Vigésimo sexto episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66.
Companheiros, isto não é fácil, pelo menos na nossa
idade, por quê? Porque quase todos nós, quatro, cinco
horas da manhã, já estamos acordados, lá vem a guerra,
no nosso caso o aquartelamento de Mansoa, e aí, já a
coisa se torna mais fácil, já acordados, bebemos um
pouco de sumo de laranja, mas por poucos minutos, pois
o nosso pensamento volta a adormecer, o sonho continua,
não sabemos se a dormir ou despertos, mas, o cenário
repete-se centenas de vezes, estamos sentados, quase
nus, numa cadeira feita da metade de um barril de vinho,
temos uma cerveja quente, na mão, o sol, que foi tórrido
durante o dia, está a pôr-se, para o lado do rio, até
podemos ver aquele reflexo amarelo avermelhado, um
pouco acima da água da bolanha, os mosquitos zumbem
à nossa volta mas não mordem, pois a pele já está
“africana”. O Curvas, alto e refilão, não pára de dizer
asneiras, tu, companheiro, estás agarrado à leitura da
metade da terceira página, enrugada e um pouco rota, de
um jornal com data de há um mês, estás encostado
à esquina da porta, sem porta, da entrada daquele maldito
dormitório, onde estão uns tantos camuflados a secar, por
cima dos mosquiteiros, sujos de suor e lama, entre outras
coisas, por ali cheira a tudo menos a “esperança”. O
“Mister Hóstia”, que era aquele militar muito disciplinado,
educado e religioso, vem recomendar-te, com um ar muito
delicado, para leres aquele capítulo da Bíblia, onde
recomendam qualquer coisa que nós não ouvimos bem,
mas ao sair do dormitório, talvez sem dar por isso, dá-te
um encontrão, que tu não gostaste, pois com o
movimento rasgaste mais um pouco da metade da folha
do jornal e, logo lhe respondeste, com um, “oh cara..., já
não vês bem”.
Nós, com um sorriso maroto, começámos a
contar a história, naquela linguagem de combatente, sem
aquelas palavras e frases modernas, que ninguém
entende, história esta, que lemos não sabemos onde, mas
muitos companheiros, como o Setúbal, o Marafado, o
Pastilhas, o Trinta e Seis, mesmo o Mister Hóstia, que veio
muito sorrateiramente colocar-se ao nosso lado, claro,
com a bíblia na mão, a mostrá-la, e também o Arroz com
Pão, que era o dedicado cabo do rancho, também
veterano, que sempre lhes arranjava algo para comerem,
quando saíam para combate, para irem entretendo o
estômago, que não fosse ração de combate, que alguns
diziam lhe dava a volta aos intestinos, que na linguagem
local era, “panga bariga”, logo se vieram colocar ao nosso
lado, para a ouvir, portanto, começámos a falar.
Cá vai:
- Ouçam bem, nada há a fazer, pois a nossa fama já vem
de longe, talvez por volta do ano de 1617, está-nos no
sangue, éramos e, talvez ainda hoje sejamos assim,
queremos ser os melhores, os primeiros, os inovadores, ir
lá à frente, sem quase nunca prever as consequências.
Neste momento, o Curvas, alto e refilão, manda-nos calar,
com uma linguagem universal, rude, que quase todos nós
conhecemos, mas nós continuámos a falar, cá vai.
- Vejam lá que um tal português, nosso antepassado, de
nome Luís Mendes de Vasconcelos, fazia, não sabemos a
mando de quem, aquelas incursões na África Austral e, de
uma dessas vezes, já uns anos depois, (pois aquilo por
ali, naquele tempo, era só escolher os que tinham
aspecto mais saudável e melhores condições físicas e,
carregar para bordo), talvez acompanhado pelos homens
ao seu mando, também não sabemos se eram
marinheiros ou piratas, invadiu a aldeia de N’dongo, em
Luanda, Angola, carregando 60 cativos a bordo do navio
negreiro São João Baptista, presos a ferros, homens e
mulheres, foram enviados para o porto de Vera Cruz, no
México. Os ingleses, holandeses, dinamarqueses e franceses, que
por aquela altura se consideravam os donos do mar e das
ilhas de uma região a que chamavam e ainda chamam
“West Indies”, que quer dizer mais ou menos Índias
Ocidentais, mas que não têm nada a ver com a Índia, que fica
noutro continente, pois esta, é uma região da Bacia do
Caribe e Oceano Atlântico Norte, que inclui as muitas
ilhas e nações insulares das Antilhas e do arquipélago
Lucayan, dizem até, que a culpa foi de um tal Cristóvão
Colombo, que na sua primeira viagem às Américas,
andando por ali a navegar, pensando que tinha chegado à
Índia, lhe começou a chamar esse nome, e daí, os
europeus de então, começaram a chamar-lhe Índias
Ocidentais, para as diferenciar das ilhas que existem na
verdadeira Índia, que são na região do sul e sudeste da
Ásia...
Interrompo, só para dizer que o Curvas, alto e refilão, já
me está a olhar de lado e a fazer gestos com a garrafa da
cerveja vazia, vamos mas é continuar, cá vai a
continuação.
- Esses tais Ingleses, holandeses, dinamarqueses e
franceses, andavam por ali “à pesca”, principalmente dos
navios portugueses ou espanhóis, pois sabiam que para
cá traziam cativos africanos e, para lá levavam ouro, prata
ou especiarias e, quando o marinheiro ou pirata, também
não sabemos ao certo, que lá ia em cima, na vigia do
navio, White Lion, (Leão Branco), a que também chamavam
“The Flying Dutchman”, que quer dizer mais ou menos, “o
holandês voador”, gritou com quanta força tinha nos seus
já cansados e doentes pulmões, (pois a água potável, já
estava racionada a bordo, já ia para duas semanas), para
o seu capitão, um tal John Jope, e disse, “Portuguese ship
to port, should bring slaves”, que quer dizer mais ou
menos, “navio português a bombordo, deve trazer
escravos”!
O “Setúbal”, que por sinal era nosso companheiro e
amigo, que usou o equipamento camuflado que nos foi
distribuído e, ia para as matas e bolanhas, naquele
camuflado, já coçado, com as mangas cortadas, levava
sempre um “lenço tabaqueiro”, que comprou na loja do
Libanês, pendurado no cinto, dizia-nos ele, que era para
lhe dar sorte, onde também ia o máximo de carregadores
possível assim como uma granada, às vezes duas, que
lhe eram distribuídas antes de sair, alguns também
levavam uma faca bastante afiada, com uma protecção de
cabedal, colocavam os restos das meias, que lhes saíam
das botas, algumas rotas, por fora das pernas das calças,
interrompeu-nos, para dizer, para não darmos mais
“música”, mas continuámos a falar, cá vai.
- Não foi preciso mais nada, junto com seu assistente, o
piloto Inglês Marmaduke Rayner, organizaram um ataque,
unindo forças, também não sabemos se era um ataque
de marinheiros ou um ataque de piratas, mas o certo é
que quando se depararam com o navio português, São
João Baptista, nessas águas do “West Indies”, atacaram-no
e roubaram-lhe toda a sua carga, incluindo os africanos,
colocando-os sobre o tal navio Leão Branco, que chegou
a Old Point Comfort, que é hoje um lugar histórico na
península do estado da Virginia, nos USA, em 20 de
agosto de 1619, deixando ali, só 20 dos 60 cativos.
Tivemos outra interrupção, desta vez era o “Trinta e Seis”,
o tal soldado que era baixo e forte na estatura, parecia de
facto uma “bola”, passe o termo e, quando chamavam por
ele, diziam, Trinta e Seis, rola para aqui, ou, o Trinta e
Seis, não caminha, rola, o que ele nesse momento
mostrava aquele dedo da mão esquerda, muito direito
para cima, denunciando um gesto erótico, dizendo-nos,
para “cantarmos” e, não falarmos, mas nós continuámos
a falar, cá vai.
- E por quê só 20 cativos? Porque os outros 40, quando o
tesoureiro do navio Leão Branco, que chegou cerca de
quatro dias depois os tentou negociar como troca, para o abastecimento do
navio, as negociações não foram aceites, houve
mesmo tentativa de luta, então, o capitão ou pirata,
também não sabemos ao certo, do navio Leão Branco,
talvez zangado, levou toda a sua carga humana,
condenando os cativos, não às praias ensolaradas de
Bermuda, mas para suas plantações infernais, onde
nunca mais se ouviu falar deles. Sabem qual era o preço
para a troca destes seres humanos? Era única e
simplesmente, água e milho. Falando agora dos outros 20 angolanos, que ficaram em
Old Point Comfort, onde dois deles, ou seja, Antonio e Isabella,
que receberam nomes cristãos, (nomes que lhe foram
dados, como chamamos aos nossos animais de
estimação), foram negociados com o capitão William
Tucker, para trabalhar na sua plantação e, talvez para
mais qualquer coisa, onde, quatro anos mais tarde,
Antonio e Isabella se tornaram os pais do primeiro filho
preto, escravo, cujo nascimento foi oficialmente
documentado na América Colonial. O nome que lhe foi
imposto era William Tucker, também o nome do homem
que escravizou seus pais e, uma terceira pessoa
identificada, a quem foi dado o nome de Pedro. Os
restantes 17 não tiveram nome, foram trocados por
produtos adicionais para o governador George Yeardley e
Abraham Piersey, que os obrigou a trabalho em
plantações ao longo do rio James, próximo de onde é
hoje a cidade de Charles City, no mesmo estado.
Neste momento, aparece o “Furriel Miliciano”, que
adorava um cigarro feito à mão, e diz, “amanhã, às cinco,
normal equipamento, só a primeira secção, não
esqueçam de levantar as granadas ainda hoje”.
Ainda bem que a nossa esposa e companheira nos deu
um abanão e acordou, não fazendo muita diferença, pois
a história tinha chegado ao fim. E era verdadeira.
Tony Borie, Julho de 2015
____________
Nota do editor
Último poste da série de 12 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14867: Libertando-me (Tony Borié) (25): Depois da guerra
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário