações médicas, científicas, também não é fácil...Muito menos o destino... Um dia, a medicina preditiva vai-nos permitir fazer o diagnóstico precoce e a prevenção de muitas destas doenças, genéticas, que matam os nossos filhos e netos antes de poderem atingir os cinco anos...
Um grande abraço solidário. Luís
PS - Obrigado pela tua série, intimista... Os "nossos regressos" estão por completar... Abriste uma porta imensa... A tua série é um marco de referência no nosso blogue... Tu honras a nossa Tabanca Grande!
PS - Faz bem "partilhar" a nossa dor... Ainda há dias encontrei um amigo que perdeu a mulher há um ano, na sequência de um suicídio.... Confessou-me, destroçado, que ainda não foi capaz de contar o sucedido a muitos dos seus clientes, amigos e conhecidos...
Apenas posso dizer-te, meu caro amigo, que lamento o sucedido.
Como é natural, tambem sou avô dum Duarte coms, sensivelmente, a idade do teu Tomás.
Umfraterno e solidário abraço
Disse Ortega y Gasset: vale a pena viver,enquanto a vida nos reservar surpresas agradáveis.
Meu Caro Joaquim,
Acabas de narrar dois episódios da tua vida, que ainda te perturbam, mas, para os quais, não terás contribuído. Todos nós temos capacidades para superar dificuldades e a tristeza, e disso dás manifesto pela narrativa crua e dolorosa.
Mas tens muitas outras razões para viver, susceptiveis de te proporcionarem outras alegrias.
Desde logo, a família. Mas também esta camaradagem que te encorajou à revelação (incómoda).
De facto, se estivesses aqui dava-te um abraço, porque, apesar de não ter passado por essas duas situações amargas, já passei por muitas outras incomodidades, como a separação dos filhos, e a tirânica regulação do poder paternal, que quase me levaram a bater no juíz. E, naquele, não se perdia nada.
Dou-te um grande abraço pela coragem demonstrada.
JD
O meu obrigado pela vossa Amizade...verdadeiro sol que nos ilumina e aquece a vida...sem ela seria um pólo norte...
Reproduzo aqui o texto que me vi obrigado a escrever numa dessas horas de desfalecimento...pela perda que foi para todos nós especialmente a minha filha ...que foi ao extremo...das suas forças.
Felizmente, está reabrir.
Escrevi assim, para ela:
Não descanso nunca
Enquanto não alcançar
Que volte a haver sorriso
No teu lindo olhar,
De minha filha!...
Mesmo sabendo
Que se apagou de vez,
Aquela luz de riso,
Incandescente,
Como uma estrela,
Sempre a brilhar,
Enchia perene,
Tua casa inteira,
De luar de lua cheia…
Diabruras mil
De fazer rir,
Correrias loucas,
De estontear,
Pelas escadas, fora,
Corredores, sem fim…
Os cortinados, longos,
Das portas vidraças,
Nas suas mãozitas,
Eram bandeiras,
Eram estandartes,
De guerra infantil,
Pelos serões,
E pelas sestas,
Da família vasta,
Com avós à beira,
Sempre uma festa…
Aquelas sessões de gritos,
Mesmo estridentes,
Eram suaves,
Sobre a cadeira alta,
À cabeceira da mesa…
Com os brinquedos todos
Num reboliço,
Nas tuas mãozitas breves,
Desenfreadas,
Como tambores,
Frenéticos,
Tudo para o chão
E tu a rir!...
Seu malandreco!...
E nós também…
Tudo cumpriste
Ao pormenor.
Na perfeição.
Com muita vida…
Tão curta vida…
Foram só dois anos
Como se fossem cem!…
Que Deus te deu...
Assim como te nos deu…
Para Si…tirou.
Louvado seja!...
Eternamente!
E tu também…
Lindo Tomás…
Mafra, 11 de Agosto de 2012
5h14m
Joaquim Luís M. Mendes Gomes
( A Saudade do nosso netinho Tomás...)
Chega ao fim a tua série com dolorosa recordação.
Não haverá dor maior que perder alguém que é nossa extensão.
De facto todos já perdemos alguém muito próximo, eu quando tinha 7 anos perdi também com tumor cerebral, um primo amigo das brincadeiras e com a minha idade.
Para uma dor tamanha dificilmente terás arranjado razão para aquela morte tão prematura.
O refugio na Divina Providência serviu de amortecedor para a tragédia é a forma dos crentes se protegerem.
Mas é dificil aceitar e podemos sempre perguntar ..mas as crianças Senhor, mas as crianças!
Um abraço
UM ABRAÇO, GOMES.
UM ABRAÇO DE UM AVÔ.
Ab T.
Mais do que a amputação de parte do nosso corpo é a alma que nos é arrancada. Pondo-me no teu lugar (também sou avô)bem percebo a tua dor. E o pior de tudo é pensar que, mesmo querendo, não é possível tomarmos o lugar da pessoa que amamos.Se fosse possível bem sei que preferias morrer na vez do teu menino. Que posso dizer-te? É possível que o venhas a reencontrar, num paraíso que não sei se existe mas também não sei se não existe.
Um abração Caro Joaquim.
Carvalho de Mampatá
Caro Gomes,
Que posso eu acrescentar ao que já foi dito pelos outros amigos?
A tua dor, que nenhum de nós passe por algo semelhante.
Um abraço de solidariedade.
José Câmara
São cinco e tal da manhã, a hora a que acedi a este post. Num quarto da casa estão hoje a dormir dois netos. Adormeceram ao som da "Barcarola" de "Os contos de Hoffman" de Offenbach, cantada a seu pedido por este avô emocionado e "babado". Não os vejo mas tenho mesmo a sensação de respirar um ar mais denso, impregnado pela sua presença que parece preencher toda a casa.
Meu caro Joaquim, este teu "post" ... ... (desculpa não continuar, está difícil).
Um abraço, um grande abraço! Força, meu camarada!
1. Escorrem–me lagrimas quentes e doces pelas minhas faces, depois de ler os comentários dos meus camaradas da guerra da guiné sobre a minha última carta do meu avô…tanto humanismo e amor puro e cristalino que me deixa assim…oiço Schubert numa sinfonia inacabada…mesmo a dizer...vale mesmo a pena ainda viver...
...
Caro amigo Mendes Gomes
Acompanhei com interesse as tuas cartas.
Ri-me com elas, emocionei-me com elas, revi-me nelas em alguns aspectos, discordei de algumas coisas que li, compreendi os teus motivos e aprendi muitas coisas mas, francamente, não estava nada, mas mesmo nada, à espera de um final destes.
Como sou emotivo fiquei com um nó na garganta e só te posso dizer que compreendo agora muito melhor o papel que um Blogue como o nosso pode ter neste para 'produzir' efeitos deste tipo.
Contaste com a nossa amizade e fizeste bem, pois acho que muitos de nós se reviram nos teus escritos.
Um grande e forte abraço.
Hélder S.
Caríssimo Amigo Joaquim L. M.Gomes
Não é uma revelação para mim esta notícia, pois sabe que eu já sabia, porém a emoção manifestada por todos os amigos é igualmente a minha emoção.
Nós queremos tanto aos netos, quanto aos filhos e nem é bom pensar em perder algum, pois eles representam e são a continuidade da nossa existência, o prolongamento no tempo e nos registos.
Porém, quem somos nós, perante um acontecimento destes? nada!
De todo o coração desejo que o tempo e a coragem, ajudem a jovem mãe a ultrapassar estes dias negros, e bem assim toda a família.
Um abraço fraterno, sentido e solidário, nessa dor que vos continua a tornar amargos os dias presentes.
Felismina.
P.S. Espero que volte brevemente ao nosso convívio, com uma rubrica cheia de experiências e vivências felizes, que irá certamente ser um prazer para nós a sua leitura, como são sempre as suas narrativas.
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