quarta-feira, 22 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14915: Os nossos seres, saberes e lazeres (107): Tomar à la minuta (9) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 23 de Junho de 2015:

Queridos amigos,
Já deu para perceber que as belezas de Tomar excedem a iconografia e o esplendor do Convento de Cristo, a Janela do Capítulo e a Charola.
A cidade templária guardou outras formosuras que se disseminam pelas margens do Nabão, andamos no seu encalço. Hoje visitamos a Mata dos Sete Montes, um oásis em que uma cerca conventual se converteu numa mata de recreio.
Houve que parar, em dia de canícula, no majestoso café Paraíso, um expoente da Arte Deco e depois visitar o lugar onde nasceu Fernando Lopes Graça, nome cimeiro da música clássica em diferentes variantes.

Um abraço do
Mário


Tomar à la minuta (9)

Beja Santos

Da Mata dos Sete Montes à Casa de Lopes Graça


Em nome da verdade, fique entendido que esta imagem não é minha, extraí-a de uma brochura editada pelo Município de Tomar e pelo Instituto da Conservação da Natureza e Biodiversidade, pois tornava-se necessário pôr em ecrã gigante onde fica a mata, adossada à muralha do castelo, temos aqui o mais rico pulmão da urbe nabantina. Reza a brochura que foi no reinado de D. João III que surgiu a Cerca Conventual, influenciada pelo espírito da Contra-Reforma, que teve consequências no conjunto monástico, criaram-se novos claustros e este vasto domínio rural. Do Aqueduto dos Pegões já falamos, vamos agora ao espaço verde.


Tudo começou por uma exploração agrícola, água não faltava, por ali corre o ribeiro do Vale da Riba Fria, construíram-se tanques, muito provavelmente por aqui se passeavam os frades em comunhão com a natureza. Desta apoteose da engenharia hidráulica, gostaria de vos mostrar duas peças por ora mal tratadas, o tanque pequeno e a Charolinha.


É uma obra típica do Renascimento. Era abastecido pelo tanque grande através de uma caleira a céu aberto, tinha a função de armazenar água para regar as hortas do vale. O que é hoje jardim eram hortas, depois deu-se o flanqueamento pelo olival e pela esplendorosa mata.



A Charolinha é este pequeno templo circular rodeado por um tanque, dói ver este mau estado, o viandante subiu até aqui em dia de alta temperatura, agora refresca-se. Sente-se como no Buçaco ou em Monserrate, é tudo frondoso, há um vozear miúdo que se estende do parque das merendas até à entrada, onde se anicham vários autocarros que aguardam que os seniores que vieram de longe recolham farnéis.


O espaço ajardinado engalanou-se, chegou a Festa dos Tabuleiros, é preciso que a Pomba do Espírito Santo tremule ao vento, o calor abrasa, sigo para a mata que pertenceu ao senhor Marquês de Tomar, António Costa Cabral, comprador de parte dos bens da Ordem de Cristo, com a extinção das ordens religiosas, em 1834. O Marquês esmerou-se, teve enlevo pelo terreno, mandou fazer infraestruturas, aprimorou a vocação agrícola da quinta. Em 1936, a Cerca foi comprada pelo Estado por 560 mil escudos. Em 1938, a Mata dos Sete Montes foi transformada em parque florestal e jardim municipal.


Encontrei canteiros de buxo recentemente cortado, que odor! ajuntar-se aos pinheiros destilando resina, passa-se por fileiras de ulmeiros, freixos, cedros e ciprestes, bem organizados em patamares superiores. Aqui vemos a mata a densar-se, quem zela pela mata deve ter orgulho nesta paleta aberta de arvoredo tão diverso, plantaram-se ciprestes, pinheiros mansos e bravos, loureiros, pistácias, pilriteiros e carrascos.


Subia para a Charolinha quando dei com este banco, fiquei enternecido pela integração dos elementos, a mata é exuberante, alguém pensou a sério no que deve estar numa mata de recreio e nas diferentes encostas e qual a lógica da exposição solar.


Com o tempo, hei de rodar-me a passear na mata e a apreender imagens do Convento ao fundo, hoje não foi mais longe de que este assomo, lá ao fundo, o calor é brutal, parece que aqui do alto tenho a mata por minha conta, caminho lentamente para evitar um tombo, as raízes parecem querer tomar conta dos percursos pedestres. Andei pelo Caminho da Charolinha, passei lesto pelo Caminho da Cadeira D’El Rei. Como a viagem nunca acaba, é suficiente que o viajante venha animado para captar boas imagens da cerca do castelo.


Aqui estão as razões para me precatar de dar um espalhanço de arranjar umas fraturas. Mas também não há senão que não tenha a sua beldade, a obrigação de saber onde se põem os pés dá tempo a olhar dentro deste vale húmido, fértil e exuberante, entalado entre colinas, a mata é hoje património nacional.


O Infante vigia à entrada da mata, olha para lá das brumas da memória. Aconteceu que este sénior aguarda a partida do autocarro, encostou-se ao Infante, parece imitá-lo, como se dissesse: despachem-se lá, temos que partir para o nosso Bojador…


Tenho a língua encortiçada, meti-me pelas sombras do centro histórico e vim, afogueado, até à mansidão deste café que tem um nome ajustado, Paraíso. Um café cheio de história, podia ter estado aqui sentado Winston Churchill, a receber-nos de havano na boca e a fazer o V da vitória. Dessedentado, miro esta graciosidade Arte Deco, naquele nicho ter-se-ão vendido cigarros, cigarrilhas e charutos, publicações de toda a espécie, ainda bem que ninguém se atreveu a remover este ícone do passado, aqui se entrava para ler o jornal, cavaquear e formar tertúlia.


Candeeiros da época, relógio da época, a fotografia que se segue é um pormenor do café, não é muito feliz, há muito brilho nos espelhos, o fundo fica um glauco um tanto enlanguescido, prometo voltar e encontrar soluções que ultrapassem este amadorismo e estas soluções de sapateiro remendão.


É só para verem o design, aqui respira-se contemporaneidade, é lindo chão marmoreado, lindas são as colunas e a combinação das cores com o predomínio do castanho são uma quintessência da harmonia. Venham aqui tomar café, chocolate ou matar a sede e digam-me se não tenho razão.






Estamos agora na rua Dr. Joaquim Jacinto, aqui nasceu Lopes Graça, chama-se Casa Memória. Deambula-se e é quase impossível acreditar que houve uma casa de primeiro andar com cerca de 50 metros, em que uns tabiques separavam dois quartos interiores de uma pequena sala, havia uma improvisada cozinha que dava para as traseiras e o rés-do-chão era uma loja com um pequeno poço. Mostra-se o piano e a mesa de trabalho do compositor, fotografou-se uma caricatura e a fachada. Não sei qual foi o maior compositor do século XX, mas estou plenamente convicto que Lopes Graça, para além de prolífico, terá sido o mais versátil, pela riqueza que nos legou da música regional portuguesa, tocou em muitas teclas: música coral sinfónica, música teatral, música orquestral, música cora, música vocal, música de câmara e de piano. Estive com ele em dois momentos: um, na Mandíbula d’Aço, a última tertúlia do Chiado, que reunia no escritório do compositor Felipe de Sousa, Lopes Graça digeriu um cozido à portuguesa com uma garrafa de uísque à frente; a outra, quando fomos prestar homenagem a um amigo comum, José Gomes Ferreira, estivemos ali largo tempo de olhos postos no chão, curvados respeitosamente perante um grande poeta português.

(Continua)
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Nota do editor

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