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sexta-feira, 7 de novembro de 2025

Guiné 61/74 - P27394: A nossa guerra... a Petromax (2): o destacamento da Ponta do Inglês (jan 65 /out 68), onde a iluminação do perímetro de arame farpado era feita com garrafas de cerveja cheias de querosene (António Vaz, 1936-2015)




Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Xime > Ponta do Inglês > O destacamento da Ponta do Inglês, um dos muitos "bu...rakos" onde viveu gente nossa , entre janeiro de 1965 e outubro de 1968. Teve um gerador que nunca chegiu a funcionar. Nem petromax tinha ! (*)

(...) "As garrafas de cerveja penduradas no arame farpado, cheias de combustível, tinham que ser continuamente acesas nas noites de chuva forte ou de vento. O risco que a malta corria nessas circunstâncias, sendo a única coisa iluminada na escuridão, tornando-se um alvo fácil era enorme, embora, que me lembre, nunca tenha havido flagelações nessas alturas. (...)

As garrafas também funcionavam como sistema de deteção e alerta: a aproximação de elementos IN do arame farpado, fazia-as tilintar... O sistema acabava por ser pouco fiável devido ao vento, à chuva e... aos macacos-cães.

Ilustração de Vera Vaz, filha do nosso camarasa António Vaz  (2012). 



António Vaz (1936-2015)
1.  Nunca será demais lembrar os "bu...rakos" onde vivemos, como toupeiras.

Um dos mais famigerados foi o da Ponta do Inglês, no subsetor do Xime (sector L1). O topónimo tem já perto de meia centena de referências no nosso blogue. Mesmo depois da retirada das NT, a Ponta do Inglês continuou a ser um nossos "ossos duros de roer". Havia sempre contacto com o IN, quando as NT progrediam na antiga estrada Xime-Ponta do Inglês, há muito invadida pelo mato e interdita. No dia 26 de novembro, vai fazer 55 anos que a CART 2715 (Xime, 1970/72) e a CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71) sofreram uma brutakl emboscada com 6 mortos e 9 feridos graves (Op Abencerragem Cadente) (mais um revés nas NT que não vem referido no livro da CECA, correspondente à atividade operacional de 1970/74)


Excerto de um poste nosso saudoso camarada 
António Vaz (1936-2015),ex-cap mil, CART 1746
 (Bissorã e Xime, jul 1967/jun 69) (fot0 de 2012,
à direita).
 



O destacamento da Ponta do Inglês
onde nem petromax havia

por António Vaz (1936-2015)


A Cart 1746 saiu de Bissorã a 7 de Janeiro de 1968,  seguindo de Bissau para o Xime via Bambadinca,  a bordo da barcaça Bor. 

Um Grupo de combate seguiu diretamente para a Ponta do Inglês onde rendeu o pessoal da CCAÇ 1550.

Este Pelotão da Cart 1746 era comandado pelo alf mil Gilberto Madail (hoje uma figura pública) que lá permaneceu cerca de 4 meses,  sendo substituído por outro,  comandado pelo alf mil João Guerra da Mata que lá esteve até 8 de otubro, data em que este destacamento foi abandonado (por ordem do comando-chefe).


Francisco Pinheiro
Torres de Meireles (1936-1965).
Era natural de Paredes. Tem nome de rua
no Porto.

A Ponta do Inglês foi ocupada e os abrigos construídos em dezembro de 1964 na Op Farol pela CCAÇ 508,  comandada pelo malogrado cap inf Pinheiro Torres de Meireles (1936-1965), morto em combate na Ponta Varela (**).


Este destacamento teve sempre uma triste sina porque não tinha meios senão para..
 estar. 

A dispersão de meios que encontrámos no sector L1 a isso conduzia. Nunca serviu de nada a não ser castigar, sem culpa formada, as guarnições que para lá eram enviadas.

Não controlavam nada na foz do Corubal e nada podiam fazer em conjunto com o pessoal do Xime para manter aberto o itinerário Ponta do Inglês / Xime porque a companhia do Xime ocupava também Samba Silate, Taibatá, Demba Taco 
e Galomaro. Assim o seu isolamento era, foi, 
praticamente total.

Os géneros só a Marinha os podia levar e o mesmo se pode dizer das munições, correio, tabaco, combustível, etc.

A chegada dos abastecimentos era motivo de alegria geral como se pode ver nas imagens que junto.

Por muito que o pessoal controlasse os gastos, a falta de quase tudo fazia-se sentir. Bem podia o comando da companhia pedir insistentemente pela vias normais a satisfação dos pedidos que não conseguíamos nada. 

Cheguei a tentar meter uma cunha directamente na Marinha, mas as prioridades eram outras. Como alguns géneros recebidos da companhia que lá tínhamos rendido,  estavam deteriorados, a situação ainda foi pior. Esta situação originou, a pedido do alf Madail, o Fado da Fome,  que o Manuel Moreira ilustrou nas quadras populares da sua autoria.

O destacamento da Ponta do Inglês era a pequena distância da margem (direita) do Rio Corubal e tinha a forma quadrangular. A guarnição era formada por 1 GComb  / CA RT 1746 + 1 Esq/Pel Mort 1192 + Pel Mil 105.

O destacamento era formado por 4 abrigos principais nos vértices para o pessoal, para a mecânica e rádio. O combustível e as munições ficavam na parte mais perto do Corubal; na parte central sob uma árvore frondosa (poilão ?) um abrigo mais pequeno onde ficava o alferes, o enfermeiro e logo ao lado o forno do pão e uma cozinha, tudo muito rudimentar. 

Tinha o espaldão do morteiro 81 na parte central. Não tinha, ao contrário do Xime, paliçada e apenas duas fiadas de arame farpado.

Os abrigos eram de troncos de palmeira com as indispensáveis chapas de bidão, terra e não eram enterrados. Uma saída na direcção do rio e outra no lado oposto para as idas à água e à lenha. No destacamento havia um Unimog para estas tarefas.


Manuel Vieira Moreira
(1945-2024)
ex-1º cabo mec auto
A água era tirada a balde de um poço existente a cerca de 700 metros do arame farpado que também era utilizado pela população, totalmente controlada pelo IN, e pelo próprio IN, sem nunca este ter aproveitado as nossas idas à água e à lenha para nos incomodar e vice-versa


Escreveu  o Manuel Moreira (1945-2014)

O poço era um só,
Estava longe do abrigo,
Dava a água para nós
E também p’ro Inimigo.

Nunca percebi por que razão se fez o Destacamento, afastado do único poço com água potável... Uma proposta de sã convivência? O caso é que resultou.

O que se passou nos tempos infindáveis em que o gerador esteve avariado, assunto já abordado neste blogue, por quem o foi substituir, depois de aturados 
pedidos a Bissau sem que se resolvesse em tempo útil,   é inenarrável. (***)

As garrafas de cerveja penduradas no arame farpado, cheias de combustível,  tinham que ser continuamente acesas nas noites de chuva forte ou de vento. O risco que a “malta” corria nessas circunstâncias, sendo a única coisa iluminada na escuridão, tornando-se um alvo fácil era enorme, embora, que me lembre,  nunca tenha havido flagelações nessas alturas.

Flagelações houve muito poucas (seis),  sem grandes consequências, a água do poço nunca foi envenenada e mesmo sabendo que a resistência oferecida pelas NT, aquando dos ataques, fosse de nutrido fogo mantendo o IN em respeito, penso que este nunca empenhou efectivos suficientes e capazes para provocar danos consideráveis. 

No fundo o IN sabia que,  enquanto aquele pessoal ali estivesse enquistado, a tropa do Xime, com a dispersão acima referida, estaria muito menos apta a fazer operações complicadas.

As relações entre o pessoal podem considerar-se muito boas,  não havendo atitudes condenáveis, que até seriam possíveis num ambiente concentracionário como aquele. 

A convivência com a milícia logo de início se mostrou muito favorável porque, abastecendo-se de géneros junto das NT, passaram a pagar muito menos do que anteriormente,  porque os preços eram os mesmos que nos eram debitados sem alcavalas de qualquer espécie. 

Não me recordo da existência de familiares a viverem com o pessoal africano, mas segundo o testemunho do tabanqueiro Manuel Moreira, uma mulher deu à luz na época em que lá esteve e foi o 1.º cabo aux enf Cordeiro Rodrigues, o " Palmela", ajudado por ele que assistiram ao parto.

Com a falta de géneros tudo se aproveitava incluindo a caça, que se resumia a tiro de rajada para bandos de aves grandes, pernaltas (não sabemos quais) e se caiam nas redondezas eram o pitéu desse dia. 

As noites eram passadas como se calcula, com as sentinelas nos quatro cantos do quadrado e a malta a ver e a ouvir os rebentamentos que vinham da direcção de Jabadá, de Tite, Porto Gole e do Xime, claro. Pode ser sinistro mas não é difícil pensar que muitos diriam: 

− Antes eles do que nós!...

Como de costume, depois das tarefas de rotina, quando o calor era menos intenso, seguia-se o eterno futebol com bolas dadas pelo Movimento Nacional Feminino (MNF), de péssima qualidade, substituídas pelas tradicionais trapeiras. 


João Guerra da Mata

Num dos reabastecimentos que se fizeram conseguimos levar, para além de gado mais miúdo, algumas vacas que, como sabemos, na Guiné são de pequeno porte. 

Como o futebol também farta,  houve alguém que sugeriu tourear uma das vacas que ainda estava viva para tardios bifes.

Foi uma festa com as peripécias inerentes à Festa Brava e todos os dias “a las cinco en punto de la tarde” soltava-se a vaca e era um corrupio de faenas com cornadas… incompetentes. O tempo foi passando e já só restava um dos pobres animais para animar os fins da tarde. 

Como o reabastecimento nunca mais chegava e o atum com arroz já não se podia ver, e muito menos comer, o alf Mata teve de decidir entre o partido pró-tourada e o partido pró-bife. 

Não foi fácil, mas acabou por vencer este último. Convocou-se o soldado condutor J. Viveiro Cabeceiras que também era padeiro, magarefe e pau para toda a obra, que procedeu à matança. Começando a esquartejar a rês,  vai ter com o Alferes e informa-o que a vaca estava tísica, pulmões quase desfeitos. 

 
− Come-se a vaca ou não se come a vaca? 

Nova discussão e resolveu-se não aproveitar as vísceras e apenas o músculo. Assim se comeu carne assada sem problema de maior. Quando esta acabou voltou-se ao atum aos enlatados,  tudo coisas que já escasseavam mas o pessoal andava triste com a falta dos fins de tarde taurinos. Então o Cabeceiras foi ter com o alferes Mata e disse-lhe:

- Meu alferes, a malta anda tão triste que se quiser e autorizar eu faço de vaca pois guardei os... cornos.

E assim de conseguiram mais uns fins de tarde…

Felizmente com a redistribuição das Forças no terreno, iniciada pelo brig Spínola, foi a Ponta do Inglês evacuada sem problemas em 7 e 8 de Outubro de 1968, pondo-se fim ao disparate da sua existência. 

Há uma enorme falta de informação (para mim) sobre a evacuação da Ponta do Inglês; nem na história do BART 1904, nem na da CART 1746, apenas é mencionada a data em que se efectuou. 

Tenho ideia que,  para além do pelotão da CART  1746,  da secção  de Morteiros e do pelotáo de milícia,  estiveram na Ponta do Inglês pessoal de outras unidades a montar segurança (mas quais?) enquanto o pessoal carregava a barcaça Bor de todo o material e bagagem da rapaziada. Estivemos nas imediações da Ponta Varela a assegurar a passagem da Bor a caminho de Bambadinca. Foi uma operação, para mim sem nome, que envolveu mais meios que não recordo.

Segundo informação de oficiais do BART 1904, o brig Spínola com o respectivo séquito aterrou na Ponta do Inglês, já ia adiantado o carregamento da Bor, mandando evacuar a segurança, depois de se ter armadilhado o que estava determinado... Só depois reparou que já não havia segurança nenhuma e que ele e os outros oficiais que o acompanhavam tinham ficado, como hei-de dizer, abandonados na margem do Corubal com o pessoal do ou dos helis a chamá-los quando se aperceberam da situação.

O pelotão da Cart 1746 chegou ao Xime sem problemas e todos tivemos uma enorme alegria por voltarmos a estar juntos. ....E na verdade o que vos doi... É que não queremos ser heróis (Fausto).

António Vaz (2012) (****)

(Revisão / fixação de texto, título: LG)

_________

Notas do editor LG:

(*) Vd poste de 4 de novembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27384: A nossa guerra... a petromax (1): Quem é que ainda se lembra dos candeiros a petróleo ? Em 1964, em Guileje, Gadamael, Ganturé, Sangonhá, Cacoca, Cameconde... Em 1967/68, em Ponate, Banjara, Cantacunda, Sare Banda, Ponta do Inglês...

(**) O que diz a CECA (2015):

(...) Em 19 e 20Jan65, realizou-se a operação "Farol",para ocupação e instalação dum aquartelamento na Ponta do Inglês. 

O ln emboscou as NT, sofreu baixas não estimadas e foram capturadas granadas de mão e de lança-granadas foguete. 

Em 20Jan, forças da CCaç 526 e CCav 678, durante um reconhecimento na área Ponta do Inglês - Buruntoni, destruíram um acampamento com 15 casas a cerca de 600 metros a sul da antiga tabanca da Ponta do Inglês, tendo capturado diversas munições; encontraram alguns abrigos no lado sul da Ponta do Inglês-Xime, no local da emboscada feita às NT em 19 e destruíram 2 casas a leste de Ponta do Inglês. (...)

Fonte: Excerto de: Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 6.º Volume; Aspectos da Actividade Operacional; Tomo II; Guiné; Livro I; 1.ª Edição; Lisboa (2014), pág  311.


Em comentário ao poste P7590 (****), o José Nunes, ex-1º cabo mec eletricidade, BENG 447, 1968/70; escreveu:

(...) "O aquartelamento da Ponta do Inglês estava operacional em abril de 1968, quando aí nos deslocámos pra montar o grupo gerador, ficava junto ao rio e não havia cais, o Unimogue avançou rio dentro até da LDP [Lancha de Desembarque Pequena] de onde se descarregou o gerados a pulso. 

A iluminação era feita [, até então,] com garrafas de cerveja com uma mecha, cheias de combustível, e as havia a servir de alarme, havia muitos macacos na zona que causavam problemas, ao agarrar o arame farpado da zona de protecção. Foi uma permanência de horas por causa das marés." (...)



2 comentários:

Anónimo disse...

CANÇÃO DA FOME

Estamos num destacamento,
A favor de sol e vento,
Na Ponta do Inglês (3).
Não julguem que é enorme
Mas passamos muita fome,
Aos poucos de cada vez.

A melhor refeição
Que nos aquece o coração,
É de manhã o café;
Pão nunca comi pior
Nem café com mau sabor
Na Província da GUINÉ.

Ao almoço atum a rir
E um pouco de piri-piri,
Misturado com Bianda,
E sardinha p´ró jantar
E uma pinga acompanhar
Sempre com a velha manga.

Falando agora na luz
Que de noite nos conduz
As vistas par' ó capim:
Se o gasóleo não vem depressa,
Temos Turras à cabeça,
Não sei que será de mim.

Quando o nosso coração bole,
Passamos tardes ao Sol
Junto ao Rio, a esperar
De cerveja p'ra beber
E batatas p'ra comer
Que na lancha hão-de chegar.

A fome que aqui se passa
Não é bem p'ra nossa raça,
Isto não é brincadeira
E com isto eu termino
E desde já me assino:

MANUEL VIEIRA MOREIRA.

Xime, Ponta do Inglês, 28/01/1968 (4)

Tabanca Grande Luís Graça disse...

O Beja Santos, na sua "viagem de saudade" à Guivisitou né-Bissau, em novembro de 2010, visitou o "local de crime", os sítios por onde andou e penou,,, enquanto comandante do Pel Caç nat 52 (Missirá e Bambadinca, 1968/70).

Um dos sítios tinha que ser a a Ponta do Inglês, na margem direita do Rio Corubal, já junto à Foz. O destacamento foi retirado pelas NT em 7 e 8 de outubro de 1968.

Escreveu ele: "Praticamente desapareceram vestígios, o de maior dimensão é a casa de Lopes da Costa, que era conhecido como o "Inglês", certamente pai de Constantino Lopes da Costa, penúltimo embaixador da República da Guiné-Bissau em Portugal"... E eu acrescentei: e um dos actuais proprietários da "ponta", terá lá 50 hectares de terreno, segundo confidência pessoal que me fez em tempos...

Fica justificado nome (intrigante) da antiga ponta...(e depois destacamento das NT, jan 65 / out 68).