Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
segunda-feira, 11 de dezembro de 2017
Guiné 61/74 - P18075: Notas de leitura (1022): “A caminho de Viseu”, por Rui Alexandrino Ferreira; Palimage, 2017 (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Novembro de 2017:
Queridos amigos,
Rui Alexandrino Ferreira tem presença assídua nesta sala de conversa. No seu livro "Rumo a Fulacunda" ofereceu-nos páginas impressivas, tanta da sua guerra da Guiné como da sua vivência angolana. Este livro é um encontro de amigos, tem o RI 14 por epicentro, mas o passado também anda à solta. Tem a língua afiada, e de vez em quando desembesta de mansinho, sai da sua rigidez peculiar. Vale a pena ouvir o que se partilha no anfiteatro das memórias sobre este homem.
Um abraço do
Mário
"A caminho de Viseu", memórias de Rui Alexandrino Ferreira
Beja Santos
Na encruzilhada da vida e em torno de uma vivência do Regimento de Infantaria n.º 14 (Viseu), ergue-se um rol de lembranças e várias pessoas se sentam à mesa da amizade, o pretexto é muito válido, todos concordam. Rui Alexandrino Ferreira [foto à direita] é já conhecido no blogue, saiu-lhe do punho um livro de páginas vigorosas, "Rumo a Fulacunda", voltará a escrever sobre a Guiné, ali houve duas comissões, ali se passaram situações insuperáveis. “A caminho de Viseu”, por Rui Alexandrino Ferreira, Palimage, 2017, é uma sala de conversa a pedido de um certo chefe de orquestra, que abre o desfiar das memórias recorrendo a dois versos de Fernando Pessoa: “Sinto mais longe o passado / Sinto a saudade mais perto”. Logo uma lembrança para um ausente da conversa, Manuel Cerdeira, que fora comandante do destacamento de Cabedu, algures no Cantanhez, e lança-se um abraço fraternal. Está lançado o mote.
Rui Alexandrino Ferreira foi alferes na Guiné em meados dos anos 1960, não se sentiu bem enquadrado na vida civil, em 1970 irá frequentar o curso para capitão, regressa à Guiné, e em 1973 volta a Angola de onde é natural, noutra comissão. Se na sua primeira comissão conheceu atribulações, a sua segunda comissão permitiu-lhe uma experiência distinta, foi nomeado para integrar as Forças Africanas, aquartelou-se em Aldeia Formosa. Discreteia sobre a formação do MFA e põe ênfase no que viu em Angola, assistiu ao horror da guerra fratricida pelo controlo da cidade de Luanda, num cenário de caos e morte e pilhagens, de gente a resgatar os seus bens antes de se porem em fuga, gente enlouquecida a disparar em todas as direções.
Exalta a sua amizade e admiração por Pedro Pezarat Correia, “um dos oficiais mais lúcidos e distintos e mais capazes entre os oficiais do quadro permanente”. Conheceram-se em Aldeia Formosa. Vêm depois pilhérias e facécias que vão desembocar a Viseu, entram testemunhos na ribalta, logo uma prova eloquente de consideração no depoimento do Tenente-General António Luís Ferreira do Amaral. O autor, quando pode, lança a sua ferroada, veja-se o que ele escreve a propósito do tenente Armelim Costa:
“Era e é um moço excelente. Quando se apresentou em Viseu, vindo do Regimento de Comandos, trazia consigo a cabeça cheia daquela propaganda de superioridade, que não tinha a mínima razão de ser. Nunca justificara em combate as extraordinárias atuações de que falavam. Na Guiné fartaram-se de entrar em situações algo nebulosas, inclusivamente uma das suas companhias tinha a fama de ouvir os tiros dos turras duas vezes. A primeira vez quando os tiros passavam por eles e a segunda quando eles passavam pelos tiros… Claro que isto é uma anedota, mas isto são histórias que não vêm ao acaso”.
O Major Sousa Figueiredo brinda-o com versos:
"Ironia perversa do Destino, / Que manda p’ra Guiné um angolano / Criado em berço de Menino, / A brincar, na rua, com o massano; / Da Guiné regressa à nata terra, / Com o peito cheio de glória, / Mais duas cruzes de guerra, / Qual tributo fruto da vitória. / Capitão vai para o Uíge, / Desfiladeiros, florestas e Fazendas, / Novos feitos e vitórias atinge, / Na africana nova Caipemba; / No mês das águas mil; / Da Páscoa e do Agno de Deus / A revolução do 25 de Abril, / Em boa hora o trouxe a Viseu; / Cá, assentou arraiais, / Procriou, capitaneou e muito mais, / De muitos amigos se rodeou, / Por isso também cá estou.
É uma parada de testemunhos, oficiais, sargentos e praças não se cansam de exaltar amizades bem consolidadas. As histórias multiplicam-se, são como as cerejas, escolhendo uma bastante impressiva, sai do punho do autor a homenagem à classe médica na pessoa do Dr. Lino Ministro Esteves: “Sucedeu a determinada altura que recebi de Alcofra, terra de origem da família dos meus sogros, um telefonema da parte do tio da minha esposa, que pretendia fazer-se acompanhar de uns parentes afastados que pretendiam falar comigo.
Marcado o dia lá os recebi em minha casa. Segue-se uma história embrulhada e Rui Alexandrino replica que lhe falem claro ou então não vale a pena continuar a conversa.
Muito a custo e no meio de certa vergonha contaram-me então que um dos filhos de um dos primos se tinha enfiado na cama afirmando que ia morrer com a sida e ninguém o conseguia demover da condição de que estava doente. No meio disto tudo tinha sucedido que, quando tinha ido para o monte acompanhado de outro moço para o pastorício das ovelhas teriam tido relações sexuais e ao ouvir dizer que a sida era a doenças dos maricas convenceu-se de aquilo também lhe dizia respeito. E aí, para desespero dos pais deixou de comer e trabalhar e não saía da cama. Combinei então com o pai ir eu a Alcofra no fim de semana seguinte onde iria a sua casa para ter uma conversa sozinho com o moço e ver no que aquilo dava.
Da conversa, ao princípio um pouco contrafeito lá me contou o que lhe ia na alma. Posto isto fui-lhe explicando que sendo ele saudável e o outro também e que não tendo ambos relações com mais ninguém, não tendo usado quaisquer agulhas, para injetar drogas, que pudessem estar contaminadas, não tendo por isso relações de risco dificilmente podia ter contraído a doença e que o iria buscar pessoalmente à porta de armas no dia da incorporação e que o levaria ao médico para que lhe fossem feitas análises e exames que levassem à despistagem da doença.
No seguimento tive uma conversa particular com o Dr. Ministro Esteves a quem o entreguei pessoalmente pois fui busca-lo à porta da incorporação, e feitas as análises e as radiografias e tudo mais o que o doutor inventou, lá lhe demos a notícia de que estava são como um pero, saiu dali louco de alegria, passou-lhe a febre! Acabou por ficar como contratado na tropa”.
Em anexos, junta efemérides na história da infantaria do RI 14.
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Notas do editor
Vd. postes do lançamento do livro de:
20 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17990: Agenda cultural (606): Uma grande festa de amor, amizade e camaradagem, a do lançamento do livro "A Caminho de Viseu", do Rui Alexandrino Ferreira, nas instalações do RI 14, Viseu, em 4 do corrente - Parte I
e
20 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17994: Agenda cultural (608): Uma grande festa de amor, amizade e camaradagem, a do lançamento do livro "A Caminho de Viseu", do Rui Alexandrino Ferreira, nas instalações do RI 14, Viseu, em 4 do corrente - Parte II
Último poste da série de 8 de dezembro de 2017 > Guiné 61/74 - P18061: Notas de leitura (1021): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (12) (Mário Beja Santos)
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