3 anos nas Forças Armadas (3)
Cacine
E passamos uma semana em Bissau. Aqui fizemos alguns patrulhamentos nocturnos para nos irmos ambientando ao terreno. Dos Açores ao Continente português a maneira de ser e viver era muito diferente mas muito mais era em África relativamente ao Continente. Mundos diferentes.
Em Bissau ouviam-se histórias tenebrosas de mortes, ataques, bombardeamentos, emboscadas, as mais diversas operações no hospital e sei lá que mais. Mas vivia-se intensamente a vida. A promiscuidade era enorme. A vida dos militares na retaguarda era um luxo. Pobres dos que estavam a chafurdar na frente de combate. Em breve iria saber isso o que era. O que me aconteceu até aqui foi encontrar um oásis no deserto. Daqui por diante iria deixar o oásis e entrar no deserto. Quase dois anos me esperavam na frente de combate. Não fazia a mínima ideia do que me esperava.
Em Bissau, 1970
Não me lembro de muitos pormenores mas recordo-me de estar numa LDG (lancha desembarque grande) rumo a Cacine e penso que de noite. Entramos no rio Cacine onde as águas se misturavam e depois de estudadas as marés para podermos desembarcar na margem esquerda onde estava sediado o quartel de Cacine. Ao longo dos cerca de dois anos que ali permanecemos os nossos abastecimentos vinham por mar nestas lanchas.
LDGs
Cacine
Fomos render a Companhia de Caçadores 2445 em Maio de 1970.
Cacine era o último reduto do Sul da Guiné onde estavam tropas portuguesas tendo como segurança na retaguarda o lugar de Cameconde, havendo mais a norte dois quartéis, Gadamael e Guileje, onde existia o corredor da morte, corredor esse que dava entrada ao armamento do PAIGC da Guiné Konacry para o interior da Guiné Bissau.
Logo à saída do quartel havia as habitações dos residentes de Cacine para mais perto de Cameconde existir ainda outra povoação, a Tabanca Nova. Entre Cacine e Cameconde com paragem na Tabanca nova fazíamos o trajecto diário, picando o caminho a fim de detectar alguma mina. Era necessário abastecer Cameconde e manter seguro esta picada. Além de cada um estar armado acompanhava-nos as “Daimlers”, Unimogs e a GMCs com sacos de areia como lastro. Todos os meses havia a mudança de pelotões de Cacine para Cameconde e vice-versa.
O lugar de Cacine situado na margem esquerda do rio Cacine era um lugar aprazível e não muito longe do mar. As marés eram muito acentuadas e como tal para navegar neste rio havia que ter em conta as marés. Fora do quartel e na margem do rio havia praia da qual desfrutamos bons momentos. Pena é a guerra ter condicionado o dia-a-dia destas populações que bem podiam desfrutar do seu modo de vida peculiar.
O pôr-do-sol era lindo. Em contraste a vida dura que a população levava derivado aos condicionalismos no terreno imposto pela situação militar portuguesa.
Este Unimog tem uma história que se passou com ele ao ficar uma noite na praia devido a não se conseguir tirá-lo pois as rodas enterraram-se na areia. Seria necessário a GMC para o puxar. E porque isso não aconteceu nesse dia não sei. O que me lembro é que a maré, quando encheu, provocou um curto-circuito no sistema eléctrico do carro e com o movimento das águas a luz começou a acender e a apagar. Isto durante a noite. Uma das sentinelas ao aperceber-se desta alternância de luz começou a disparar. A malta foi logo para os abrigos e foi o descarregar de uma tensão que se vinha acumulando duma notícia que iríamos ter um ataque aos arames. As armas desenferrujaram-se, a tensão desapareceu e tudo voltou ao normal no dia seguinte.
Nestas margens do rio a população apanhava as tão saborosas ostras com as quais nos deliciávamos. Eram bem graúdas. Era uma maneira de enriquecer o PIB local. A pesca era outro meio de sobrevivência. A caça fazia parte do modo de viver e lembro-me bem da carne do animal “monte” que era bem saborosa. A mancarra (amendoim) era outro produto.
A praia era um lugar para mitigar a solidão nestas paragens.
A vertente religiosa era bem acentuada onde em grupo ou em individual a oração fazia parte da vida. Um factor mais forte pesava na religiosidade que era a situação da guerra. Nos tempos difíceis o ser humano agarra-se a algo para além do que é material pois a impotência do humano perante os acontecimentos leva-o a pensar no sentido da vida.
Capela de Nossa Senhora de Fátima
A Capela de Nossa Senhora de Fátima estava ali para nos receber em grupo ou em particular, até os mortos que vinham de dois quartéis mais acima, Gadamael e Guileje. E foram muitos. O Carapeta de tanta pancadaria que apanhou teve que ser rendido mais cedo. Lembro-me dum capitão, de nome Ascensão (penso), dum desses quartéis ter sido morto numa emboscada. Eram notícias que nos congelavam as veias.
Mesquita
Por outro lado a população que vivia ao lado do nosso aquartelamento era muçulmana e como tal aprendia a sua religião e costumes. E tinham a sua mesquita. Com a sua conjuntura social própria o encarregado de educar as crianças na religião muçulmana reunia-as e sentadas no chão aprendiam o Corão.
Na medida em que o tempo ia passando as saudades das notícias dos nossos entes queridos aumentavam e os aerogramas (envelopes-carta distribuídos pelo MNF) funcionava como meio de comunicação. Mas nem sempre o correio vinha directamente para o nosso quartel mas sim para outro ao lado e mais acima rio, Gadamael. Por isso era necessário lá ir de sintex e saber das marés porque só quando estava cheia era possível atracar no porto. Uma vez a maré já estava em posição avançada de baixar mas mesmo assim aventuramo-nos a lá ir ficando para o outro dia o regresso.
Lembro-me que quando lá chegamos a maré já estava em fase adiantada de abaixamento e por isso tivemos que arrastar o sintex até lugar seguro, amarrá-lo e tiramos as botas, arregaçamos as calças, enterramos os pés no lodo e chegamos a terra firme. Cortei a sola dos pés penso que por causa das conchas das ostras.
Na altura não medíamos a dimensão do perigo que nos rodeava pois a conjuntura política estava longe da nossa noção real da Guiné. Dizia-se que do outro lado da margem do rio, que ficava bem afastada, era mato denso. Portanto o perigo de sermos atacados dali não se avizinhava na nossa realidade. Cacine era o último reduto do sul rodeado de mata e água, havendo apenas uns carreiros pelo lado de Cameconde onde tínhamos o nosso destacamento. Era a retaguarda de Cacine. O enquadramento geo-estratégico de Cacine era bom. Plantado à beira rio com a população mais a interior o nosso quartel estava bem posicionado tendo ligação por um caminho que passava pela Tabanca Nova a caminho de Cameconde. O interior do quartel abrangia a messe dos Oficiais com condições más, vistas em 2009 mas que na altura até não eram más. Hoje ao olharmos para trás é que nos arrepiamos ao vermos onde estávamos instalados. Fazia parte, ainda, a messe dos sargentos, as Transmissões, a secretaria, a oficina mecânica, o refeitório, o local da PIDE, a nora de onde tirava a água, a capela…
Como em todos os quartéis havia a disciplina militar com os seus usos e costumes. Logo de manhã o tocar da alvorada e à noite o arrear da bandeira à qual se prestava homenagem.
Na Guiné penso que todos os quartéis tinham a sua pista para as avionetas. Este meio de transporte servia tanto para civis como para militares. Uma vez fui para Bissau gozar um artigo do RDM que me dava 5 dias longe do mato e comigo iam também civis. Estes monomotores sobrevoavam toda a Guiné, penso e noutra vez o motor, que era posto a trabalhar pegando numa haste da hélice e rodando-a, parou simplesmente dizendo o piloto que no ar não parava.
No isolamento em que vivíamos tudo que era fora do comum era novidade e uma atracção que quebrava a monotonia da nossa existência.
Fora do quartel e para os lados da Praia existia uma viatura fora de serviço, velha e estanque. Ao se passar por ela explorávamos a viatura pois na altura tudo era novidade. Estávamos em 1970. Mas conduzir um jeep sem ter carta era entusiasmante assim como um Unimog. Foi aprendendo assim que numa das férias que fui a S. Miguel tirei carta no quartel em Belém.
Entre Cacine e Cameconde havia diariamente um patrulhamento para assegurar a vigilância na zona e para deslocar toda a gama de material quer alimentício quer de armamento ou outra coisa qualquer.
Para isso um pelotão de 25 homens, 3 furriéis (no meu caso apenas dois), pessoal de transmissões, um pelotão de milícias que seguia na frente a fazer a picagem, as viaturas com os respectivos condutores (Unimog, Daimlers, GMC com a arma “Browning” com lastro de sacos de areia). Munidos de G3, metralhadora HK21, bazuca, não me lembro de morteiro 60 fazíamos o percurso para o qual já tinham seguido a milícia a fazer a picagem.
O obus 14 fazia parte da nossa segurança em que a artilharia fazia uso dele sobretudo em Cameconde. Era uma arma que mandava um rebuçado de 45 kg e que metia respeito.
O sector da “ferrugem”, oficinas de viaturas, era sui generis. Com espírito próprio e adquirido por um grupo pequeno era ali que a folia parecia brotar. Uma viola fazia parte da farra que acompanhada com umas ostras cozidas em meio bidão faziam a delícia de quantos tomavam parte dela. Eram estes uns dos poucos momentos que faziam esquecer o isolamento, o afastamento da família ou da mulher e filhos.
"Ferrugem"
Texto e fotos: © Tibério Borges
____________
Nota do editor
Último poste da série de 15 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14879: 3 anos nas Forças Armadas (Tibério Borges, ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2726) (2): Passagem pelo BII 18 de Ponta Delgada, IAO no RI 11 de Setúbal e embarque em Lisboa no Ana Mafalda
1 comentário:
Olá Camaradas
No meu tempo, a mesquita era em Boniá, logo a seguir à pista e fora da localidade.
A casa do chefe de tabanca, o Abu, pai da Cadi, era a primeira casa ao lado esquerdo de quem entrava na rua principal da tabanca.
Nesse tempo a mesquita era de adobe e tinha um relógio de cas-de-jantar. Como não havia minarete um homem percorria a tabanca com uma candeeiro a petróleo, ao amanhecer, a chamar os crentes à oração da manhã.No meu tempo (CArt 1692) havia 4 obuses 8,8 em Cameconde, que foram substituídos por 3 obuses 10,5
A viatura Matador abandonada na praia deve ter aí chegado em 1969/70.
A capela tinha pouco uso, mas já existia.
Um Ab.
António J. P. Costa
Enviar um comentário