Joana Benzinho > 16 de abril de 2018 > Bird Magazine > Farim: já ouviram falar?
[Joana Benzinho:
(i) Natural de Pombal, é licenciada em Direito pela Universidade de Coimbra, Diplomada em Direito Europeu pelo Institut d'Études Européens - Université Libre de Bruxelles e Diploma da Academia Diplomática Europa e pelo Institut Européen des Relations Internationales;
(ii) é assessora Parlamentar no Parlamento Europeu desde 1999;
(iii) é fundadora e presidente da ONGD Afectos com Letras, criada em 2009;
(iv) professora de informática de emigrantes portugueses na Bélgica em regime de voluntariado desde 2004;
(v) escritora (coautora de "A Papaia Mágica", 2011), tem página no Facebook, é uma grande amiga da Guiné-Bissau e das suas gentes]
De Bissau até Farim são cerca de 115 Km, divididos entre uma estrada razoável até Mansoa e uma estrada óptima daqui até Farim. Na verdade os últimos 45 km são percorridos numa estrada bem asfaltada, com marcações ao longo de todo o percurso, com bermas e até passadeiras, o que torna a viagem muito agradável e com tempo para apreciar a bonita paisagem envolvente.
Depois de passar uma povoação com o estranho nome de K3 (resquícios da presença militar do tempo colonial), a estrada termina abruptamente na margem do Rio Cacheu.
Não há ponte. Há uma jangada que transporta um carro e passageiros quando não avaria. E há pirogas que levam passageiros equipados com colete salva-vidas, pois há por ali naufrágios de má memória que impõem cuidados redobrados. Ah, e já agora por curiosidade, também alguns crocodilos. Mas para evitar encontros de risco, o colete tem pouca ou nenhuma utilidade. Apenas se deve ter cautela e contar com o factor sorte.
No dia em que ali estive a última vez a nossa 'pick-up' também passou para a outra margem, entrando e saindo da jangada por uma íngreme rampa de cimento, acompanhados de alguns passageiros carregados com legumes, frutas e peixe.
À primeira vista, Farim é uma cidade abandonada. Um burro, puxado por uma criança que nos acena, passa para ir buscar carga chegada no barco e nós detemo-nos a ver a antiga igreja colonial e a estátua ali em frente, evocativa dos 500 anos da morte do Infante D Henrique.
A antiga piscina olímpica, também ali junto do porto, não passa de uma memória do que deve ter sido um lugar de lazer e cheio de beleza. Hoje tem um pouco de água barrenta no fundo, resto das chuvas da véspera onde brincam animadamente umas crianças.
Depois de passar a antiga pista de aviação, onde nasceram casas como cogumelos em terreno baldio, encontramos o largo dos mártires do terrorismo, a lembrar o bombardeamento não reivindicado de 1965 que vitimou dezenas de mulheres e crianças que dançavam animadas durante a celebração do “Djamdadon”, uma das manifestações culturais da
etnia Mandinga ali predominante.
Neste largo há um poço onde as mulheres se vão abastecer da água necessária aos afazeres do dia a dia e um cantinho à sombra onde os homens se dedicam a jogar damas. Enquanto jogam, o rádio a pilhas debita em altos berros as notícias (quase sempre desanimadoras) sobre a situação económica e política do país, seguidas pelos comunicados diversos feitos pelas autoridades, por quem procura bens desaparecidos ou por quem garante resolver todos os problemas amorosos, financeiros ou de saúde que possam perturbar o bem estar dos ouvintes.
É esta cidade de Farim, cristalizada num tempo, sem data, que deixo para trás quando regresso ao porto, por uma outra estrada ladeada de casas abandonadas e paro no único sítio disponível para nos dar de comer naquele dia. Entre umas cervejas bem fresquinhas, lá comemos uma travessa dos melhores camarões que provei até hoje (que nos saíram mais baratos que uma cerveja em Portugal) e uma galinha cafriela de chorar por mais.
Texto e fotos: © Joana Benzinho (2018). Todos os direitos reservados [Edição / fixação de texto: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
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Depois de passar uma povoação com o estranho nome de K3 (resquícios da presença militar do tempo colonial), a estrada termina abruptamente na margem do Rio Cacheu.
Não há ponte. Há uma jangada que transporta um carro e passageiros quando não avaria. E há pirogas que levam passageiros equipados com colete salva-vidas, pois há por ali naufrágios de má memória que impõem cuidados redobrados. Ah, e já agora por curiosidade, também alguns crocodilos. Mas para evitar encontros de risco, o colete tem pouca ou nenhuma utilidade. Apenas se deve ter cautela e contar com o factor sorte.
No dia em que ali estive a última vez a nossa 'pick-up' também passou para a outra margem, entrando e saindo da jangada por uma íngreme rampa de cimento, acompanhados de alguns passageiros carregados com legumes, frutas e peixe.
À primeira vista, Farim é uma cidade abandonada. Um burro, puxado por uma criança que nos acena, passa para ir buscar carga chegada no barco e nós detemo-nos a ver a antiga igreja colonial e a estátua ali em frente, evocativa dos 500 anos da morte do Infante D Henrique.
A antiga piscina olímpica, também ali junto do porto, não passa de uma memória do que deve ter sido um lugar de lazer e cheio de beleza. Hoje tem um pouco de água barrenta no fundo, resto das chuvas da véspera onde brincam animadamente umas crianças.
Depois de passar a antiga pista de aviação, onde nasceram casas como cogumelos em terreno baldio, encontramos o largo dos mártires do terrorismo, a lembrar o bombardeamento não reivindicado de 1965 que vitimou dezenas de mulheres e crianças que dançavam animadas durante a celebração do “Djamdadon”, uma das manifestações culturais da
etnia Mandinga ali predominante.
Farim é um conjunto de ruas ainda extenso, com casario de arquitectura colonial a bordar as principais artérias que levam até ao largo onde se realiza o mercado. Ali há de tudo, mas chama a atenção sobretudo o sal, vendido pelas mulheres que o produzem nas margens do rio Cacheu. A brancura do sal em grandes alguidares contrasta com a beleza das mulheres africanas, ali sentadas na expectativa da chegada de um cliente a quem vender o sal com medidas de latinhas outrora portadoras de alimentos de conserva, o que nos oferece um quadro digno de uma paragem para registar fotograficamente de uma das actividades mais características de Farim.
Neste largo há um poço onde as mulheres se vão abastecer da água necessária aos afazeres do dia a dia e um cantinho à sombra onde os homens se dedicam a jogar damas. Enquanto jogam, o rádio a pilhas debita em altos berros as notícias (quase sempre desanimadoras) sobre a situação económica e política do país, seguidas pelos comunicados diversos feitos pelas autoridades, por quem procura bens desaparecidos ou por quem garante resolver todos os problemas amorosos, financeiros ou de saúde que possam perturbar o bem estar dos ouvintes.
É esta cidade de Farim, cristalizada num tempo, sem data, que deixo para trás quando regresso ao porto, por uma outra estrada ladeada de casas abandonadas e paro no único sítio disponível para nos dar de comer naquele dia. Entre umas cervejas bem fresquinhas, lá comemos uma travessa dos melhores camarões que provei até hoje (que nos saíram mais baratos que uma cerveja em Portugal) e uma galinha cafriela de chorar por mais.
Texto e fotos: © Joana Benzinho (2018). Todos os direitos reservados [Edição / fixação de texto: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Nota do editor
Último poste da série 15 DE AGOSTO DE 2019 > Guiné 61/74 - P20061: Memória dos lugares (392): Ainda os memoriais de Buruntuma e Camajabá (Abel Santos, ex-Soldado At Art da CART 1742)
4 comentários:
Desgraçada gente a quem tanto foi prometido e contudo:... (não vale a pena dizer mais nada)!.
Um abraço,
JS
Olá Camaradas
Um saudação especial à Dr.ª Joana Benzinho.
Tendo estado em Mansabá fui a Farim e contei já uma história que tive na estrada Mansabá-Bironque-K3. O K3 é um ponto da estrada onde havia um destacamento, e uma pequena tabanca e que se situava no Km 3 da estrada para Mansabá - Bissau. Podem ver no mapa 1/50.000.
Quanto a Farim, terá tido o destino de todas as outras localidades similares da Guiné. Não é de admirar. O PAIGC, ao sair do mato nada mais trazia do que as "canhotas" às costas e a ideia de que o Partido é que era bom. Os "colonialista, salazaristas, fascistas e lacaios do Imperialismo" tinham que se ir embora depressa em face da grandiosa derrota que tinham sofrido e eles queriam ir...
Chegara finalmente o momento de "aqueles povos tomarem os seus destinos nas suas próprias mãos". Só que... "quem não tem competência não se estabelece" e a "máxima liberdade traz a máxima responsabilidade". As consequências já nós conhecemos.
Não creio que haja algo que se possa fazer para melhorar as condições de vida daquele povo que, na sua falta de perspectiva, acha que ser felupe, sosso, nalú ou balanta é um atributo que tem de ser reconhecido internacionalmente, já que, esta espécie de afirmação a nível local é corrente e "obrigatória" e vai pulverizando o poder e o modo de funcionar da sociedade.
Às vezes tenho a ideia de que "eles não querem" por estarem demasiado apreensivos a contemplar o respectivo umbigo, mas isto sou eu a pensar...
Um Ab. e bom domingo
António J. P. Costa
Bom dia Camaradas:
A triste e desesperada solução para alguns ( com melhor capacidade empreendedora), é virem viver para a terra do colonizador, solicitando que lhes volte a a ser dada a nacionalidade portuguesa (decisão difícil, pelo que lhes contam do passado). Como nos poderemos sentir, camaradas ex-combatentes? Qual era/foi, o nosso papel? Para que é que posemos as nossas vidas em risco? Não contando, com a perda de dois anos da nossa juventude e do convívio com as nossas famílias que, em silêncio, muito sofreram pela incerteza da nossa segurança. Ouço muito pouca gente debruçar-se sobre esta problemática.
Um abraço,
JS
Olá Camarada
Já afirmei várias vezes que perdi a guerra e durmo bem com isso.
A solução para alguns (ou para todos), de virem viver para a terra do colonizador, solicitando que lhes volte a a ser dada a nacionalidade portuguesa é uma solução como tantas outras para se sobreviver ou viver melhor. O passado comum que tanto se apregoa revolta-os a eles e envergonha-nos a nós à luz dos princípios que hoje nos regem. Será bom que não se evoque.
Não me sinto mal nem bem com a solução que se pôs em vigor. A Guiné, hoje é um país como outro qualquer ao qual nem a saudade me liga. Sinceramente desejo que sejam felizes à sombra da sua bandeira a ouvir o respectivo Hino e praticando a política que quiserem.
Mais ainda, falando o idioma que quiserem. Não devo, não posso nem quero impor-lhes o meu idioma. Ao que se diz o português é a terceira língua na Guiné, atrás do francês. Claro que o crioulo (derivado do português) é a língua adequada para que 30 grupos étnicos se entendam. Isso não são contas do meu rosário. É uma solução, porventura a melhor. "O Povo nunca se engana"!
O nosso papel era/foi de embrulho. Para que é que pusemos as nossas vidas em risco? Sei lá! Não contando, com a perda de dois anos da nossa juventude e do convívio com as nossas famílias que, em silêncio, muito sofreram pela incerteza da nossa segurança.
Já me debrucei sobre esta problemática e na "Minha Guerra a Pertóleo (As Minhas Aventuras no TO daquela PU) o capítulo final chama-se "E Afinal para Quê?" e aí provo que o nosso sacrifício não serviu para nada. Pior, nem o nosso, nem o deles, "mas isso já outros caminhos da História"
Um ab.
António J. P. Costa
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