segunda-feira, 7 de maio de 2018

Guiné 61/74 - P18614: Notas de leitura (1064): Retrato do colonizado e retrato do colonizador, por Albert Memmi; editado por Gallimard (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Maio de 2016:

Queridos amigos,
Este documento de Albert Memmi não pode ser lido como um panfleto político de um dirigente revolucionário. É uma prosa lúcida, a articulação é perfeita, a análise deslumbra o leitor mais reticente, mesmo o mais incrédulo de que as relações entre colonizador e colonizado são assim tão poderosas como aqui se descrevem, do princípio ao fim. Aqui se desmonta mistificações, sonhos do colonizado em imitar o colonizador, até se chegar ao ponto fulcral em que nos apercebemos que quando se procura suprimir o colonizado, pela força das circunstâncias iria desaparecer a colonização e inclusivamente o colonizador. Trata-se de um ensaio impressionante, obviamente que datado e bastante circunscrito aos países do Norte de África, como a evolução dos acontecimentos veio comprovar.
Leitura que se recomenda a todos o que se interessam por procurar conhecer a essência do que foi o colonialismo e o que separava o colono do assimilado, o que separava o assimilado do nativo e as suas diferentes categorias intercalares. Jamais se perceberá a questão de fundo dos antagonismos e constrangimentos entre guineenses e cabo-verdianos sem entender a dimensão destas categorias.

Um abraço do
Mário


Reler um clássico do colonialismo: 
Retrato do colonizado e retrato do colonizador, por Albert Memmi (2)

Beja Santos

Albert Memmi partiu cedo da Tunísia e fez uma promissora carreira universitária em França, é autor de romances, poesia, entrevistas, ensaios, entre outros. Em meados da década de 1950, ainda antes de se ter desencadeado a guerra da Argélia entendeu escrever dois retratos para dimensionar o colonizado e colonizador. Obra de escândalo e aplauso. Acrescia o facto de o autor ter sido detido pelos alemães num campo de trabalho e a sua imagem política era de resistente de esquerda. Deu celeuma as suas considerações sobre o nacionalismo e a esquerda. Os próprios funcionários coloniais se sentiram visados pelas suas considerações no contexto da vida colonial.

A sua escrita é calma, um verdadeiro incentivo ao diálogo. Quando ele diz que o colonialista é a vocação natural do colonizador, não usa palavras de ordem, trabalha com argumentos. Quando ele diz que é corrente opor-se o imigrante ao colonialista que nasceu na colónia, ele desvela como se trata de uma falácia. O imigrante acabará por adotar a doutrina colonialista. Quem nasceu na colónia tem o ambiente familiar, os interesses constituídos, os privilégios recebidos, por natureza o colonialismo restringe a sua liberdade. Quem chega à colónia, forçosamente nela se vai inserir, mas há uma larga franja do grupo colonizador que a tudo se adaptará, ao sistema policial, ao desrespeito pelas culturas nativas: são uns medíocres, aqueles que não têm saída fora daquele contexto colonial e que acabarão por se resignar aos tiques e comportamentos do grupo colonizador, resignam-se ao ramerrão, constituíram a falange da maioria dos homens da colonização.

E chegamos a um dos pontos mais polémicos da obra, em que ele refere abertamente: a situação colonial fabrica colonialistas do mesmo modo como fabrica os colonizados. E di-lo serenamente, a propósito das comparações, inevitáveis a que o colonista procede quando fala da sua pátria: “O colonialista parece ter esquecido a realidade viva do seu país de origem. Ao longo dos anos, ele esculpiu, por oposição à colónia, um monumento da metrópole tal que a colónia lhe aparece necessariamente vulgar”. O colonialista nunca esquece de referir o calor, a humidade, as cobras, o verde interminável, tem sempre argumentos de contraposição em que a metrópole reúne tudo quanto há de positivo, a própria harmonia dos sítios, o melhor clima, a beleza, etc. O nacionalismo do colonialista tem as suas especificidades. A pátria tolera e protege a sua existência enquanto colonialista. Mas há também a tentação fascista, a máquina administrativa e política da colónia está ao serviço da exploração, funda-se na desigualdade e é garantida pelo autoritarismo das forças policiais, nas cidades e nos lugares mais remotos.

Não menos polémico é o que Memmi diz sobre o ressentimento que o colono guarda da metrópole. Diz sem ambiguidade que ao nível da mesma classe o colonialista está mais à direita que o metropolitano. Não tendo os mesmos interesses que o metropolitano, sente-se preterido na colónia. E temos depois o racismo que resume e simboliza a relação fundamental que une o colonialista e o colonizado. O racismo do colonialista é sustentado pela intensidade nas relações coloniais. E diz Memmi que a análise da atitude racista revela-se em três elementos importantes: descobrir e evidenciar as diferenças entre o colonizador e colonizado; valorizar essas diferenças a favor do colonizador e em detrimento do colonizado; e elevar estas diferenças a um nível absoluto. O colonizador encara esta relação com o colonizado como uma categoria definitiva. É neste ponto que Memmi introduz um elemento perturbador: as más relações entre a Igreja e os colonialistas; estes, quando percebem que o religioso (ou o missionário) apela à libertação espiritual do colonizado, tudo fazem para que a religião do colonizador seja encarada como a etapa indispensável da via da assimilação, o que pode levar à contestação, o religioso pode também entrar em confronto com o colonizador pela recusa do paternalismo, propondo direitos humanos, sindicais, sociais e o fim da discriminação.

Vejamos agora o retrato do colonizado. A imagem apresentada pelo colonizador é de que o colonizado é preguiçoso, é ladrão, despido de valores, esbanjador, sanguinário, acriançado. Assim sendo, há que o vigiar, segui-lo de perto, dar-lhe os valores metropolitanos, os mesmos feriados que há na metrópole, fazê-lo estudar a história da metrópole, sujeitá-lo a muitas provas antes de lhe dar o estatuto assimilado. Perante esta couraça de imposições, só resta ao colonizado encontrar refúgio num conjunto de valores que são os da família, os princípios do clã, assim se impede a amnésia cultural imposta pelo colonizador que pretende demolir a memória do colonizado.

O autor questiona se nos apercebemos porque é que o colonizado possui uma literatura viva rudimentar. Há a língua oficial em que escreve o escritor assimilado e há a realidade dos outros idiomas em que os colonizados sem entendem. O escritor assimilado, por muito que goste da língua que recebeu do colonizador, tem quase sempre a impressão que escreve para um auditório de surdos. E sobre este assunto Memmi profere um juízo radical: a literatura colonizada de língua europeia parece destinada a morrer cedo. O colonizado procura mudar de condição mudando de pele, isto é casando com a branca ou com a mestiça, aderindo aos costumes, à indumentária, à alimentação, ao tipo de arquitetura do colonizador, procura captar-lhe os princípios e valores. É nesse contexto de inclusão, que passa por desfrisar o cabelo, descolorir a pele, o uso de bijuteria, rejeitando o artesanato secular, que o colonizado julga que encontrou a porta aberta para a assimilação. É um quadro idílico em que se esquece que a condição colonial só pode mudar com a supressão da relação colonial.

E assim chegamos a alguns dos postulados mais polémicos do trabalho de Memmi: a verificação de que só resta ao colonizado revoltar-se, que a libertação do colonizado se deve fazer pela reconquista de si e de uma dignidade autónoma. Mas há ambiguidades desta afirmação de si: devido ao processo de exclusão, o colonizado aceita-se como diferente, a sua originalidade é definida pelo colonizador. Na conclusão da obra, Memmi dá como demonstrado que o colonizador é uma doença do europeu, que o papel de colonizador de esquerda é insustentável, que a negação dos direitos do colonizado preparam a revolta e o quadro revolucionário, neste se operará a liquidação da colonização. É na reconquista das suas dimensões que o ex-colonizado se irá tornar num homem como os outros, assim se tornará num homem livre com as ditas e desditas de todos os homens de todos os continentes.

Libertação colonial: assim como não há colonizadores de esquerda, a esquerda europeia passa a desconfiar daquele nacionalismo que em caso algum tem a ver com a sua prática ideológica, tal como ele a conhece no seu país de origem.
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Nota do editor

Poste anterior de 30 de abril de 2018 > Guiné 61/74 - P18582: Notas de leitura (1062): Retrato do colonizado e retrato do colonizador, por Albert Memmi; editado por Gallimard (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 4 de maio de 2018 > Guiné 61/74 - P18602: Notas de leitura (1063): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (33) (Mário Beja Santos)

11 comentários:

Cherno Baldé disse...

Caros amigos,

Um trabalho que retrata bem as duas principais personagens do teatro da colonizaçao. Obra visionaria que o curso da historia veio a confirmar na integra. Deve ter influenciado o pensamento das geracoes seguintes do espaco Francofono, com o Frank Fahnon a cabeça.

Gostaria de ouvir o mais velho A. Rosinha sobre as teses aqui formuladas, mas reflectindo sobre o imperio colonial Portugues que nao devera ter sido muito diferente.

Com um abraço amigo,

Cherno Baldé

Antº Rosinha disse...

Tive que ir ao post anterior, já bastante distante deste, para compreender melhor a ideia do autor.

É pena que BS tenha que resumir ao máximo certos livros, porque neste deve haver mais sumo.

Pois é Cherno, BS traz-nos aqui um como aquilo que temos chamado aos nossos "estudantes do império", Amilcar, Neto, Pires e outros, só que este é do império francês, e já tinha sido do império romano, Antes de Cristo, e até muito ligado a italianos, e muitos outros.

Não é bem a mesma circunstância da Guiné, Angola, enfim os 5 (in)conformados PALOP e da África sub-sariana em geral.

Mas este autor tem pontos de vista, nos anos 50, bastante bem vistos, mas que naquele tempo, mais a sul, toda a gente olhava mais para o colonizador e colonizado, como o explorador e o explorado.

O sentido do colonizador português era que se fossemos como os ingleses e o franceses e mesmo os belgas já tínhamos arrancado as riquezas naturais até ao tutano.

E nos anos 50, os "estudantes do império" português também não escreveriam um livro preocupados com o Salazar os obrigar a estudar os rios e as cidades e os caminhos de ferro "lindos" portugueses, como fala o autor, que o que é da metrópole é que é bom.

Eles apenas nos diziam aos colonizadores que lhes déssemos a independência, que eles sabiam governar-se muito melhor do que faz o "colon".

Nos anos 50, o indígena, o não assimilado, no caso, a geração do teu pai, Cherno, nos anos 50, tirando São Tomé e Caboverde, o contacto entre o indígena e o colonizador pouco tinha passado da ida à loja do comerciante branco fazer a permuta das mercadorias, portanto nem aculturação nem educação e pouca exploração tinha havido.

Havia uma aculturação mínima, e os intelectuais era o que menos os preocupava era a aculturação do povo, antes pelo contrário, acusavam o "colon" de não criar escolas para o povo e, criar escolas era para ensinar o quê? as coisas que o branco sabia, portanto mais coisas estranhas o povo tinha aprendido.

Portanto o que o tunisino escreveu era avançado para aquele tempo, mas algumas coisas ultrapassado para os próprios africanos, mais a sul.

Aqui, o discurso do livro deste autor tunisino, quanto a o colonizador ensinar os valores da metrópole em detrimento da cultura indígena, estaria completamente ultrapassado aos olhos de Amílcar, Neto e Marcelino dos Santos, caso contrário não vos teriam mandado ainda em crianças, aos milhares, qual purga, para a Rússia, França, Jugoslávia e até para a China, aprender o que? semear arroz à balanta? pescar camarão na maré vazante?

Para vos formar em que valores? valores da globalização e não das vossas tribos.

Agora já há bispos católicos balantas, e nas aldeias em Portugal já há padre preto, e nem desfrisa o cabelo, ao menos para disfarçar um pouco.

As independências das colónias portuguesas, não foram inspiradas em livros assim, mas mais nos missionários (o tunisino também fala nas religiões), caso paradigmático de Holden Roberto e a UPA em 1961, missionários evangelistas americanos, e o Conego Manuel das Neves, Católico.

Não devia colonização nenhuma, mas já que tem que haver, que seja à portuguesa, que é pouca e devagarinho.

Cumprimentos.












Fernando de Sousa Ribeiro disse...

Pouco depois do 25 de Abril li este mesmo livro traduzido para português. Tinha o título "Retrato do Colonizado precedido do Retrato do Colonizador" e a capa e a contracapa do livro podem ser vistas em http://livrosultramarguerracolonial.blogspot.pt/2017/05/africa-revolucao-retrato-do-colonizado.html. Devo ter ainda o livro perdido algures cá em casa, no meio dos muitos e desarrumados livros que ao longo dos anos fui acumulando. É um verdadeiro livro de referência. Quase me apetecia dizer que é de leitura obrigatória.

Como o António Rosinha já sabe, eu fiz a minha comissão militar em Angola e não na Guiné. A minha experiência de Angola, porém, deve ter sido muito diferente da sua, mesmo muito diferente. À luz desta minha experiência, concordo quase a 100% com o que Albert Memmi escreveu no seu livro. Aquilo que está no livro assentava como uma luva na situação colonial em Angola, onde os colonizados eram como Albert Memmi os descreve e os colonizadores eram-no também, sem tirar nem pôr. Albert Memmi colocou o dedo bem no meio da ferida colonial.

Em Angola, estive sempre colocado no mato e não na cidade. Os meus contactos com os colonos foram superficiais, embora tenha tido algum contacto com o meio intelectual de Luanda, quando passei lá um mês em consultas externas de psiquiatria no Hospital Militar. Conheci lá, por exemplo, o poeta Vasco de Lima Couto, o radialista Sebastião Coelho e, sobretudo, o escritor Domingos van Dunem, um angolano negro com quem tive um diálogo frutuosíssimo de várias horas. Não se conclua daqui, no entanto, que o meu conhecimento da situação colonial em Angola resulta destes contactos apenas. Ele resulta, isso sim, do contacto permanente que mantive ao longo de toda a minha comissão militar de dois anos e três meses com os meus maravilhosos camaradas angolanos, que comigo cumpriram o serviço militar obrigatório e por quem verto incontáveis lágrimas de profunda saudade.

Perdi a conta ao número de vezes em que eles me diziam que não podiam aceder a certos empregos que tacitamente estavam reservados a brancos. Não havia nenhuma lei escrita que os impedisse de serem empregados bancários ou motoristas de táxi, por exemplo, mas a verdade é que nos bancos só trabalhavam europeus, excepto os contínuos e as senhoras da limpeza, e os taxistas eram quase todos brancos, excepto um ou dois mestiços. Um meu camarada angolano, que tinha sido contínuo num banco antes de ser chamado para a tropa, disse-me que já tinha atingido o topo da sua carreira no banco!

Muitos "borra-botas" acabados de chegar de Lisboa ficavam logo a ocupar lugares de chefia nas empresas, dando ordens a negros que sabiam mais do que eles. Um outro camarada meu angolano, que trabalhara numa empresa de táxis aéreos chamada SATAL, no aeroporto de Luanda, teve que ensinar ao seu novo chefe branco, acabado de chegar da "Metrópole", como se faziam planos de voo, porque o novo chefe não percebia nada do assunto.

Eu não sei como eram atendidos os negros pelos comerciantes brancos na Guiné. Em Angola, à excepção das principais cidades, os comerciantes não permitiam que um negro permanecesse no interior da sua loja mais do que o tempo necessário para fazer a sua compra. Se um cliente negro quisesse beber uma cerveja, por exemplo, tinha que ir bebê-la para o olho da rua, porque o comerciante não permitia que ele a bebesse lá dentro. O negro só podia voltar no fim, para entregar a garrafa vazia. Isto não acontecia só nos estabelecimentos do meio do mato. Maquela do Zombo era uma vila relativamente importante e todos os comerciantes da vila, menos um, procediam assim mesmo, sem tirar nem pôr. Mais: tinham um preço (mais baixo) para os brancos e um preço (mais alto) para «os pretos».

E já não falo da revoltante situação de trabalhos forçados (sim, forçados!) que prevalecia nas fazendas de café do Norte, nas minas de diamantes da Lunda ou nas pescarias de Benguela, porque o espaço do comentário é demasiado curto para tanta ignomínia.

Cherno Baldé disse...

Caros amigos,

A mesma realidade colonial, vista de maneiras diferentes. Sou de opiniao que, de facto, as situacoes e conceitos defendidos pelo autor corresponderiam mais a realidade angolana, onde a colonizacao foi mais acentuada, para nao dizer brutal. O caso da Guiné podera ser um pouco diferente, mas, na verdade, os tracos fundamentais do colonialismo descritos nesta obra sao os mesmos em toda parte.

Acho que o Fernando S. Ribeiro e a sua experiencia de Angola se aproximam mais daquilo que foi a realidade colonial do que a visao quase idilica do amigo Rosinha que tende a dar pouca importancia as diversas formas de desprezo e discriminacao a que eram alvo os naturais das provincias incluindo os chamados assimilados ou "civilizados". E acho que a sociedade portuguesa continua, ainda, a carregar as sequelas do tempo colonial. Ha dias foi lancado em Portugal um livro com o sugestivo titulo de Portugal o "Racismo no pais de Brancos Costumes", onde, Segundo a autora "permanence a ideia de que nao ha racism" nem discriminacao contra os emigrantes e Afrodescendentes.

Com um abraço amigo,

Cherno Baldé

Antº Rosinha disse...

Cherno, em Angola havia regiões enormes com mais de 100X100 klms, onde havia tribos, em que em pleno 25 de Abril, nunca tinha entrado lá um chefe de posto.

O máximo que lá tinha chegado eram os comerciantes chamados funantes, meio clandestinos que iam com mercadorias a essa regiões.

A Guiné estava mais ocupada pelo colon, que o interior, leste e sul de Angola.

Dizia-se que Angola era Luanda o resto era paisagem.

O discurso do tunisino não seria entendido completamente nem pelo MPLA nem pelo PAIGC.

Claro que o litoral e Norte estava lindo e desenvolvido à europeia, mas isso não era a verdadeira Angola de que todos, brancos e pretos falam.

O MPLA e os outros nunca tiveram acesso a enormes regiões, nem qualquer contacto até ao 25 de Abril.

Sobre os comerciantes do mato, (havia os comerciantes do muceque, do bairro, da baixa (praça na Guiné) o Fernando Ribeiro fala dos comerciantes do mato, que era a mesmíssima coisa que os comerciantes do interior da Guiné.

Era a gente mais apreciada pelos indígenas.

Em Angola, apesar de semi-analfabetos eram todos poliglotas, eram os únicos que se entendiam em africano.

Era o tal negócio da permuta, que era um cerimonial muito complicado e muito moroso.

Penso que Fernando Ribeiro nunca se apercebeu do trabalho dessa gente, em maioria gente simples, isolada no meio dos africanos durante anos.

Em geral foi dessa gente que surgiu o fenómeno da mestiçagem, da qual saíu a maioria dos dirigentes do MPLA, FRELIMO e PAIGC.

E sobre o branco atrasado que chega e ocupa os melhores lugares, estamos falados, continua a mesma coisa em Angola, em Bissau, e em...Lisboa.

Eu próprio estive nas Obras públicas de Bissau, como topógrafo (bem)pago pelo Banco Mundial,(1993,4,5) no entanto havia uns 4 ou 5 topógrafos guineenses nas OP, dois deles com o curso em kiev, um deles era Baldé e ou outro Sebastião, procura-os amigo Cherno.

E pergunta-lhe porquê isso, porque eu também não sei explicar.

Há umas profissões que os africanos são imbatíveis, médicos, futebolistas, polícias (cipaios)ministros e directores, aí não precisam de ajuda.

Sobre os trabalhos forçados, que Fernando Ribeiro fala, em Bissau não havia esse problema porque não havia trabalho para o branco quanto mais para o preto, não havia fazendas de café, não havia minas, não havia industriais de pesca, não havia grandes extensões de estradas.

Eu próprio trabalhei com contratados, em cartografia e como topógrafo de estradas.

O grande problema dos meus contratados, era quando o trabalho terminava e eles tinham que regressar à sanzala, aí é que era a porra, desabituavam-se da vida monótona da tribo e era uma chatice.

Até caiam em depressão, que se tornava desesperante.

Cherno e Fernando, o que o tunisino diz está muito certo, mas uma coisa é a Tunísia e Argélia, e outra coisa é Angola e a Guiné.

Fernando Ribeiro, obrigado por me teres estado a guardar as costas durante dois anos, não era assim que se dizia dos colonialistas?

Cumprimentos.


Manuel Luís Lomba disse...

Esta recensão do Mário põe-nos ao corrente de uma verdade á LA Palisse, descoberta pelo autor Albert Memmi: Colonialistas e colonizados fabricam-se reciprocamente.
Como definir a Colonização, sem preconceitos nem complexos?
No seu curso e pelo seu carácter, A História demonstra que todos os colonialistas, desde a mais remota Antiguidade, foram espalhar os seus valores e costumes aos colonizados - valores, costumes e seus vícios e defeitos. O resto são consequências e danos colaterais.
A colonização da África pela Europa não desvirtuou esse carácter colonizador. Está evidenciado à saciedade que o tempo e o modo da sua Descolonização constituirão o maior erro político da Europa do século XX, a acrescentar às suas duas Grandes Guerras.
A revolução sanguinária, vigorosamente advogada por Franz Fanhon - na sua perspectiva de sociopata, salvo erro ou omissão - e "certificada" por Albert Memmi não será um bilhete de acesso à libertação individual e colectiva dos seres humanos de outros seres humanos; e, como caminho, ele será muito longo e exorbitantes os seus custos materiais e humanos. Compare-se esses custos da descolonização acelerada do Ultramar português com as consequentes do desempenho de Nelson Mandela.
E no tocante a discriminações e racismo, evoco um caso, oh tempos e costumes! Em 1968 passei a fronteira para a Espanha pela primeira vez e frequentei um bar em O Grove, que praticava 3 preços diferentes, para as mesmas "copas e as tapas": um valor para o da terra, outro para o passante e outro para o madrileno!
E concederam-me o preço do da terra...
Ab
Manuel Luís Lomba

Cherno Baldé disse...

Caro Rosinha,

O Sebastiao (o teu balanta das obras publicas) e o Ussumane Baldé (ambos Topografos) foram meus colegas durante anos no respectivo Ministerio. Mas se tu que é branco nao sabes explicar as razoes subjacentes como é que nos pretos originarios do campo podemos explicar.

Quando entrei no Ministerio, em 1991, foi num projecto de construcao e reabilitacao de infraestruturas (PASI) e fui colocado como homologo (ler adjunto) de um Contabilista Portugues e disseram-me que tinha 6 meses para apreender e dominar todas as tarefas da gestao administrativa e financeira do projecto a fim de libertar o Cooperante Portugues que custava muito dinheiro. Ao cabo de 3 meses informei a Direcçao (tambem ela constituida por um Coordenador Portugues (que era ou fazia figura de Eng. Civil) e um Homologo Guineense (Arqto formado em Panama) que o Portugues podia regressar se assim o entendessem, mas com a minha total surpresa o cooperante continuou ainda por mais 3 anos e fui eu que o deixei la para frequentar um curso em Portugal em 1993.

Um outro caso aconteceu em 2014/15. E foi assim: Estavamos num Projecto para reforco de capacidades executado por uma empresa italiana mas que recrutava tecnicos Portugueses para as actividades de formacao com um Eng. (ou o que fazia de Eng.) como administrador. Afinal era um antigo encarregado de obras em Portugal e outros paises por onde andou.

A dada altura os jovens Eng. Tecnicos vindos de Cuba questionaram as (in)competencias do Eng. e quiseram arranjar complicacoes. Baseado na minha experiencia preveni-os de evitar arranjar encrencas com o Eng. porque o mais importante para nos, na altura, era ganhar um pouco acima dos salarios da miseria da nossa Funcao publica. Que nao, o Senhor Eng. devia mostrar os diplomas da sua formacao. Resultado, o Pseudo Eng. foi-se embora e o projecto foi encerrado porque os italianos nao queriam entregar a administracao dos seus negocios a um Guineense, mesmo se era este que cobria o velho portugues na elaboracao de todos os relatorios de execucao fisica e financeira do projecto.

Soh para reforcar as tuas palavras sobre a situacao depois, pois a independencia real nao se conquista soh com as armas.

Um forte abraço,

Cherno Baldé

Valdemar Silva disse...

Muito mal comparado, houve num ano dos anos 80, quando estava passar férias, habitualmente, em V.N. Milfontes, fui ao Algarve com os uns amigos e lá bebemos
umas cervejas. Qual não foi o espanto por o preço das cervejas ser diferente do que
estava no preçário. A explicação foi que era preço para turistas e no preçário era
o preço para os cá da terra. Mas como é que sabia se os clientes era turistas ou cá da terra, perguntamos nós, pela cor respondeu o comerciante.

Ab.
Valdemar Queiroz

Antº Rosinha disse...

Cherno,

Há descriminação na cor da pele, aqui em Portugal (europa em geral)e também aí em África, quanto a acesso a empregos.

Quanto ao racismo das autoridades policiais, parece que é aí o maior problema do relatório, não tem a ver com os 500 anos coloniais.

Estes jovens polícias de agora, e os amigos dos pretos, dos ciganos e dos homosexuais, é que estão deslumbrados e surpreendidos com problemas novos, nas ruas e nas prisões e nas discotecas, ficaram todos baralhados.

E também no Brasil há descriminação nos empregos.

Tanto a nível de organismos nacionais e de organismos internacionais (ONU incluida)

Umas vezes pode ser descriminação positiva.

Devemos contar o que vimos, aqui neste lugar.

Eu já me senti descriminado positivamente em empregos, na Guiné e no Brasil, por ser de cor mais clara, não saber dançar o samba, nem jogar á bola.

E já me senti descriminado negativamente em Angola, no tempo colonial, por uma questão de "psico-social" no curso de sargentos milicianos em Nova Lisboa, para passarem à frente alguns angolanos.

Já anteriormente em Angola ficaram à minha frente, num concurso para os Caminhos de Ferro de Luanda, uns jogadores escuros do Ferrovia, angolanos, por serem bons de bola.

Nunca trabalhei em cinco anos no Brasil com nenhum engenheiro preto, porque eram raríssimos.

Hoje talvez haja mais, porque parece que há no Brasil uma lei para mais vagas de gente mais escura nas Universidades.

Mas já há portugueses no Brasil a aproveitar, como há muitos portugueses com ancestralidade africana, estão a mandar os filhos em biquini, para a praia umas semanas antes das matrículas.

A predominância das diversas colónias no Brasil, Itáliana, Espanhola, Alemã...as principais, para se imporem à colónia portuguesa, desfazem nos portugueses, além das "anedotas do português", até a ridicularizar a "regata" de Pedro Álvares Cabral, a pior porque atinge também os pretos, é aquela em que contam que o português é doido por "pêgá uma néguinha.

Esta da "Néguinha" é também para atingir negativamente a mestiçagem brasileira.

No Brasil há racismo a sério, e está mal analisado, nas suas origens, onde se vai apenas à escravatura, mas esta acabou e o Brasil deixou de ser português, principalnente estes últimos 100 anos.

Mas voltando à Guiné, amigo Cherno, eu penso que o recurso dos países africanos recorrerem a serviços de estrangeiros, europeus, chineses, americanos ou portugueses, em detrimento de quadros nacionais, a causa principal é a desconfiança (pouca confiança) que os africanos nutrem uns pelos outros.

No caso da Guiné, com tantas etnias juntas, cada um a puxar a brasa à sua sardinha, é difícil não haver invejas e ciúmes e má vizinhança, mesmo que escondida.

Lembro-me que era preciso alguem vir a comprar tubos a Portugal para condutas de água para Bissau, em 1980, e por falta de confiança a quem entregar a responsabilidade do negócio, acabou por ser resolvido o problema muito mais tarde e com uma empresa estrangeira, muito mais caro, evidentemente.

Esta será uma das razões do recurso a estrangeiros, chamemos brancos, em África, em detrimento de "quadros pretos".

Fernando de Sousa Ribeiro disse...

À atenção de Antº Rosinha: http://jornalcultura.sapo.ao/barra-do-kwanza/comerciantes-do-matoconto-de-inacio-rebelo-de-andrade.

Antº Rosinha disse...

Obrigado Fernando Ribeiro, por me lembrares alguem cuja família eu conheci em Nova Lisboa, pois um irmão de Inácio José Esteves Rebelo de Andrade, que escreve este CONTO do comerciante do mato, era irmão de José Manuel Esteves Rebelo de Andrade, da minha recruta e da minha companhia na Escola de Aplicação Militar em Nova Lisboa em 1959.

Este já me parece que era Regente agrícola, agora vejo que este irmão se formou na universidade de Luanda, mas esta Universidade só foi criada muito mais tarde.

Fernando Ribeiro, um conto é um conto, e sobre comerciantes do mato podiam escrever-se milhares de contos, podia escrever-se por assim dizer, toda a colonização à-lá-portuguesa.

Os portugueses não colonizaram a sério, comercializaram e pouco mais desde a India ao Brasil, passando pela África.

Provavelmente já a família antiga dos Rebelo de Andrade, também foram comerciantes.

Este neo-lisboeta era amigo de um poeta, regente agrícola Ernesto Lara Filho, primo de Lúcio Lara do MPLA, e de outras famílias célebres angolanas, mas Angola tornou-se para esses bons angolanos o maior pesadelo, é que nem como retornados, nem como portugueses, nem como angolanos se puderam considerar realizados, preenchidos.

Vi na internet que o Inácio já morreu, mas já contactei um organizador dos almoços anuais da minha recruta e do CSM/59, e perguntei pelo José Manuel Rebelo de Andrade, e diz ele que deve vicer no estrangeiro porque nunca foi possível contacta-lo.

Acontece que houve vários angolanos brancos que insistiram em permanecer na "sua terra" e lerparam naquelas mortandades do sufoco das pontes aéreas, no 27 de Maio como a Cita Vales e o Van Dunem, e se não era pela Unita era pelo MPLA, oxalá que não fosse o caso.

Mas voltando ao Conto, que gostei de ler, retrata a esperteza do "matarroano", como os angolanos nos tratavam depreciativamente quando íamos daqui, mas havia uma regra para os africanos quando aparecia um comerciante novo no mato, testavam-no comparando o valor atribuido aos seus produtos comparado com outros comerciantes noutros lugares.

Para eles a balança e o próprio dinheiro contava pouco, o que contava era o mesmo "balaio"deste mês dava para adquirir os mesmos panos e o mesmo vinho e o mesmo sal do mês anterior.

Se a tribo tomava de ponta o comerciante, este podia fazer as malas que falia pela certa.

O preto sabe-se desenrascar...se não já tinha desaparecido como aconteceu aos apaches e aos guaranis.

Cumprimentos