Gabriel Gonçalves: um grande voz, o "Joselito" de Bambadinca |
1. Está por estudar o Cancioneiro da Guiné (*): só por si, é um tema que dá uma boa dissertação de mestrado ou tese de doutoramento... Não havia quartel no mato, onde não se cantasse o fado (em geral, parodiado), um balada, um cantiga da moda (como as do Festival da Eurovisão), muitas vezes com letra adaptada às circunstâncias da vida do pobre Zé Soldado... Havia sempre uma viola, um voz, um coro. E nalguns casos um acordeão. As letras poderiam ser mais eruditas ou mais "popularuchas", com ou sem erros ortográficos. O que importava era cantar, exteriorizar os nossos sentimentos recalcados, "exorcizar os nossos fantasmas", e por vezes protestar, à boa maneira da época: iludindo a "censura"... Era também uma forma de "matar o tempo", mitigar a saudade, gerir "a usura física e mental" da guerra, enganar as insónias, disfarçar a angústia ou a ansiedade da próxima saída para o mato...
A letra que a seguir republicamos (agora nesta série "O Cancioneiro da Nossa Guerra") foi-me
enviada pelo Gabriel Gonçalves (ex-1º cabo op cripto, CCAÇ 2590 / CCAÇ 12, Contuboel e Bambadinca, 1969/71), um excelente camarada (para além de uma grande voz) que veio comigo no T/T Niassa, em 24 de maio de 1969... e não regressou no Uíge, em 17 de março de 1971, porque teve que esperar pelo seu "periquito" (**). (Os graduados e especialistas da CCAÇ 12 e das outras companhias com praças guineenses, de recrutamento local, eram de rendição individual.)
(...) Henriques: Lembrei-me que havia uma música que a malta entoava em tom de protesto, quando das nossas tainadas lá em Bambadinca e também no nosso encontro (da malta de Bambadinca, 1968/71) efectuado na herdade do Vacas de Carvalho (em Montemor-o-Novo) já há um anos. Segue os versos. (...) (***)
Agradeci-lhe:
(...) Gabriel, que saudades, que maravilha!... Ainda me lembro bem da letra e sobretudo da música (...)
E acrescento agora mais uns comentários: era cantada em noite de copos, de insónias e de raiva, pela noite dentro, suficientemente alto para os gajos do "Comando" [do Batalhão, primeiro, o BCAÇ 2852, e depois o BART 2917] nos ouvirem...
A canção 'Isto é tão bera' (parodiando a letra da 'Guantanamera' e adaptando a sua música muito em voga nos anos 60 ) era uma das nossas preferidas, no bar da messe de sargentos de Bambadinca, em 1969/71, a par da 'Pedra Filosofal', do António Gedeão (letra) e Manuel Freire (música)...
O poema do António Gedeão foi publicado no livro 'Movimento Perpétuo', em 1956, portanto muito antes da guerra colonial. Dada a sua excelente ritmo, riqueza imagética, força poética e musicalidade e, apesar a sua extensão, o Manuel Freire pegou nele e fez da 'Pedra Filosofal' um verdadeiro de hino de resistência contra a situação política da época (a ditadura, a guerra colonial, as esperanças frustradas da abertura política com a 'primavera marcelista', etc.)
(...) Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida.
Que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.(...)
Foi o GG, o Gabriel Gonçalves (a quem também chamávamos o "Arcanjo Gabriel", e que tocava viola e cantava divinamente) quem me deu informação sobre o autor da letra, o Aurélio Pereira. Aqui fica feito o esclarecimento por ele, em 2007 (***):
(...) Henriques: Ainda bem que te lembras da música. O Aurélio Pereira (n. 1947) é um camarada de Leiria do curso de escriturário no RAL 4. Para que conste trata-se do conhecido e conceituado técnico de futebol do SCP, para as camadas jovens, pois passaram por ele nomes como: Figo, Simão, Quaresma, Ronaldo, estes os mais conceituados. Que pena o Aurélio não ser do SLB. Um abraço, GG. (...)
Confesso que não sabia que o autor da letra da canção "Isto é Tão Bera" era um nome glorioso do nosso futebol (dizem até que foi o maior caçador de talentos futebolísticos do mundo, recentemente homenageado pelo seu clube de sempre.) (...)
Recorde-se, por outro lado, que a "Guantanamera" é uma canção patriótica cubana com letra do poeta José Martí (1858-1895) (herói da independência de Cuba), com música de Joselíto Fernández (1929).
ISTO É TÃO BERA
(Letra de Aurélio Pereira / música Guantanamera)
I
Eu sou um pobre soldado
E esta farda é o fim,
Andando assim mascarado
Todos se riem de mim.
As minhas moças-meninas
São as malvadas faxinas.
(Refrão)
Isto é tão bera,
Ai é tão bera, tão bera,
Isto é tão bera,
Ai é tão bera, tão bera.
II
Logo de manhã cedo
Toca para levantar,
Se não acordas é certo
Logo vais estar a lerpar.
Mais um minuto na cama
Lá vai o fim-de-semana.
(Refrão)
Isto é tão bera,
Ai é tão bera, tão bera,
Isto é tão bera,
Ai é tão bera, tão bera.
III
Era um rapaz engraçado
E de carinha mimada,
Sempre tão bem penteado
Mas levou a carecada.
Agora está como o fel
Nem quer sair do quartel.
(Refrão)
Isto é tão bera,
Ai é tão bera, tão bera,
Isto é tão bera,
Ai é tão bera, tão bera.
Ai é tão bera, tão bera,
Isto é tão bera,
Ai é tão bera, tão bera.
_____________
Notas do editor:
(*) Último poste da série > 19 de março de 2024 > Guiné 61/74 - P25288: O Cancioneiro da Nossa Guerra (16): "Aldeia Formosa" e "Adeus Aldeia Formosa" (CCAÇ 2614 / BCAÇ 2892, Nhala e Aldeia Formosa, 1969/71)(**) Vd. poste de 30 de maio de 2023 > Guiné 61/74 - P24353: Convívios (962): CCAÇ 12 (Bambadinca e Xime, 1971/74): Coimbra, sede do núcleo local da Liga dos Combatentes, 27/5/2023: poucos mas bons, ao fim de 50 anos...
(...) Coimbra > Claustros do antigo Colégio da Graça, hoje sede no núcleo local da Liga dos Combatentes, Rua Sofia, 136 > 27 de maio de 2023 > 50.º convívio de confraternização da CCAÇ 12 (Bambadinca e Xime, 1971/74) > O Carlos Alberto M. Simões, ex-1º cabo cripto (1971/72), que foi substituir o "nosso" GG - Gabriel Gonçalves, "grande baladeiro", também conhecido pelo "Joselito de Portugal"... Chegou tarde a Bambadinca, em maio de 1971, para desespero do "Arcanjo Gabriel" que já estava completamente passado dos carretos... Vive em Telheiras, Lisboa, e trabalhou nos seguros, tal como o GG... Disse-me que nunca saiu do seu buraco, em Bambadinca... Mas tem um louvor do comando do BART 2917 (...).
(***) Vd. poste de 24 de abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1695: Cancioneiro de Bambadinca: Isto é tão bera (Gabriel Gonçalves)
6 comentários:
O termo "bera" usava-se muito na época...
bera
bera|é|
(be·ra)
adjectivo de dois géneros
1. [Portugal, Informal] Que tem boa aparência, mas nenhum valor. = FALSO ≠ GENUÍNO
2. [Portugal, Informal] Que revela maldade ou malevolência. = MAU
3. [Portugal, Informal] Que está furioso ou de mau humor. = LIXADO
4. [Portugal, Informal] Que revela mau carácter. = LIXADO
etimologia: Origem etimológica:origem controversa.
Palavras relacionadas; lixado fodido beramente
"bera", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2024, https://dicionario.priberam.org/bera.
A letra é aparentemente inocente e até inócua...Mas é reveladora do "asco" que os jovens da época tinha à tropa, antecâmara da guerra... Sobretudo para os jovens mais "urbanos", a tropa era isto: levantar cedo, fazer faxinas, apanhar carecadas, ficar sem a licença de fim-de-semana... Mas a suprema humilhação, para a geração "ié-ié" era a carecada...
(...) Era um rapaz engraçado
E de carinha mimada,
Sempre tão bem penteado
Mas levou a carecada.(...)
Mas isto tinha outro sabor", outrpo "encanto", venenoso, cantado, com a música da "Guantanamera", em Bambadinca, às tantas da noite, a cinquenta metros da messe, do bar e dos quartos dos senhores oficiais superiores (majores e tenente coronel do batalhão)... E um deles será, em 1973, um senhor lápis, que na metrópole irá fazer censura às obras literárias...
Sobre a palavra bera conheço duas versões da sua origem, o que pode ser para com frequência se usar 'não sejas bera'.
1 - No início do século XX apareceu um americano de nome Baer que na zona do Chiado, em Lisboa, fartou-se de vender pedras preciosas que afinal eram pedras falsas e passaram a ser pedras do Baer, pedras beras.
2 - Também ouvi dizer que a palavra bera surgiu por causa do russo Lavranti Beria, e que aparece assim mencionado na Wikipedia:
Em julho de 1953 Lavrenti Beria foi detido e processado por "atividades criminosas contra o partido e o Estado". Condenado à pena máxima como traidor, foi executado em 23 de dezembro pelo general Pavel Batitsky. Foi acusado de perseguir e violentar mulheres. Seu nome causava terror nas pessoas. Era responsável por um laboratório onde eram produzidos venenos para serem usados contra os inimigos do regime. Segundo alguns historiadores, Beria pode ter envenenado Stalin.
Este Beria era mesmo bera .
Valdemar Queiroz
Sinistro... Mas também rima com Sibéria...
A verdade é que o termo era muito usado pela nossa geração nos anos 60... Até a minha mãezinha usava o termo, "bera", ela que não dizia asneiras...
Mas parece que ainda se usa...
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Bera
Eu gostaria de esclarecer qual a conotação atribuída à expressão «És bera a... »
Helena Isabel Moreira Carvalho Estudante Batalha, Portugal 8K
O termo bera (pronuncia-se "béra", com é aberto) está dicionarizado e é um adjetivo de duplo género («ele/ela é bera») que tem o significado informal de «pessoa que tem boa aparência, mas que não tem valor nenhum intrínseco; que revela maldade; que possui mau carácter ou pessoa de mau humor».
O Dicionário de Expressões Populares Portuguesas de Guilherme Augusto Simões, Perspectivas & Realidades, s.d., p. 56, reforça esta ideia: «Pessoa má; coisa de pouco préstimo, sem valor, falso, de baixa qualidade» É bastante utilizado no calão ou em meios familiares ou entre amigos ou colegas.
Filipe Carvalho 10 out. 2016.
in Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/consultorio/perguntas/bera/34063 [consultado em 13-05-2024]
Valdemar, outra versão dos falsos diamantes Bera...
https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/artigos/rubricas/idioma/a-historia-da-palavra-bera-no-portugues-de-portugal/3441
O que nos calhou em sorte, também era "bera": o Estado Velho onde nascemos, a tropa, a Guiné, a guerra...
Agora confesso que não sabia a história do Aurélio Pereira... um rapaz de 47 que também não se livrou da tropa e de uma "carecada"...
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