quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10763: As mulheres que, afinal, foram à guerra (19): O que fazer com a nossa correspondência, estimada em mais de 300 milhões de aerogramas e cartas, enviados e recebidos ao longo da guerra do ultramar ? (Manuel Joaquim / Luís Graça / Alice Carneiro)

1.  Tive ontem a felicidade de receber a seguinte mensagem do nosso amigo e camarada Manuel Joaquim, um dos mais generosos dos nossos grã-tabanqueiros, além de mestre-escola:

Meus queridos amigos, esforçados editores:

Hoje venho com uma ideia que se calhar "é de jerico", como dizem na minha terra. Como estou a fixar, em letra de forma, a minha correspondência de guerra,  lembrei-me de vos questionar sobre o interesse da sua publicação no blogue. 

Sinceramente, para além de mim e dos meus familiares mais queridos, não sei se terá qualquer outro valor para alguém. Creio que alguma da chamada correspondência de guerra, não a minha, poderá ter (tem) algum valor atualmente, mesmo já valor histórico. Tenho a certeza que toda a correspondência de guerra que "sobreviva" terá cada vez mais interesse e valor com o decorrer do tempo, sejam quais forem os temas que incorpore, dos mais simples da vivência diária dos combatentes aos mais "arrebitados" discursos de cariz sociológico e/ou político, tenham muita ou pouca, alguma ou nenhuma qualidade literária,  pois o seu valor não virá da qualidade da escrita mas do seu conteúdo que terá sempre valor histórico mesmo quando se limite a contar o que se comeu (ou não) no dia a dia ou num certo dia.

Anexo as minhas primeiras seis cartas, três minhas e três da namorada que foi depois (e é) minha esposa. Esta deu-me a devida autorização, só me pedindo que o seu nome não ficasse "escarrapachado" no texto. Assim o fiz, também com o meu nome, ficando só as iniciais dos nomes próprios usados.

A publicação destas cartas no blogue é, para mim, coisa secundária. Se acharem interessante, aqui estão.

Um grande abraço para todos, e cada um, cá do Manel





O primeiro poste da I Série do nosso blogue... 23 de abril de 2004... Dedicado à nossa correspondência de guerra. Na época devo ter inflacionado o volume da correspondência: (...) "Em treze anos de guerra, cerca de um milhão de soldados terá escrito mais de 500 milhões de cartas e aerogramas. E recebido outros tantos" (...).

O mais realista é apontar para um total  entre 250 e 300 milhões de cartas e aerogramas, enviados e recebidos. O número de soldados metropolitanos mobilizados paras as 3 frentes (Angola, Guiné, Moçambique) será da ordem dos 800 mil, a que se deverão somar mais 200 mil soldados do recrutamento local. É de admitir que estes escreveriam muito menos, até por que a grande maioria (nomeadamente na Guiné) não sabia ler nem escrever português.

O número de aerogramas disponibilizado anualmente pelo Movimento Nacional Feminino ultrapassava os 30 milhões (32 milhões em 1974, de acordo com o orçamento ordinário previsional do MNF). Admite-se que muitos (talvez um terço) fosse inutilizado, servindo de papel de rascunho... Em 13 anos de guerra, possivelmente a TAP ( e os TAM) deverá ter transportado de (e para) o ultramar, qualquer coisa como 200  milhões de aerogramas, a que  se poderão acrescentar mais 50 a 100 milhões de cartas. No total, 300 milhões, o que me parece uma estimativa, conservadora mais realista, do que os 500 milhões iniciais... (Recorde-se que os aerogramas, uma invenção portuguesa, eram isentos de franquia: porte e sobretaxa aérea; vd aqui um completíssimo texto sobre a sua história).  

Estimava-se em 300 mil o número de madrinhas de guerra. Um em cada três militares deveria ter uma madrinha de guerra, segundo uma sondagem que aqui fizemos em tempos. E todos nós, com raras exceções, nos correspondíamos regularmente com os pais, irmãs e irmãos, esposas, noivas, namoradas, amigas, vizinhas... Em dois anos de comissão, 24 meses, é possível que um soldado metropolitano escrevesse ou recebesse em média um dúzia de cartas e aerogramas por  semana. Arredondando, 300 cartas e aerogramas, enviados e recebidos, "per capita...(LG)

2. Resposta, imediata, do editor L.G. [, foto á esquerda, em 1970, em Nhabijões, Bambadinca]

(i) Eureka!, Manel Joaquim, meu querido camarada!... Ando há 9 anos (!) a pedir para "salvarem" as nossas cartas e os nossos aerogramas, esqueciso no fundo dos nossos baús!...  Aliás, o primeiro poste do nosso blogue, I Série, de 23 de abril de 2004, começou justamente com o título Saudosa(s) madrinha(s) de guerra...

Da I Guerra Mundial há menos de 100 cartas no arquivo histórico militar!... Do meu pai, de Cabo Verde, do tempo da II Guerra Mundial, não tenho nenhuma!... E dos mais de 300 milhões de cartas e aerogramas que eu estimo que se tenham escrito durante toda a guerra colonial (incluindo as da Índia!), quantas se irão salvar ?

Vamos já abrir uma nova série só para ti!... Parabéns pela tua coragem e generosidade!... LG

(ii) Não escrevi cartas nem aerogramas a ninguém.  Limitei-me a mandar algumas fotografias, com breves legendas, aos meus familiares mais próximos, para os tranquilizar: que estava bem, que estava vivo, que estava de saúde!... Hoje, sinto uma culpa imensa!... Na época não tinha namorada, e muito menos madrinha de guerra!... Em contrapartida, mantive, com irregularidade, um "sofrido" diário... Das cartas e aerogramas que recebi da família e dos amigos, perdi o rasto... E sinto-me mal por isso, por não ter acautelado a salvaguarda dessa correspondência... Teria, hoje, seguramente algum valor documental. Eu diria: todas as nossas cartas têm um excecional interesse como para os investigadores da área das ciências sociais e humanas, nomeadamente, da história, da linguística, da antropologia, da sociologia...

Em contrapartida, tenho a sorte de poder ter acesso à correspondência mantida por aquela que haveria de ser (e é) a minha companheira de um vida, a Alice Carneiro, igualmente nossa grã-tabanqueira... Trata-se de algumas centenas de cartas e aerogramas, enviadas (e recebidas) pela Alice... Mais as recebidas do que as enviadas: em boa verdade, das enviadas, só restam as que o mano José, combatente em Angola, guardou e arquivou religiosamente... em Camabatela, norte de Angola. E não são tão poucas quanto isso...

O Zé [, foto à esquerda,] já não se lembra do nº da companhia. Nem parece ter grandes saudades do seu tempo de tropa e de guerra. Sabe apenas que era 1º cabo, operador de transmissões, de  rendição indvidual, e que esteve aquartelado em Camabatela e que andou a guardar os cafezais do norte de Angola, nos já idos anos de 1969/71.

Recebia e escrevia muitas cartas e aerogramas, isso sim. Das que recebeu (dos manos, pais, cunhados, amigos, amigas ...) guardou-as todas, e arquivou-as, uma a uma, por autor e data... Só da mana, Chita,  tem mais de 100, no seu arquivo. Essa coleção é já um hoje um fonte de informação interessante não só para a história da família mas também sobre o quotidiano da guerra em África, e das necessidades e preocupações que os nossos militares deixavam transparecer. 

As saudades da terra eram sempre mais do que muitas, as referências às festas anuais, à matança do porco, às vindimas, ao Natal, etc., eram frequentes. Era isso que fazia lembrar a pátria distante... Nos dois anos que lá esteve, nunca veio a casa, que as viagens eram caríssimas. Fez férias em Luanda, tanto quanto sei.

Ao voltar mais uma vez a Angola, em julho e em outubro passados, e mais concretamente a Luanda, em trabalho, lembrei-me do meu querido cunhado, com quem às vezes falo dos nossos tempos de "meninos e moços"... Quis  fazer-lhe uma pequena surpresa por ocasião do seu 63º aniversário, selecionando algumas das cartas (mais do que aerogramas) que ele mandou à mana Chita, e que felizmente chegaram até nós (apenas umas 20 e tal). Muitas outras ter-se-ão perdido, com o tempo, e as andanças da mana. A Alice já trabalhava na Junta de Colonização Interna (Ministério da Agricultura) e andou por vários sítios,  de norte a sul do país.

Aqui vai então uma pequena antologia de excertos dessas cartas. É também uma homenagem a uma família, de três filhos e três filhas, que mandou dois dos seus rapazes (curiosamente o mais velho e o mais novo) para a guerra: o António, para Moçambique, onde foi gravemente ferido, em acidente com arma de fogo; e o José,  o "caçula", que fez a sua comissão de serviço em Angola, sem "problemas de maior"... Esta seleção da sua correspondência foi já publicada no blogue da família, A Nossa Quinta de Candoz... Que sirva, ao menos, de estímulo para que outros camaradas, da Guiné, seguiam o  exemplo do nosso Manuel Joaquim. (LG)



Angola > > Cuanza Norte > Ambaca > Camabatela > Janeiro de 1974 > Avenida central de Camabatela; ao fundo, a igreja católica. A cidade de Camabatela (ou Kamabatela, como também se escreve hoje ) foi fundada pelos portugueses em 1611, e é sede do município de Ambaca, na província do Cuanza Norte (ou Kwanza-Norte), a leste de Luanda. Foto de Henrique J. C. de Oliveira, Cambatela, 1/1/1974.

Foto: Cortesia de Prof2000 > Aveiro e Cultura > Arquivo Digital


3. Cartas de Camabatela: do Zé Carneiro para a mana Chita (1970/71) > Excertos


Remetente: José Ferreira Carneiro, Caixa postal 150, Camabatela, Angola

(i) Camabatela 19/05/70

Querida mana: Aqui me tens de novo, conversando como estivesses a meu lado. Começo por te desejar óptima saúde na companhia das tuas colegas e de toda a nossa família. 

Já deves ter conhecimento de que estou de novo no destacamento. Cá estou a passar mais 45 dias de férias no mato…

Quanto ao meu castigo, tenho-te a dizer que ficou tudo em águas de bacalhau. O Capitão chamou-me e só me disse que não devia ter feito a troca sem o avisar. Escusas de te preocupar, está tudo bem.

Por hoje é tudo. Recebe do teu mano um xi coração muito forte, adeus até 1971. (...)


(ii) Camabatela 16/06/70 

Querida mana Chita:  Estou a escrever uma carta porque os aeros [aerogramas] chegam a demorar cerca de um mês até chegarem ao seu destino, isto quando não são devolvidos. Estou mesmo muito aborrecido com isto. Pensei agora só escrever cartas, mas de 15 em 15 dias. Assim as cartas só demoram 3 dias a chegar a vossa mão. Tens que escrever é para a caixa postal. Que achas? Assim não repetimos as notícias. Quando receberes carta minha, peço-te que telefones aos pais para ficarem descansados. Está bem assim? 

Já te mandei o nº dos sapatos por 4 vezes e ainda continuas a pedir!.. Isto quer dizer que não tens recebido o correio.

Então como anda a tua saúde? Iniciei a carta sem fazer aquela lenga, lenga de sempre… Quanto a mim, desde já te digo que estou forte e que gozo de boa saúde.

Termino com um xi coração muito apertado do teu mano que te adora. Bjs


(iii) Camabatela 04/07/70

(...) Agora mesmo acabo de receber mais uma carta tua, juntamente com uma encomenda que trazia os sapatos e a camisa. Cada vez as encomendas estão a demorar menos tempo. Comparar com as primeiras que foram enviadas!...

Os sapatos e a camisa ficam-me a matar, só não queria que mos oferecesses. Tens mais em que gastar o dinheiro, mas aceito. Esta não está esquecida!

Já estou de novo em Camabatela, já estava cansado de tanto capim. Não posso dizer mal, porque desta vez engordei 3kg e aqui perco sempre peso.

Faz hoje 11 meses que embarquei em Lisboa, já pouco mais falta do que um ano, e um já se passou!... (...)


(iv) Camabatela 18/11/70

(...) Depois de ter chegado de uma operação que durou 5 dias, aqui estou a dar-te notícias.

Hoje mesmo parto novamente para o mato, onde vou passar o Natal e talvez o Ano Novo. Desta vez calhou-me a mim, o ano passado foram os meus colegas.

Com isto, estou quase a entrar no ano da peluda [, fim da comissão e passagem à disponibilidade]. Cada vez falta menos. Oxalá que este termine sem problemas.

Apesar de ainda não saber o que vou fazer quanto ao meu futuro de vida, não me sinto com ideias de meter o xico….

Por aqui vou ficar, mandando cumprimentos para todos os nossos vizinhos, as tuas colegas, e tu do mano muito amigo, um forte xi coração. (...) 


(v) Camabatela 14/01/71

(...) Aproveito estar uma grande trovoada e chuva para te escrever, porque assim as comunicações não funcionam, tenho que desligar os aparelhos.

A encomenda que mandaste, chegou dois dias depois do Natal. Chegou tudo bem. As castanhas começamos a comê-las e só terminamos quando acabaram. Sabes uma coisa? O bolo Rei não tinha fava!

Já só faltam 7 meses! Isto vai com calma.

Enquanto vós estais aí com grandes nevões, (segundo dizem os jornais), por aqui a temperatura é agradável, só as chuvas é que são esquisitas.

Já estou de novo em Camabatela. Já estava saturado de estar no mato e de ver tanto capim.

Acompanhado duma boa musiquinha, consegui estar contigo no pensamento.

Agora que o temporal já lá vai, tenho que regressar ao trabalho e ligar os aparelhos que já me provocam raiva só de olhar para eles. Tenho que estar em forma.

E assim me despeço com um forte xi coração do teu mano amigo. Adeus e até Agosto ou Setembro. (...)


(vi) Camabatela 15/02/71 

(...) Querida mana, não calculas como eu fiquei ao ler a tua carta e me falavas da matança do porco [, foto à esquerda, Candoz, c. 1980, foto de L.G.] . Aquelas fêveras e os rojões de que falavas. Não continha a minha cabeça e os meus pensamentos. Pareciam o Rio Douro quando traz uma enchente das chuvas. O mano António também me falou do mesmo.

Sabes uma coisa? Estou muito, muito cansado. Andei 3 dias e 3 noites no mato a andar sem poder dormir e ainda carregado com o respectivo rádio. A roupa molhou-se e secou-me no corpo por 3 vezes. Foi por esta razão que te demorei mais a escrever.

Querida mana, quanto ao que vou fazer quando acabar a tropa, o mais certo é eu ir estudar. Sem isso eu não tenho possibilidades de ter um emprego digno. Já falei com o Capelão para me colocar como Perfeito no Seminário, assim já podia estudar e trabalhar. (...) 


(vii) Camabatela 17/05/71

(...) Espero que esta minha carta te vá encontrar de óptima saúde, bem como toda a nossa família.

De facto tens razão em dizer que estou a esquecer-me um pouco de vós, mas não. Nada tem acontecido de grave por cá. Tudo corre pelo melhor.

Não te devia dizer, mas já estou de novo no mato. Esta estadia aqui, será a última para completar a minha comissão.

Não estejas preocupada que eu aqui no mato só tenho como rival o isolamento. De resto tudo é melhor do que na vila de Camabatela.

Quando me falas do que vou fazer quando regressar. Nada te sei dizer, estou a ver tudo muito escuro, mas na lavoura eu não quero ficar. (...).




(viii) Camabatela 14/06/71

Querida mana: Só hoje recebi a tua carta e logo te respondo. Parece impossível que as cartas demorem tanto tempo. Entre tu escreveres e eu receber, chegam a demorar 15 a 20 dias. Chegamos a estar 20 dias sem correspondência o que é muito duro para quem está aqui. As coisas ainda pioram mais quando estamos no destacamento (mato) que chegamos a estar 45 dias. 

Também penso o mesmo que tu, que sou preguiçoso, que já não tenho saudades vossas, etc. etc. mas o que interessa é que só faltam 50 dias para isto acabar.

Vou te contar um segredo: Andei a fazer umas economias para comprar uns presentes para vos levar, mas acontece que um colega que sabia do meu mealheiro, foi lá e roubou-mo. Eram 2.500$00. Este colega foi-me falso e ando muito triste, mas tenho que esquecer. Depois quando eu chegar, te contarei melhor como tudo aconteceu.

Gostava de chegar aí e tu estares ainda de férias, seria bom, mas a tropa é que manda!.. (...) 


(ix) Camabatela 04/08/71

(...) É precisamente o dia que devia terminar a minha comissão e que te escrevo para desta forma estar em contacto contigo.

Aquilo que desejas saber, ainda não é desta. Porque apesar de ter terminado a minha comissão, ainda não chegou o substituto para me render, mas como há falta de pessoal tenho que aguentar. Com a graça de Deus tudo vai acabar bem.

Desta vez a minha carta levou pouco tempo a chegar aí. Nesse mesmo dia escrevi também a mana Nitas.

Desculpa não escrever mais, mas estou cheio de sono.

Um forte abraço de saudades do teu mano Zé (...)


4. Reproduz-se,por fim, uma das 100 cartas (e aerogramas) que a mana Chita mandou ao mano Zé quando ele fez 22 aninhos... Ele, lá longe, no Norte de Angola, em Camabatela, para onde a Pátria o chamou, entre 1969 e 1971, uma eternidade...Ela já a trabalhar, mas ainda a viver em Candoz, na casa dos pais... O meu obrigada ao Zé por ter arquivado todas as cartas e os aerogramas que a família e os amigos lhe mandaram!... Tudo direitinho!...





Marco de Canaveses > Paredes de Viadores > Candoz > Quinta de Candoz > 21 de outubro de 2012 > O Zé Carneiro, na véspera de completar 63 anos, apanhando sentieiros (cogumelos).

Foto: © Luís Graça (2012). Todos os direitos reservados.


Candoz 9.9.70

Querido Mano:

Após algumas horas terem passado do teu aniversário [, ontem, dia 8,], aqui estou a contar-te como o passámos.


Como já há 6 anos que lá não [ ia, à festa do Castelinho, ], este ano sempre me decidi e fomos, eu, o pai, a Rosa, o Quim, António e Graça. Fomos de manhã e chegámos à noite. Para te dizer que gostei muito, isso não. Sabes que só era alegria quando fazíamos as viagens a pé. Agora ninguém o faz e portanto deixa de ter aquela alegria sã como dantes. Isto é a minha opinião!... Mas julgo que a dos outros será a mesma.

Assisti à Santa Missa no adro e depois do almoço fui para o penedo onde permaneci até vir embora. Não estava calor, pois de manhã tinha chovido, portanto não fazia pó. Fomos todos à capela rezar por ti e assim se passou o dia. Não andava muito contente mas isto são problemas de 'amor'. E também por que estou muito magra, depois que vim de Lisboa já emagreci ainda mais 4 kg. 

Também te quero dizer que hoje mesmo recebi mais uma carta tua. Até que enfim te decidiste a escrever-me. Acredita que andei uns tempos chateada, mas já passou.

Quanto às fotos realmente tens razão. Eu tinha uma série delas tiradas em Pegões, e ficaram de mas mandar, mas até hoje ainda nada apareceu. Até eu estou a ficar aborrecida, mas o remédio é ter paciência. Quando me for possível, eu tas mandarei.

Neste momento estou a escrever-te do consultório médico. Vim com a mãe, vamos ver o que diz o médico. Não te aflijas porque [ela] anda bem, o médico é que quer ver se está melhor.

Quanto às uvas, para já o preço de 2$80 o kg, não é mau de todo mas a s vindimas só podem ser feitas a partir do dia 28. Isso é que será pior e mais ainda se agora não parar a chuva, então teremos tudo podre.

Por hoje é tudo, resta-me finalizar com um abraço da família Barbosa e meninas, cumprimentos dos vizinhos, beijinhos dos pais e da tua mana uma xi-coração de amizade. Maria Alice.

PS – Escreve para casa porque, embora trabalhe todos os dias, venho cá dormir.



5. O projeto  FLY – Cartas Esquecidas  (1900-1974) (Centro de Linguística da Universidade de Lisboa)

Recorde-se que a  Alice disponibilizou a sua coleção de cartas e areogramas da guerra colonial (cerca de três centenas e meia) para um projeto de investigação, chamado FLY. Todos os documentos foram devidamente digitalizados, sendo depois devolvidos à proprietária (e, no caso das cartas do mano, fiel depositária). Cito aqui a investigadora e doutoranda Leonor Tavares, da Equipa FLY, do Centro de Linguística da Universidade de Lisboa:

(...) "O projecto FLY - Cartas Esquecidas (1900-1974) é um projecto que procura recolher, digitalizar e editar cartas do século XX dos contextos de prisão, exílio, guerra (colonial e mundial) e emigração. Este projecto continua o projecto CARDS - Cartas Desconhecidas (1500-1900) que já conta com 2000 cartas transcritas. Os dois projectos estão neste momento parcialmente disponíveis no site http://alfclul.clul.ul.pt/cards-fly/.

"O objectivo do projecto FLY é recolher e editar 2000 cartas dos contextos referidos, sendo que se estipulou um total de 700 cartas para o contexto da guerra colonial. Este arquivo digital (composto pelas 2000 cartas do projecto CARDS e as 2000 do projecto FLY) estará disponível para investigadores de várias áreas (principalmente as áreas da Linguística, da História e da Sociologia), para que os documentos (as cartas) sejam imortalizados como objectos históricos de grande relevância linguística. Os estudos que podem ser feitos a respeito deste tipo de documentos compreendem, entre muitas outras hipóteses, aspectos relacionados com a sintaxe, a fonologia, a pragmática, a história cultural e/ou social e aspectos da sociologia das migrações, das desigualdades e classes sociais.

"O projecto FLY compromete-se a omitir todos os dados pessoais dos intervenientes nas cartas, nas transcrições e nas imagens disponibilizadas on-line. (...)".


Recolha de cartas portugueses do Século XX (1900 a 1974) > Apelo

“Se guarda em sua casa cartas particulares e deseja que ela sejam dignificadas enquanto objeto de conhecimento, por favor contacte os investigadores do projeto FLY 1900-1974 (Cartas Esquecidas).”

Rita Marquilhas
Centro de Linguística da Universidade de Lisboa
Avenida Professor Gama Pinto, 2, 1649-003 Lisboa
Telefone : 21 790 49 57
Fax : 21 796 56 22

Email : fly@clul.ul.pt
Endereço do site : http://alfclul.clul.ul.pt/cards-fly/

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Nota do editor:

Último poste da série > 1 de julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8494: As mulheres que, afinal, foram à guerra(18): As madrinhas de guerra e a Cecília Supico Pinto,precursora do Facebook (António Matos)

11 comentários:

Luís Graça disse...

No sítio Clube Filatélico de Portugal (CFP), há um interessantíssimo artigo sobre de Eduardo e Luís Barreiros sobre o aerograma,o MNF e o SPM

Terça, 06 Outubro 2009 14:37


Guerra Colonial 1961-1974
Aerogramas Militares
O Movimento Nacional Feminino e o Serviço Postal Militar

Alguns excertos:

(...) Cerca de um mês e meio após a formação do MNF [, em 28 de abril de 1961,] começaram as iniciativas desta instituição para a concessão de isenção de franquia postal, para os militares expedicionários e suas famílias, o que veio a ser concretizado com a publicação da Portaria 18 545, de 23 de Junho de 1961(Fig.4) assinada pelo Ministro das Comunicações e do Ultramar." (...)

(...) Estabelecia a referida portaria, que ficavam isentos temporariamente do pagamento de porte e sobretaxa aérea, as cartas e bilhetes postais com correspondência de índole familiar, que fossem expedidos para qualquer ponto do território português, pelo pessoal dos três ramos das forças armadas ou das corporações militarizadas destacadas nas Províncias Ultramarinas, bem como, os expedidos do continente e ilhas adjacentes para aquele pessoal, pelos seus familiares e madrinhas de guerra. (...)

(...) Com o acordo entre a Administração Geral dos Correios, Telégrafos e Telefones (CTT), Correios, Telégrafos e Telefones do Ultramar (CTTU) e o Secretariado Geral da Defesa Nacional, foi por este distribuída a circular número 1956 / B, de 4 de Agosto de 1961, que regulamentava o uso dos aerogramas.

Seriam impressos carta, constituídos por uma folha de papel, com o peso máximo de três gramas, dobrável em duas ou quatro partes, de modo que as dimensões resultantes da dobragem dos aerogramas não excedessem os limites máximos de 150 x 105 mm e mínimo de 100 x 70 mm.

Na frente, reservada às indicações do destinatário, seriam impressas as seguintes inscrições:
- no ângulo superior direito doaerograma inscrição “CORREIO AÉREO / ISENTO DE PORTE E DE / SOBRETAXA AÉREA / Portaria nº. 18 545 de 23-6-61”
- em baixo, “É PROIBIDO INCLUIR QUALQUER OBJECTO OU DOCUMENTO O DEPÓSITO NO CORREIO É FEITO EM QUALQUER ESTAÇÃO DOS CTT ”.

No verso, seriam impressas indicações referentes ao remetente. Neste espaço era obrigatório indicar, a seguir ao nome do militar, o seu posto e número. (..)

(...) Para fazer face às despesas resultantes da emissão dos aerogramas, teve o MNF, a contribuição inicial de várias entidades patrocinadoras das quais se destacam: Banco de Angola, Estaleiros Navais de Viana do Castelo, José Manuel Bordalo, A Lusitânia, Companhia Portuguesa de Pesca, Manuel Rodrigues Lago, Sacor, Cidla, Companhia Colonial de Navegação, Sociedade Central de Cervejas, Banco Borges e Irmão e Sociedade Concessionária da Doca de Pesca. Algumas destas firmas, tiveram frases publicitárias impressas, logo nas primeiras emissões de aerogramas editados pela Orbis. Esta publicidade, repetiu-se nos aerogramas editados em Agosto de 1962, Janeiro de 1964, Setembro de 1965 e Julho de 1966. (...)

(...) No Continente, a aquisição dos aerogramas era feita ao preço unitário de 20 centavos. Os aerogramas podiam ser vendidos ao público na sede do Movimento Nacional Feminino, Rua Presidente Arriaga nº 6, 1º em Lisboa, nas Delegações Distritais e Concelhias do MNF, nas Juntas de Freguesia, no Serviço Nacional de Informação (S N I), nos Postos de Turismo do aeroporto e das estações marítimas de Alcântara e da Rocha do Conde de Óbidos e em todas as Juntas e Comissões Municipais do Turismo do País e também estavam disponíveis em muitos estabelecimentos comerciais que os vendiam, sem aumento de preço, sendo a contrapartida pela venda, saldada em aerogramas. Sabemos que, em alguns bairros mais carenciados, os aerogramas chegaram a ser distribuídos gratuitamente. (...)

(Continua)

Anónimo disse...

Camarada Manuel Joaquim. Gostei, manda mais e quantas saudades sentimos ao recordar. No fundo embora estejamos menos jovens, foi o que vivemos e isso ninguém nos pode tirar. Abraços do
Veríssimo Ferreira

Anónimo disse...

Queridos amigos

Talvez que esta ideia do Manuel Joaquim, me dê coragem para publicar as cartas que enviei a um afilhado e que ele também guardou religiosamente.
Acho-as tão insignificantes, que me tenho retraído de as publicar, contudo tenho material desse tempo muito interessante, como o aviso do Rádio Club Português a informar a mãe da mensagem de Natal, do referido militar,jornais de Companhia ou Batalhão e a última carta que ele escreveu à mãe a partir de Angola.
Até a mim me causa emoção a lembrança desse tempo, mas garanto-vos que á mistura há um voltar atrás no tempo que me leva à Juventude e como muito bem dizemos "recordar é viver"!

Parabéns ao Manuel Joaquim por ter dado o "Pontapé de saída"
Um destes dias vão as minhas, ou pelo menos uma...

Saudações amigas para todos os amigos do Blogue, com quem partilho as lembranças desse tempo.

Felismina

Maria Alice Ferreira Carneiro disse...

Filomena, força!

Anónimo disse...

A foto de Camabatela de 1974, com asfalto, já tinha a mesma disposição urbanística em 1961, mas sem asfalto.

Quando a UPA iniciou o terrorismo no norte de Angola, também atingiu aquela zona.

Apenas se chegava lá, indo de Luanda em viatura, de Abril a Outubro, no tempo seco.

No tempo das chuvas, só para quem tivesse paciência e tempo indefinido.

Em 1963, acampei com outros colegas e alguns "contratados indígenas" junto daquela igreja que se vê, sem protecção militar, tinha saído da tropa naquele ano em Janeiro.

Era uma loucura, mas também já passei por tantas, mesmo na Guiné e no Rio de Janeiro que não adianta fugir, quando vier que venha.

Mas quando estive em Cambatela, não me lembro que já houvesse quartel.

Cumprimentos

Antº Rosinha

Luís Graça disse...

Obrigado, Rosinha, vou transmitir essas tuas informações ao "caçúla" do meu cunhado... Já o desafiei a voltar a Angola! Qual quê, nem pensar!...Não tem a mais leve saudade desses tempos!...

Antº Rosinha disse...

Luís, tenho imagens na minha memória de ver quartéis em zonas enormes semi-despovoadas, e companhias dentro do arame farpado que nem para fora das casernas saíam para formaturas, exercícios físicos, e simples passeios ao longo da picada ou das tabancas.

Lá sairiam para algumas patrulhas, tão entediantes como a pasmaceira da caserna.

Como eu conhecia e detestava a farda e o quartel, tinha mesmo um asar com os capitães por causa de um desleixo meu que vou morrer com ele, compreendo o desespero daquela vida vazia.

Em Angola foi esse o maior tormento, o tédio.

Eu compreendo a quantidade de bate-estradas que se escreveram, e que não ficassem saudades a quem lá passou aqueles dois anos.

Estava também aí, a má preparação dos nosso comandantes que não viam ou não se preocupavam em amenizar esse tal isolamento.

Havia as sedes dos batalhões em cidades como Salazar, (Dalatando) ou Uige, não sei, onde pertenceria Camabatela por exemplo, em que ou por secções ou pelotões se poderia mudar de ambiente por fins de semana ou três ou quatro dias.

Em Angola isso era fácil, mas sei que não funcionava.

Fizemos a guerra à nossa maneira.

Antº Rosinha disse...

Luís, tenho imagens na minha memória de ver quartéis em zonas enormes semi-despovoadas, e companhias dentro do arame farpado que nem para fora das casernas saíam para formaturas, exercícios físicos, e simples passeios ao longo da picada ou das tabancas.

Lá sairiam para algumas patrulhas, tão entediantes como a pasmaceira da caserna.

Como eu conhecia e detestava a farda e o quartel, tinha mesmo um asar com os capitães por causa de um desleixo meu que vou morrer com ele, compreendo o desespero daquela vida vazia.

Em Angola foi esse o maior tormento, o tédio.

Eu compreendo a quantidade de bate-estradas que se escreveram, e que não ficassem saudades a quem lá passou aqueles dois anos.

Estava também aí, a má preparação dos nosso comandantes que não viam ou não se preocupavam em amenizar esse tal isolamento.

Havia as sedes dos batalhões em cidades como Salazar, (Dalatando) ou Uige, não sei, onde pertenceria Camabatela por exemplo, em que ou por secções ou pelotões se poderia mudar de ambiente por fins de semana ou três ou quatro dias.

Em Angola isso era fácil, mas sei que não funcionava.

Fizemos a guerra à nossa maneira.

Anónimo disse...

Eu devo ter sido (presunção minha) dos que menos gastou em aerogramas.

Não tinha "madrinhas de guerra" e era parco na escrita dos ditos,aliás escrevia vários todos seguidos que mandava quando o "rei fazia anos" um de cada vez, que coincidia com o aniversário de sua majestade,isto é quando havia "correio"..uma vez por mês ou mais.

Mentia descaradamente à minha Mãe, aquilo era do melhor..ia à praia comia lagosta e outras iguarias coiso e tal...só que um dia cá na dita metrópole alguém se lembrou de dar notícias da guerra na Guiné e..e.." No sul da Guiné em Gadamael os terroristas atacaram o aquartelamento e blá...blá.. a nossa artilharia ripostou...blá....blá..neutralizando inimigo....
Gadamael ???...nossa artilharia ??
Ai que é o meu rico filho coitadinho.. o que é que aqueles malandros fizeram ao meu filho.
Cambada.. destruíram em minutos a as minhas mentiras piedosas à minha Mãe..foi então que gastei muito aerogramas para a tranquilizar, mas como de parva não tem nada,julgo que não consegui.

Camarada Rosinha

Com que então tédio...

Que inveja.. nós lá por Gadamael não tínhamos tédio nenhum..enfim é a vida

C.Martins

Antº Roinha disse...

C. Martins e Luís, pisei campos minados na Guiné, inadvertidamente bem entendido.

Nas circundâncias do aeroporto de Bissau e da estrada Vila Formosa-Buba.

Não rebentei nenhuma, por acaso e eram várias.

Estas eu ouvi rebentar com Buldozers posteriormente, talvez tenha pisado outros campos minados sem saber.

De Angola, e Moçambique poucos entendem o abandono porque não passaram tantos anos como eu na Guiné, 13 anos.

Como só agora me dedico à "literatura", talvez a palavra "tédio", possa ser ofensiva, porque houve muitos que morreram, mas atrevo-me a usar outros termos com "alergia" àquilo tudo, brancos, pretos, calor e mosquitos, isolamento e bebedeiras, se lermos Lobo Antunes.

Mas isto escrevo eu, irresponsável desde "pequenino".

Cumprimentos

Henrique Cerqueira disse...

Para mim o Aerograma,tinha uma grande vantagem em relação á carta envelope normal.É que no aerograma havia maior possibilidade de enviar informações que o Estado(PIDE/DGS)considerava de teor político e assim os sensurava.Tinha que haver o cuidado de colar bem as margens.Assim os sensores tinham uma maior dificuldade em violar o aerograma e como eram aos milhares , havia que contar com a "burrísse perguiçosa"dos tais indeviduos.Este foi um conselho dado por um agente da DGS que na altura estava em Bissorã.(era um novato e ainda com as ideias pouco contaminadas).Aliás quando o tive de acompanhar a Bissau no pós Abril e sobre detenção tive mais uma vês a possibilidade de veridicar que o indeviduo politicamente era mesmo um pouco "inocente".Ou seja era mais um "recrutado"pelo objectivo monetário e não político.Eu senti na pele essa pressão de recrutamento um pouco antes do de Abril.Felizmente resisti conforme pude,pois que até ameaças de repatriamento da familia para a metrópole eu recebi.Como já disse eu tinha a mulher e filho comigo em Bissorã nos ultimos nove mêses da comissão.
Bom um abraço a todos e viva o "Aerograma"que até era de borla.
Henrique Cerqueira