Em comentário ao poste P10701, o nosso editor L.G. escreveu o seguinte, sugerindo e justificando a criação desta nova série:
" Há aqui, no blogue, uma história de cães, passada em Bambadinca, que merece ser lida e relida... Acho mesmo que merece ser republicada, depois da 'maldade'que fizemos ao Boby e, pior ainda, ao Chichas, o nosso cão de estimação, a nossa mascote, que dormia à porta do nosso quarto (!), morto com um tiro na cabeça... Numa floresta com mais de 10 mil árvores, há preciosidades como esta que um dia farão parte da nossa 'antologia'... Já tem 4 anos, a 'estória avulsa' dos 'cães, nossos amigos, de Bambadinca'... O 'Lobo' e sua matilha de rafeiros deveriam ter sido condecorados com cruz de guerra, se o mundo fosse justo e se os homens fossem dotados de 'inteligência emocional'... Um abraço para o 'velhinho' Alberto Nascimento (de 1961/63!!!), dos tempos de brasa de Bambadincam, no início da guerra"...
A Matilha de Bambadinca
por Alberto Nascimento
Alguém apareceu um dia no quartel com dois cachorros recém desmamados, que foram imediatamente adoptados e baptizados com os nomes de Gorco, ele, e Djiu, ela.
Adaptaram-se facilmente ao hotel e, quando começaram a vadiar pelas imediações, devem ter feito grande publicidade porque passado pouco tempo veio outro e mais outro e mais uns quantos, até perto da dezena de rafeiros que, agora bem nutridos, não mostravam vontade nenhuma de voltar à antiga vida de privações e maus tratos.
Mais tarde, o tenente Castro, comandante do destacamento, juntou à matilha um boxer, o Lobo que, pelo seu pedigree, foi aceite como comandante da tropa canina, que passou a segui-lo para todo o lado.
Embora alguns dos rafeiros se desenfiassem durante algumas horas de dia, a hora das refeições e a pernoita eram sagradas e após a última refeição esparramavam-se num espaço entre as duas construções que constituíam o quartel, formando uma roda de cães no meio da qual, não sei se por estratégia, se acomodava o Lobo.
Uma noite, estava eu num posto de guarda a trocar umas palavras com o sargento Leote Mendes, quando o Lobo se levantou subitamente e saiu a grande velocidade, seguido com grande algazarra pelo resto da matilha. Atravessaram a estrada e durante algum tempo continuámos a ouvir um barulho infernal, sem conseguirmos compreender o que se estava a passar, até que os latidos cessaram e pudemos vislumbrar o regresso da matilha.
Ficámos preocupados a pensar que a reacção dos cães se devia à passagem de algum viajante, já que era hábito, quando a distância a percorrer era grande, fazerem os percursos de noite a pé enquanto mastigavam noz de cola; e mais preocupados ficámos quando vimos que o Lobo trazia na boca um cantil de plástico cheio de leite. Deduzimos e desejámos que alguém tivesse tido a ideia de desviar a atenção dos cães, das suas canelas para o cantil de leite, largando-o enquanto fugia.
Depois da operação de Samba Silate (*), alguns prisioneiros disseram que nessa noite o quartel estava já cercado e seria atacado, não fora o alarme dado pelos cães, o que os levou a pensar que o factor surpresa já não surtiria efeito.
Felizmente para nós, enganaram-se. Não sei que armas traziam mas a nossa surpresa ia com certeza ser grande. Nunca se soube com certeza absoluta, eu pelo menos não soube, com que apoios esta operação contava do exterior e do interior do quartel, mas, um dia depois, um cabo indígena de Bafatá que reforçava o nosso destacamento, desertou.
Depois deste episódio, que recordamos sempre nos nossos encontros anuais, a matilha começou a desaparecer. Uns nunca mais voltaram ao quartel, outros voltaram doentes, acabando por morrer por envenenamento e nós passámos a redobrar a nossa atenção aos sistemas de vigilância e defesa, que dependiam mais de nós que do equipamento que possuíamos, na altura limitado às G3, granadas e uma metralhadora fixa num ponto estratégico.
Todos os camaradas que estavam na altura em Bambadinca sabem, julgo eu, o que ficaram a dever àqueles animais que, por acção indirecta, acabaram por ser as únicas vítimas, pelo seu natural instinto de guardiães e defensores de um território, que também era seu.
Alberto Nascimento
[Foto acima, à direita: O Cadete, um dos famosos "cães de guerra", da CCAÇ 763, Cufar, 1965/66. Crédito fotográfico: Mário Fitas]
______________
Nota do editor:
(*) Vd. poste de 11 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2930: Bambadinca, 1963: Terror em Samba Silate e Poindom (Alberto Nascimento, ex-Sold Cond Auto, CCAÇ 84, 1961/63)
A Matilha de Bambadinca
por Alberto Nascimento
Alguém apareceu um dia no quartel com dois cachorros recém desmamados, que foram imediatamente adoptados e baptizados com os nomes de Gorco, ele, e Djiu, ela.
Adaptaram-se facilmente ao hotel e, quando começaram a vadiar pelas imediações, devem ter feito grande publicidade porque passado pouco tempo veio outro e mais outro e mais uns quantos, até perto da dezena de rafeiros que, agora bem nutridos, não mostravam vontade nenhuma de voltar à antiga vida de privações e maus tratos.
Mais tarde, o tenente Castro, comandante do destacamento, juntou à matilha um boxer, o Lobo que, pelo seu pedigree, foi aceite como comandante da tropa canina, que passou a segui-lo para todo o lado.
Embora alguns dos rafeiros se desenfiassem durante algumas horas de dia, a hora das refeições e a pernoita eram sagradas e após a última refeição esparramavam-se num espaço entre as duas construções que constituíam o quartel, formando uma roda de cães no meio da qual, não sei se por estratégia, se acomodava o Lobo.
Uma noite, estava eu num posto de guarda a trocar umas palavras com o sargento Leote Mendes, quando o Lobo se levantou subitamente e saiu a grande velocidade, seguido com grande algazarra pelo resto da matilha. Atravessaram a estrada e durante algum tempo continuámos a ouvir um barulho infernal, sem conseguirmos compreender o que se estava a passar, até que os latidos cessaram e pudemos vislumbrar o regresso da matilha.
Ficámos preocupados a pensar que a reacção dos cães se devia à passagem de algum viajante, já que era hábito, quando a distância a percorrer era grande, fazerem os percursos de noite a pé enquanto mastigavam noz de cola; e mais preocupados ficámos quando vimos que o Lobo trazia na boca um cantil de plástico cheio de leite. Deduzimos e desejámos que alguém tivesse tido a ideia de desviar a atenção dos cães, das suas canelas para o cantil de leite, largando-o enquanto fugia.
Depois da operação de Samba Silate (*), alguns prisioneiros disseram que nessa noite o quartel estava já cercado e seria atacado, não fora o alarme dado pelos cães, o que os levou a pensar que o factor surpresa já não surtiria efeito.
Felizmente para nós, enganaram-se. Não sei que armas traziam mas a nossa surpresa ia com certeza ser grande. Nunca se soube com certeza absoluta, eu pelo menos não soube, com que apoios esta operação contava do exterior e do interior do quartel, mas, um dia depois, um cabo indígena de Bafatá que reforçava o nosso destacamento, desertou.
Depois deste episódio, que recordamos sempre nos nossos encontros anuais, a matilha começou a desaparecer. Uns nunca mais voltaram ao quartel, outros voltaram doentes, acabando por morrer por envenenamento e nós passámos a redobrar a nossa atenção aos sistemas de vigilância e defesa, que dependiam mais de nós que do equipamento que possuíamos, na altura limitado às G3, granadas e uma metralhadora fixa num ponto estratégico.
Todos os camaradas que estavam na altura em Bambadinca sabem, julgo eu, o que ficaram a dever àqueles animais que, por acção indirecta, acabaram por ser as únicas vítimas, pelo seu natural instinto de guardiães e defensores de um território, que também era seu.
Alberto Nascimento
[Foto acima, à direita: O Cadete, um dos famosos "cães de guerra", da CCAÇ 763, Cufar, 1965/66. Crédito fotográfico: Mário Fitas]
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Nota do editor:
(*) Vd. poste de 11 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2930: Bambadinca, 1963: Terror em Samba Silate e Poindom (Alberto Nascimento, ex-Sold Cond Auto, CCAÇ 84, 1961/63)
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