quinta-feira, 13 de junho de 2024

Guiné 61/74 - P25636: Humor de caserna (66): Fidju di bó... ou a língua afiada das mulheres guineenses

 1. O Alberto Branquinho, que não nasceu por acaso em Vila Nova de  Foz Coa (hoje cidade),  e que recebeu no seu ADN cultural o melhor do Alto Douro e da Beira Alta,    não me levará a mal que eu lhe vá "roubar" mais um dos seus cerca de 60 microcontos para, com ele,  engrossar e enriquecer a nossa série "Humor de Caserna" (*).

A sua excecional capacidade de "observação participante" e a sua fina ironia não escapam à atenção do leitor, que vai ler e saborear estas sete linhas deliciosas. 

Nunca,  em tão poucas palavras,  deparei com  uma tão magistral diatribe  contra a linguagem brejeira e sobretudo grosseira, para não dizer, alarve, utilizada por alguns de nós contra os mais fracos (bajudas, djubis, mulheres). 

Outros chamarão  racismo subliminar, não explícito,  a estes piropos  sexistas, que todos ou quase todos ouvíamos (e tolerávamos) no quartel ou na tabanca,  da parte de alguma tropa metropolitana, culturalmente mal preparada para lidar com pessoas de outros usos e costumes,  etnias e religiões (mesmo que nossas "amigas",   como era o caso dos fulas).

Quem ler a correr este microconto pode não dar-se conta do sentido da "boca" do sargento: "bó tem sanchu na barriga"... Mesmo a "brincar", em "tom brejeiro", em linguagem de caserna, é coisa que não se diz em parte alguma a uma mulher grávida..."Sanchu", como explica o autor, na lista de vocábulos e expressões crioulas, que vem no final do livro, quer dizer "macaco" (do francês. "singe").  É ofensivo e  tem, obviamente,  uma conotação racista.

Enfim, este microconto é também uma homenagem a mulher guineense do nosso tempo,  que não tinha papas na língua e era capaz de dar respostas de superior inteligência a uma "tuga" tonto, inconveniente,  desbocado e abusando da sua aparente situação de "superioridade" como militar... 

O título também é uma delícia, "Paternidade instantânea"...




Alberto Branquinho (n. 1944, Vila Foz Coa),
advogado e escritor, a viver em Lisboa desde 1970,
ex-alf mil, CART 1689 / BART 1913,
Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69),
tem 140 referências no nosso blogue:
é autor das notáveis séries "Contraponto"
e "Não venho falar de mim,,, nem do meu umbigo".


Paternidade instantânea

por Alberto Branquinho

Aproximava-se uma mulher em estado adiantado de gravidez. Caminhava com dificuldades, amparada a um muro.

O sargento, que estava a observá-la:

− Ó meu alferes, escute lá esta.

O sargento dirigiu-se, então, à mulher grávida:

− Eh, mulher! Bô tem sanchu  [macaco] na barriga!

É, noss' sargenti. Fidju  [filho]  di bó.

 

Fonte: Adapt. de Alberto Branquinho  - Cambança final: Guiné, guerra colonial:  contos. Vírgula, Lisboa, 2013, pp. 131.

(Título, revisão / fixação de texto, parênteses retos, para efeitos de publicação deste poste, na série "Humor de caserna": LG)  (Com a devida vénia ao autor e à editora...)

__________

Nota do editor:

Último poste da série > 11 de junho de  2024 > Guiné 61/74 - P25631: Humor de caserna (65): Afinal, Deus não gosta dos mais velhos, diz o nosso Cherno Baldé...

https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2024/06/guine-6174-p25631-humor-de-caserna-65.html

8 comentários:

Eduardo Estrela disse...

Assisti algumas vezes a intervenções similares a esta durante o tempo em que estive em contacto com as maravilhosas gentes da Guiné. Tive que intervir nalgumas situações de modo a fazer prevalecer o bom senso e chamar a atenção dos labregos que se excediam em comentários absolutamente desprezíveis.
A resposta da senhora é fabulosa!!!
O bardamerda que ostentava divisas de sargento nos ombros não era digno das mesmas e devia ter sido despromovido a básico, com todo o respeito que me mereciam os camaradas dessa área militar.
Abraço
Eduardo Estrela

Cherno disse...

Caros amigos,

Uma bonita réplica: ..."Fidju di bô" = Teu filho.

Mas, também poderia ser (Suma "Fidju di bô" = Igual ao teu filho, deixado lá na metrópole.

Cherno AB

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Acho que casos como este "troglodita" foram exceção, pelo menos no meu tempo... Uma geração, como a nossa, que viveu intimamente com a população guineense, civil e militar, na sua terra, não pode (nem é) racista... O racismo nasce do desconhecimento (e da consequente negação) do outro. LG

Alberto Branquinho disse...


Tenho que dizer que o Sargento B. era um indivíduo com um humor cáustico, inclusive no trato com o 1º. sargento (chefe da Secretaria da companhia) e um companheirão no trato com os furriéis, sempre a trocar "galhardetes" com eles, contra o que era habitual no trato dos sargentos "chicos" com os furrriéis milicianos.
Para salvaguarda da sua memória (faleceu há muito), tenho que acrescentar à história que, a seguir à prontidão da resposta da mulher, deu uma das suas gargalhadas guturais e arrastadas, seguidas de um ataque de tosse e correu para a mulher, que o olhava com espanto, dando-lhe palmadinhas nos ombros, a felicitá-la. Mas acho que a mulher não entendeu nada.

CHERNO:
Bonita correcção.
SUMA, pois! Ambos têm a cabeça, cérebro, braços, tronco, pernas e pés de ser humano.

Abraço a todos.

Alberto Branquinho

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Alberto, foi então um piada de "humor negro", mas, convenhamos, de mau gosto... Também conheci, na minha CCAÇ 2590 / CCAÇ 12, esse dois tipos de sargantos: o 1º sargento, "chicalhão", de cavalaria, emproado, mal humorado, a quem eu e outros demos explicações, à borla, para se preparar para a Escola Central de Sargentos (então em Águeda); e o 2º sargento, raimbeiro, bacano, alentejano, bom homem, bem humorado, que alinhava com os milicianos nas farras, tainadas, etc. Havia um outro, "chico-esperto"... Embora os dois fossem operacionais, devido à idade, não alinhavam no mato...Deviam ter quinze anos de diferença em relação a nós... Foram os milicianos que fizeram a p... da guerra.

Alberto Branquinho disse...


Luís

O vosso 1º. sargento éra "irmão-gémeo" do nosso. O vosso primeiro 2º. sargento é cópia do nosso sargento B. (esse do micro-texto); só que era beirão, creio. O segundo 2º sargento era um homem de trato impecável. Ambos os 2ºs. se destinavam, também, a ser operacionais, mas, devido à idade e falta de treino militar, acabaram como ajudantes na Secretaria. Foram muito úteis na recepção e entrega dos materiais.
Pois... No final até os capitães milicianos abundavam.

Tabanca Grande Luís Graça disse...


Luís Graça (by email)
quinta, 13/06/20124, 11:54


Alberto;

Espero que me perdoes o meu abuso... Tens várias joias, neste livro de 2013, já um pouco esquecido,"Cambança Final"... Mas podes discordar da minha leitura pessoal... Lá voltamos nós com os nossos "demónios etnocêntricso"...

Estive o verão passado, de novo, em Foz Coa, de visita ao museu... Fui só lá praticamente almoçar, depois de uma maravilhosa viagem de comboio, de Mosteiró até ao Pocinho. Mas, de canadianas, não deu para grandes passeios...

Um abraço fraterno. Luís

Anónimo disse...


Alberto Branquinho (by email)
13/06/2024, 17:58


Obrigado, Luís

Estou em terras do sul e abri agora o mail.

O Museu é demasiado intelectual. Não está formatado para a maioria das pessoas que o visitava. Daí que a visitas de grupo tenham diminuído muito. E, como consequência dele, a paisagem do Douro passa para segundo plano.

Se bem que a interpretação imediata é a de racismo, o sargento B. (já falecido há muito) era um indivíduo com um humor cáustico, mas muito humano. A seguir à resposta da mulher deu uma grande gargalhada e foi felicitá-la dando-lhe palmadinhas nos ombros.

O nosso capitão-general, quando leu o texto, perguntou-me: - Oiça lá, isto foi com o sargento B.?

O nome "Cambança Final" pretendeu referir a última viagem atlântica de Bissau-Lisboa. Daí o capítulo final do livro - Teatro do Regresso.

Vou agora aos comentários do blogue.
Obrigado.
Abraço
Alberto Branquinho