1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Novembro de 2017:
Queridos amigos,
A literatura lusófona é por de mais surpreendente. Podia fazer-se aqui o corolário de nomes impressionantes da lusofonia, de Cabo Verde a Moçambique, quedemo-nos nesse vulto espantoso que é Ruy Duarte de Carvalho, homem de sete ofícios, romancista inclassificável, expressão que não deve meter medo a ninguém, uma obra gigantesca como "Húmus", de Raul Brandão, também é inclassificável, mas é um dos pilares da literatura portuguesa da primeira metade do século XX. O que avulta neste livro é o deslumbramento de Angola, um mundo em que ainda há guerra civil, mas é o olhar do antropólogo que tudo excede e que põe o leitor num convulsivo labirinto africano.
Um abraço do
Mário
Os Papéis do Inglês, por Ruy Duarte de Carvalho (1)
Beja Santos
Ruy Duarte de Carvalho, angolano de origem portuguesa, nasceu em 1941 em Santarém. Viveu parte da infância e da adolescência em Moçâmedes. Temporariamente, viveu em Lourenço Marques e em Londres, no início dos anos de 1970. Regente agrícola, antropólogo, realizador de televisão, cineasta, artista plástico, poeta e ficcionista.
“Os Papéis do Inglês”, por Ruy Duarte de Carvallho; Círculo de Leitores, 2002, é um livro de difícil classificação, talvez uma novela às avessas, relato de viagens com dormências e reminiscências, páginas de um diário onde se imiscuem a polivalência e o autorretrato. A fazer fé do que teria acontecido, entre o imaginário e a factualidade real, estamos perto do natal de 1999, o autor saiu para a mata para fotografar pedras, enganou-se no caminho, andou às voltas e assim começa a história, a narração de um inglês que se suicidou no interior mais fundo de Angola, aí começa essa história “que até hoje me anda a trabalhar a cabeça, desde que esbarrei com ela num livrinho da autoria dessa fascinante personagem da nossa história comum, o muito ativo e irrequieto Capitão Henrique Galvão”. É uma história que se conta no acampamento e o que lhe anda na memória do tal livrinho de Henrique Galvão, edição de autor, no ano de 1929 com o título Crónicas de Angola, tem a ver com um cidadão inglês retirado do mundo, de boas famílias e caçador de elefantes, Perkings de seu nome ou Sir Perkings, como Galvão entendeu chamar-lhe. História burlesca e arrepiante, que se conta em poucas frases. O inglês abate com arma de fogo um obscuro grego, companheiro de profissão. Procura depois o posto administrativo mais próximo, a 100 quilómetros de distância, apresenta-se à autoridade portuguesa. O chefe do posto esquiva-se à ocorrência e só depois de muita insistência acaba por regista a ocorrência. O inglês, em liberdade, regressa ao seu acampamento. Espalham-se as interpretações do que terá acontecido, chega-se mesmo a dizer que o grego fora assassinado pelo inglês e este devorado por um jacaré, depois de atirar-se às águas do Cuando, com uma grande pedra atada aos pés. O que se conta é a imaginação? E o autor estica o fio da intriga: “E hoje, já que nunca mais deixei de me ver ligado à coisa, julgo que sei tudo. E não vou ter descanso, conheço-me, enquanto não reduzir a ideia a objeto, ou a ato”.
Sem parcimónia, biografa Henrique Galvão, que muito escreveu, que foi funcionário colonial altamente polémico e até se apossou do paquete Santa Maria, já em guerra aberta com Salazar. Conta depois que o pai o mandou ir buscar uns papéis que já não tinham interesse nenhum mas havia entre eles manuscritos antigos comprados a um ganguela (pequena etnia do planalto central de Angola). A viagem é um pretexto para abrir caminho para outros pretextos, fez-se a viagem à procura dos papéis, encontram-se imensas pessoas. Nisto, já se passou o Natal e volta-se ao estranho caso do inglês, estamos em 1909 numa reunião de professores universitários em que se discute a antropologia social, nele participou Archibald Perkings. Entra outro sujeito na história, Radcliff-Brown, também antropólogo social. A história emaranha-se, há traição à fidelidade conjugal, Archibald Perkings sai de Londres e ruma a Angola. Se tudo já estava emaranhado, agora labirinta-se, aparece um belga, interessado em pontas de marfim, aparece também Artur Virgílio Alves Reis, descrito ao pormenor e autor da maior burla bancária que até hoje houve em Portugal com o seu Banco de Angola e Metrópole, os personagens aproximam-se uns dos outros, e o autor especifica o território desse acampamento que é o local de encontro:
“Ocorre com uma precisão cinematográfica a cena que vai seguir-se. É o cair da tarde e há uma luz doce e aberta que se estende a Oeste pela anhara até lá muito longe e anuncia já a noite que está para vir, noite do Leste, vibrátil e imensa, capaz de acolher os uivos de todas as vigílias todas de um continente inteiro. O acampamento está instalado numa ligeira vertente que a oriente se introduz pela mata de acácias altas e depois a encosta à estreita corrente de água que passa logo em baixo e se vai alargar, mais a Sul, numa pequena lagoa de onde depois volta a sair o curso da ribeira. Uma barraca de pau-a-pique, onde habita o grego, está quase encostada à mata. As tendas das visitas foram armadas deste lado e é aí, debaixo de um toldo também de lona, que têm passado os dias. A tenda do inglês está montada mais em cima, do lado oposto, e entre ela e os telheiros onde se cozinha há um extenso terreiro que abre para o horizonte da anhara. É para aí que está a ser levado agora, por um homem que saiu da cozinha e entrou na tenda do inglês, um objeto, que o belga e os americanos, de longe, olham muito atentamente, porque talvez lhes custe acreditar que se trata mesmo do que estão a ver: uma estante de música. Há mais pessoas atentas ao movimento do homem que ele dispõe no centro do terreiro (…) O inglês sai da sua tenda com um violino na mão esquerda e o respetivo arco na direita. Uma mestiça muito jovem, moça ainda, com uma saia e uma blusa gastas, vem também do alpendre das cozinhas, descalça, com um caixote e um banquinho, põe o caixote ao lado da estante da música e senta-se no banquinho, a pouca distância. Entalha a roda da saia entre as pernas compridas, assenta os cotovelos nos joelhos, apoia a cara nas mãos em concha e fica assim, de frente, a olhar para o inglês, que entretanto arruma na estante uma folha de papel que o homem do princípio lhe entrega na mão antes de se colocar, por sua vez, ao lado, quase colada às pernas do branco, de cócoras e pronto para dedilhar um quiçanje que trouxe agora consigo. Vai começar o concerto”.
(Continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 9 de dezembro de 2017 > Guiné 61/74 - P18065: Bibliografia (43): “Mário Pinto de Andrade, Uma entrevista dada a Michel Laban”, Edições João Sá da Costa, 1997 (3) (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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4 comentários:
É fabulosa a região (deserto de Moçâmedes) que o autor aqui trazido por BS, viveu, trabalhou e se refere neste livro a presença do caçador que foi o cap. Henrique Galvão, muito afamado nesta região.
Eu digo que esta região é (era ou foi, pelo menos no antes)fabulosa, mas era um deserto ou muito desertificada, com poucos lugares com água, sendo que no tempo das chuvas há rios com água corrente à superfície.
Este português/angolano, foi regente agrícola lá, pelo Estado, como muitos, apaixonou-se e ficou angolano.
Houve muitos portugueses como ele que foram para lá de crianças, e não quiseram ser «Retornados».
Claro que dizer que aquelas terras eram fabulosas, depende do ponto de vista e das circunstâncias, porque para outros poder-se iam chamar de «cús de judas»
Um pequeno reparo apenas, sem importância: a etnia ganguela não é nada pequena; é a etnia maioritária no Cuando-Cubango (uma província - antigamente chamada distrito - com o dobro ou o triplo do tamanho de Portugal!) e é minoritária, mas mesmo assim numerosa, na província da Huíla. Só no Plananto Central (províncias do Huambo e do Bié) é que é efetivamente muito minoritária. Tive um soldado, meu subordinado, que era ganguela da Huíla e era um moço divertidíssimo. Quantas saudades!
Fernando Sousa Ribeiro, de facto os ganguelas estavam no Cuando Cubango, Moxico, Lunda e Bié, mas se tiveste um soldado na Huila, não quer dizer que houvesse ganguelas na região dos Mamhuilas.
A Huila é que era um distrito como todos os outros demarcados pelos brancos sem olhar aos diferentes povos, tal como aconteceu com as fronteiras africanas em 1880, a gosto.
Muito no extremo oeste do distrito da Huila no limite com o Cuando Cubango é que os ganguelas se poderiam encontrar.
Aquelas enormes tribos eram muito «estanques».
Mesmo em Sá da Bandeira, só mesmo elementos de outras tribos, se fossem levados pelo colon.
Penso que agora com a guerra civil de 30 anos, já deve haver uma caldeação de povos inimaginável com aquela "paz" dos chefes de posto.
Se fizeste a tua guerra na Huila, Fernando Souza Ribeiro, quantos tiros ouviste, além daqueles que deste na carreira de tiro?
Antonio Rosinha, eu não tive um soldado NA Huíla, tive um soldado DA Huíla, um ganguela chamado Domingos Dala e natural da Jamba. Por acaso assentou praça na Huíla mesmo, isto é, foi incorporado no serviço militar obrigatório no Regimento de Infantaria 22, em Sá da Bandeira.
Não fiz a minha guerra na Huíla, mas sim nos Dembos. Sofri emboscadas, fui direta e pessoalmente alvejado por ter cometido uma imprudência, percorri trilhos minados, contornei bocas-de-lobo e, sendo alferes miliciano atirador, cheguei até onde os militares dos comandos não chegaram.
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