1. Vigésimo nono episódio, enviado em mensagem do dia 20 de Novembro de 2012, da narrativa "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177.
Do Ninho D'Águia até África (29)
Maldita “Matacanha”
Eram quase cinco da tarde, o pessoal andava por ali, eram
quase todos veteranos, estávamos na época quente, no dormitório
a temperatura era quente e abafada, ainda bem que não havia
portas, pois havia duas entradas ou saídas, depende do que lhe
queiram chamar, uma ao norte e outra ao sul, mas não corria
nenhuma aragem,
uns andavam
quase nus, só
com uma toalha
suja e encardida
enrolada à
cinta, outros
com os calções
sobre o corpo,
quase ninguém
usava roupa
interior, pois a
experiência
dizia-lhes, que
depois de
andarem durante
um certo tempo
molhados com o
suor e a água da
bolanha, ficavam
com as partes
mais íntimas
cheias de
“rosetas”, que
era umas marcas vermelhas na pele, que cresciam de dia para dia
até ficarem com essas mesmas partes inflamadas, fazendo-os
caminhar com as pernas abertas, e queixando-se de algumas dores
e um desconforto que fazia alguns dizerem:
- Ando com aquela doença, entre as pernas, que na minha
aldeia lá em Portugal, dava nos coelhos, e a que chamavam
“micose”, ou coisa parecida!
Quando isso acontecia, iam ver o Pastilhas, que depois de os
analisar, dizia:
- Abre as pernas, segura no pénis, e fica quieto!
E logo em seguida, ia buscar o frasco da tintura de iodo, e
com um pouco de algodão, pintava as referidas partes, que depois
de uns segundos de acabar com este curativo, o homem começava
aos gritos com dores da forte queimadela que acabava de sofrer
na parte mais íntima do seu corpo.
Então o Pastilhas, dizia de novo:
- Continua a segurar no pénis, e com a outra mão abana com
este bocado de papelão, que a dor vai passar em cinco minutos.
E era verdade, e o bocado de papelão em forma de abanador,
era uma peça de ferramenta que o Pastilhas tinha feito de uma
caixa de remédios, e que lá estava guardado em cima do caixote
dos medicamentos. Passada uma semana, a pele caía, e as
feridas ficavam curadas.
Mas vamos continuar, pois já nos estávamos a desviar do
assunto principal que era andavam por ali.
Era verdade, eram
quase todos veteranos, com os dedos amarelos do cigarro, os
dentes pretos da água e não só, as unhas grandes e pretas
também, o cabelo e a barba grande, o bigode retorcido, que lhes
dava um aspecto de pessoas mais velhas, do que na realidade
eram, já quase todos tinham chorado de angústia e medo, debaixo
de fogo, em emboscadas, conheciam o cheiro do sangue quente e da
pólvora, das munições que naquela altura a sua amada G3 com o
cano em brasa consumia, alguns já tinham marcas no corpo de
estilhaços de granadas, e nos seus ouvidos, já tinha entrado por
diversas vezes o som de tiros e gritos de dor e desespero, que
alguns seus companheiros, feridos de morte lhe pediam, que
deixassem os guerrilheiros em paz, e que lhe dessem um tiro a
eles, pois não suportavam mais a agonia das dores.
O comando a que o Cifra pertencia, ultimamente retardava as
ordens, e só comunicava aos militares umas horas antes de
saírem, e como tal, aparece o furriel miliciano, fumando um
cigarro feito à mão, entra no dormitório, tira o cigarro da
boca, e quase que se queimava com o cigarro nos dedos, pois já
só era uma “pirisca”, mas continuava a segurá-la, e de vez em
quando chupava-a, e no intervalo dizia:
- Já sabem o costume,
saímos às seis da
manhã.
O Marafado, diz:
- Eu não posso,
ando a mancar, por
causa d....
- E não acabou de
falar, pois o Trinta e
Seis, que dormia a seu
lado, e estava sentado
na cama, interrompe e
diz:
- Ele não pode pôr
o pé no chão, tem lá
uma “matacanha”, e não
a quer arrancar.
O furriel, que já tinha acabado de fumar, e preparava-se
para fazer outro cigarro, diz:
- Deixa lá ver essa merda!
E o Marafado mostra o pé, e por baixo de um dedo tinha uma
saliência na pele, como se fosse um típico “calo”, mas com uma
pintinha preta no meio.
O Furriel miliciano, olha para ele e diz, quase a sorrir:
- Marafado, é uma ordem, vai ver o Pastilhas.
E ele lá foi ver o Pastilhas, que ao reparar no pé, logo lhe
diz:
- Porco, tens umas unhas que pareces uma daquelas ovelhas do
campo, toma lá este alicate e corta essas unhas, javardo.
Depois de cortar as unhas, conforme pode, e sentindo-se um
pouco desconfortável, pois as unhas grandes, faziam parte do
conforto dos seus dedos, o Pastilhas, derrama um pouco álcool
nos dedos, e perante a cara de sofrimento do Marafado, diz:
- É uma
“matacanha”,
vamos
arrancá-la.
Vai à
cozinha e
pede um
pouco de pão
e um copo de
leite
condensado
morno, ao
Arroz com
Pão, ele já
sabe, e
traz.
- Anda vai depressa que já é quase noite, e depois não vejo.
Deita o Marafado no chão, em cima de uma capa de camuflado,
que servia para usar quando chovia, coloca-lhe o pão embebido em
leite morno no local da “matacanha”, e passado uns minutos, com
uma espécie de bisturi, começa a cortar a pele, com uma
habilidade tal, que retira uma bolinha forrada de pele, deixando
a marca debaixo do dedo, igual ao formato da bolinha que
retirou, que em seguida queimou num pouco de algodão, embebido
em álcool.
O Marafado, passado dois dias, estava pronto para ir dar o
corpo às balas, com dizia o Curvas, alto e refilão.
Ilustrações: © Tony Borié (2012). Direitos reservados
____________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 20 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10699: Do Ninho D'Águia até África (28): A avioneta do correio (Tony Borié)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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5 comentários:
Caro Tony
Esses problemas não desapareceram quando te foste embora.
Continuou a haver 'lica', 'micose', 'matacanha' e outras 'benfeitorias' com que fomos presenteados.
O tal tratamento da 'micose' com a tintura de iodo, que no meu tempo tinha a referência de "Fórmula 5", dizia-se que era o factor 5 a concentração de iodo, mas agora fico a pensar se não seriam os tais 5 minutos necessários para 'arrefecer'...
Mas acho que não, pois lembro-me que em locais mais previlegiados do que os do mato (Bissau, por exemplo) lembro-me de assistir a rapaziada com tal problema nas virilhas e testículos e com o 'arrefecimento' a ser feito pela aplicação de ventoinha com acção directa sobre a 'zona' o que dava uma imagem bem engraçada, e essa utilização eram bem mais demorada do que os teus tais 5 minutos.
Abraço
Hélder S.
Amigo Tony
Como não podia deixar de ser, a mim também me tocou uma micose, que abrangia uma área considerável. Começei por aplicar o tal 1214, que no fim seria tintura de iodo, talvez com sulfamidas ou outro produto do género. Toda a região era massacrada com as queimaduras da ordem, resultante do 1214, chegando a pele a cair, mas passado um espaço de tempo tudo voltava.
Esta conversa, que não é novidade para ninguém, será para vos contar, que o Fur.Enfº Peixoto (fal), ao receber um novo produto, que era uma bisnaga cinzenta com o nº 444, disse-me para fazer a aplicação e que iria dar um resultadão. Eu à cautela começei por pôr um pedaço muito pequeno na micose, para vêr se ardia, o que não aconteceu. Então, despejei todo o conteudo da bisnaga na mão, e esfreguei por toda a zona, mas passados uns minutos, o ardor começou a ser intenso, a ponto de ter que me deitar no chão do duche, e água com fartura em cima, porque dava a impressão que queimava. De facto aconteceu que passado 2 dias a pele começou a cair, foi remédio santo, daí o velho ditado, O QUE ARDE CURA.
Meus caros camaradas
A dita "micose" tratava-se e trata-se com antimicóticos.
A tintura de iodo era um mero desinfectante que em excesso pode queimar, daí o ardor intenso e a queda de pele.
As condições climáticas e a falta de higiene, principalmente no mato,todos nós sabemos as condições em que vivíamos,levava a que quase todos tivéssemos essa porra da "micose".
Quem não apanhou micose e não ficou apanhado do clima ???..no mato..quem ??'...só se fosse filho de algum "cabo miliciano"...
C.Martins
Pois, micoses ,licas ou frunculoses,era o prato forte da malta em especial no mato.É preciso não esquecer que quase todos os dias a malta percorria os arrozais(bolanhas) e acabava sempre por secar as molhas antes de poder chegar aos aquartelamentos,para pelo menos tomar um banhito.Mas eu creio que a falta de legumes e fruta fresca,alem da falta de carnes frescas eram causadoras de frunculos em especial nas zonas de articulação do corpo.Mas aí eu creio que o nosso Dr.C.Martins poderá dar mais uma achega nesta matéria.Eu enquanto estive no Biambe era um martirizado nestas doenças.
Um abraço
Henrique Cerqueira
Caros Camaradas,
Àcerca das micoses era como já foi dito muito dificil de escapar, pois o molha e seca a roupa no corpinho era uma constante e por vezes não vínhamos sequer à noite para o aquartelamento continuava-se no mato até ao dia seguinte.
Mesmo tirando isso o próprio clima de tão húmido já era propício a que essas coisas acontecessem.
Sobre a matacanha nunca tinha ouvido falar na técnica que o Tony contou a mim avisaram-me durante o curso de enfermagem (um dos meus professores) que era melhor pedir ao ajudante nativo que normalmente havia nas enfermarias pois eles faziam na perfeição e só com dois pauzinhos afiados para o efeito a extracção da matacanha. Por acaso não me lembro de ter havido nenhum caso na minha companhia.
Um grande abraço para todos.
Adriano Moreira Ex-Fur.Mil.Enf. da CART 2412 "SEMPRE DIFERENTES"
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