domingo, 13 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26042: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887 (38): "Um simples periquito"

Adão Pinho Cruz
Ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547
Autor do livro "Contos do Ser e Não Ser"


Um simples periquito

Não sei muito bem o que fazer nas férias. Não gosto de praia, não gosto de viagens programadas em grupo, não gosto de cruzeiros, enfiarem-me num resort qualquer é pior do que me enfiarem em Custóias. Gosto de viajar, mas de carro, sem destino, ao deus-dará. Foi o que fiz na passada semana. Vi, por acaso, uma exposição de André Brasilier no Château de Chenonceaux e, mal cheguei, fiz dois quadros, mais ou menos dentro da sua linha, a qual tem algumas semelhanças com a minha, ou melhor, a minha tem algumas semelhanças com a dele. Provavelmente, amanhã farei deles um post. Cheguei de férias.

Mas onde eu queria chegar era ao periquito. Não é que eu não goste de animais. Gosto, sim senhor, mas sempre que possível em casa dos outros. Um amigo meu, pintor, ofereceu-me um periquito. Em princípio, tudo bem. Um periquito não é assim uma coisa que atemorize. Porém, este periquito foi o único ser e produto que, em toda a minha vida, funcionou de alergénio e me ofereceu uma bronquite aguda asmatiforme que me obrigou a enfiar com o gajo na marquise. Entre a marquise e a cozinha, há uma janela através da qual eu vejo e converso com o periquito. Sim, converso com ele. Cheguei ontem. Quando chego e abro a janela, o bichinho está mudo que nem uma pedra.

Então chamo várias vezes por ele: pilinhas, pilinhas, pilinhas! Venha daí uma sinfonia. Ele concentra-se, mantém alguns minutos de silêncio e manda três assobiadelas estridentes. Um pouco como aqueles três morteiros que antecedem o fogo de artifício no rio Douro. Daí em diante, é um ver se te avias. Sonatas, serenatas, zarzuelas, música de câmara, sinfonias, eu sei lá! Quando eu lhe digo, Pilinhas agora é mesmo de escacha-pessegueiro, ele abre a goela e chilreia de tal modo que parece uma estrela de rock, até se empoleira de papo para o ar.

Eu vivo sozinho, embora tenha a frequente presença dos meus filhos e netos. Estou cheio de mulheres, melhor dizendo, estou cheio das incomensuráveis complicações que as mulheres acarretam. De mulheres não estou cheio, obviamente, até porque as vejo na rua e sei o prazer que delas conseguiria obter. Mas vivo sozinho. E em vez de mulher… há um periquito. Nunca na vida pensei que um insignificante periquito fizesse a companhia que faz. Ao fim e ao cabo, tudo nesta vida é relativo.

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Nota do editor

Último post da série de 6 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26016: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (38): "Vidas por um fio" (II)

2 comentários:

Valdemar Silva disse...

E verdade Dr. Adão, os periquitos sujam, fazem barulho e são uma companhia.
Eu tive periquitos numa grande gaiola na varanda das traseiras e semanalmente tinha de lavar a gaiola.
Um fim de semana fui perto da estação CP comprar o jornal da tarde e de regresso passei
pela "Cova Funda" para lanchar passarinhos fritos, pão torrado e cervejola.
Cheguei a casa e lá fui limpar a gaiola dos periquitos que ficavam todos contentes com o banho de mangueira.
Ao reparar naquela alegria dos periquitos lembrei-me dos passarinhos fritos e fiquei a pensar se seriam periquitos de estimação criados em gaiolas nas varandas das traseiras.
Nunca mais comi passarinhos fritos e fui-me desfazendo dos periquitos oferecendo a quem os quisesse.

Valdemar Queiroz

António J. P. Costa disse...

Concordo em absoluto com as considerações feitas pelo Adão Cruz acerca das mulheres. Pena que elas não tenham uma ideia simétrica à nossa. Mas porquê? Um Ab. António J. P. Costa