Adão Pinho Cruz
Ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547
Autor do livro "Contos do Ser e Não Ser"
Um simples periquito
Não sei muito bem o que fazer nas férias. Não gosto de praia, não gosto de viagens programadas em grupo, não gosto de cruzeiros, enfiarem-me num resort qualquer é pior do que me enfiarem em Custóias. Gosto de viajar, mas de carro, sem destino, ao deus-dará. Foi o que fiz na passada semana. Vi, por acaso, uma exposição de André Brasilier no Château de Chenonceaux e, mal cheguei, fiz dois quadros, mais ou menos dentro da sua linha, a qual tem algumas semelhanças com a minha, ou melhor, a minha tem algumas semelhanças com a dele. Provavelmente, amanhã farei deles um post. Cheguei de férias.
Mas onde eu queria chegar era ao periquito. Não é que eu não goste de animais. Gosto, sim senhor, mas sempre que possível em casa dos outros. Um amigo meu, pintor, ofereceu-me um periquito. Em princípio, tudo bem. Um periquito não é assim uma coisa que atemorize. Porém, este periquito foi o único ser e produto que, em toda a minha vida, funcionou de alergénio e me ofereceu uma bronquite aguda asmatiforme que me obrigou a enfiar com o gajo na marquise. Entre a marquise e a cozinha, há uma janela através da qual eu vejo e converso com o periquito. Sim, converso com ele. Cheguei ontem. Quando chego e abro a janela, o bichinho está mudo que nem uma pedra.
Então chamo várias vezes por ele: pilinhas, pilinhas, pilinhas! Venha daí uma sinfonia. Ele concentra-se, mantém alguns minutos de silêncio e manda três assobiadelas estridentes. Um pouco como aqueles três morteiros que antecedem o fogo de artifício no rio Douro. Daí em diante, é um ver se te avias. Sonatas, serenatas, zarzuelas, música de câmara, sinfonias, eu sei lá! Quando eu lhe digo, Pilinhas agora é mesmo de escacha-pessegueiro, ele abre a goela e chilreia de tal modo que parece uma estrela de rock, até se empoleira de papo para o ar.
Eu vivo sozinho, embora tenha a frequente presença dos meus filhos e netos. Estou cheio de mulheres, melhor dizendo, estou cheio das incomensuráveis complicações que as mulheres acarretam. De mulheres não estou cheio, obviamente, até porque as vejo na rua e sei o prazer que delas conseguiria obter. Mas vivo sozinho. E em vez de mulher… há um periquito. Nunca na vida pensei que um insignificante periquito fizesse a companhia que faz. Ao fim e ao cabo, tudo nesta vida é relativo.
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Nota do editor
Último post da série de 6 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26016: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (38): "Vidas por um fio" (II)
2 comentários:
E verdade Dr. Adão, os periquitos sujam, fazem barulho e são uma companhia.
Eu tive periquitos numa grande gaiola na varanda das traseiras e semanalmente tinha de lavar a gaiola.
Um fim de semana fui perto da estação CP comprar o jornal da tarde e de regresso passei
pela "Cova Funda" para lanchar passarinhos fritos, pão torrado e cervejola.
Cheguei a casa e lá fui limpar a gaiola dos periquitos que ficavam todos contentes com o banho de mangueira.
Ao reparar naquela alegria dos periquitos lembrei-me dos passarinhos fritos e fiquei a pensar se seriam periquitos de estimação criados em gaiolas nas varandas das traseiras.
Nunca mais comi passarinhos fritos e fui-me desfazendo dos periquitos oferecendo a quem os quisesse.
Valdemar Queiroz
Concordo em absoluto com as considerações feitas pelo Adão Cruz acerca das mulheres. Pena que elas não tenham uma ideia simétrica à nossa. Mas porquê? Um Ab. António J. P. Costa
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